terça-feira, 18 de dezembro de 2012

[Cinena Mudo] Luiz Sávio de Almeida. Capela das Alagoas: o maestro e o cinema mudo





Capela das Alagoas: o maestro e o cinema mudo


Luiz Sávio de Almeida



         Hollywood é algo presente em nossa vida, como símbolo do cinema que nos bombardeia desde a época do cinema mudo. Depois passou pelo falado e depois pelo colorido. São três ênfases tecnológicas em nossa vida. Do cinema mudo, restaram-me algumas coisas contadas por meu pai, que me transmitiu o culto por Carlitos. Acho que tenho quase tudo que Carlitos filmou;  vez em quando curto alguma coisa. Lembro das histórias do Cine Ceci na Capela, com o maestro Chico Caetano tocando piano, valsa nas partes tristes, chorinhos nas alegres.





Chico Caetano era músico de primeira, militar ferido em Canudos e tocava no Cine Ceci. Conheci muito a Naná, que morava na linha do trem em uma casinha simpática, aqui em Maceió. Dizem que ela puxava ao pai: alta e magra. Nana trabalhou muito em teatro e era ligada a Os Dyonísios, grupo do Bráulio Leite Júnior. Chico Caetano tinha composições e eu somente conheço uma, que ouvi ser cantada por suas de suas filhas, quando conversávamos em Maceió. Otávio Cabral estava comigo. A letra era a seguinte:


Mamãe tem, papai tem

Todos têm

A barriga empinada.



Muito se contava de Chico Caetano. Meu avô Fausto era o bilheteiro do cinema. Ir ao cinema era uma preparação. Não se ía maloqueiro e nem com a roupa das festas, mas com a roupa para ir para os cantos, arrumado. Me disse papai que teve cinema engraçado: as pessoas levavam suas próprias cadeiras, mas não foi o caso de Capela. Era um salão, cadeiras e a tele; um piano do Chico Caetano. Uma coisa triste, lá vinha o dolente de uma valsa. Uma valsa dolente é coisa que sumiu.  Saudades do Matão é dolente. Acho bonito, viajo quando a escuto e é uma forma de me lembrar de casa, de uma história que tive, como se o passado nunca se acabasse e fosse imediatamente uma situação de agora. Faz pouco, descobri que sou um ser que revive permanentemente. E que as pequenas coisas são senhoras de mim.


tom mix


Contam, que Chico Caetano tomou um meio porre e foi ao piano, mais pra lá do que pra cá. Um idílio aparece na tela e a música deveria passar para um vivace, quem sabe um “feroce”, e a cana trazia o Chico Caetano para longe das luzes de Hollywood e espremia contra as pedras do Rio Paraíba.  Veio uma embolada:



Chuleia o besouro, Iaiá

Bem chuleadinho, Iôiô

O besouro avoa, Iaiá

E é bonitinho,  Iôiô.



A plateia caiu na gargalhada, mas o Chico Caetano, veterano de guerra, jamais se perturbaria mantendo a embolada a martelar nas teclas do piano,  o besouro avoando sobre o amor da tela. Acho fantástica esta desconstrução capelense, este ajuste de contas entre os peixes do Paraíba e as estrelas que depois farão a propaganda de sabonete. As meninas do Paraíba tomavam banho de cuia ou tibungavam no Poço do Pai Pedro. O beijo e o besouro chuleado ficaram enlaçados retomando para a Capela, o tempo que Hollywood parecia roubar-lhe.

Mas não foi somente esta façanha, que foi atribuída ao Maestro, antes do cinema falado chegar na Capela, exigindo a atualização do cinema em seu equipamento. Gente da Capela pegava o trem e vinha ouvir o cinema em Maceió. E isso dava o tom da ligação entre o trem e a possibilidade das novidades. Ms o Maestro tinha outra que se contava. Era Semana Santa e em um dos dias foi passada a vida de Cristo. O Maestro esqueceu dos tempos de trevas, entornou umas cinco e lá vai a cena comovente da cruz  sendo levantada e, com ela, o corpo de Cristo. Era o encontro do sagrado da tela com o profano do piano. O Maestro não se conteve e saiu:



Tatu subiu no pau

E na mata ninguém viu!



buck jones
Isto tudo devia ser mangação, brincadeira de quem não tinha o que fazer. Não importa, contudo, a verdade,  mas o modo como se construía com o humor uma personagem urbana e, com ela, vinha o anedótico e o jocoso desconstruindo valores. Sei que do meio do universo do cinema, ficaram na cabeça de meus pais o Boca Larga, Carlito, Tom Mix, Buck Jones.

Eu gosto do cinema mudo.


domingo, 16 de dezembro de 2012

[Música e Memória da cidade] It was fascination, I know. Música e recordação



 


It was fascination, I know




Clique para ouvir:
 O som da velha 78 rotações: Carlos Galhardo

Os sonhos mais lindos sonhei,
De quimeras mil meus castelos ergui
E no teu olhar, tonto de emoção,
Com sofreguidão, mil venturas vivi.
O teu corpo é luz, sedução,
Poema divino cheio de esplendor.
Teu sorriso prende, inebria, entontece,
És fascinação, amor.
A sorrir, a cantar e a beijar
Nossas bocas se uniam, então.
E os campos, sorrindo, viviam
E, nos vendo, as flores se abriam.
Mas, um destino mau certo dia chegou
E sem o teu meu coração ficou.
Hoje, sombra sou do que fui,
Minhas ilusões o destino levou.
Nada mais existe desde que partiste
E em meu coração só saudade ficou.
Vivo com o passado a sonhar,
Vendo-te, ainda, em meu coração.
Mas tudo promessas, quimeras, mentiras
Da tua fascinação.
 

Por anos a fio,  ouvi Carlos Galhardo, cantor da maior intimidade de meus pais; vez  em quando, um cantarolava  alguma valsa, algum bolero. Por causa deles, dos velhos, , estando certa feita em João Pessoa fui vê-lo em uma boate na praia.  Galhardo  estava velho, mas ainda portava uma aura de galã; o tenor meio trêmulo conseguiu puxar os versos  da encantadora  Fascinação.  Isso deve ter sido perto de sua morte:  blazer,  gravata, o rosto atolado em maquiagem,  bigode e cabelo teimosamente pretos.  Com pouco tempo, deve ter morrido; ele faleceu em 1985 e nasceu em 1913.  Era  argentino de Buenos Aires. Estava ali, encostado numa boate-meio-quase-churrascaria, um dos mais importantes nomes da Era do Rádio neste país.  Seus pais eram italianos e Carlos Galhardo era Catello Carlos Guagliardi.

 Veio para o Brasil com dias de nascido, e então  segue para São Paulo e termina por bater com os costados no Estácio no Rio de Janeiro, onde vai se tornar alfaiate, e é em 1935 que se tem o início de sua carreira cultuada no Brasil;  ele era um cantor que falava de amor e, com isto, cativava uma geração de tendência romântica, como se as mudanças no país não tivessem atrapalhado a estética da modinha que englobava  beijos velados a se fazerem tenazes no imaginário. O caminho começa com Cortina de Veludo e pouco a pouco foi se criando O Cantor que Dispensa Adjetivos, atuando nas grandes gravadores da época, desde os tempos das 78 rotações, no modelo que imperou até a altura dos anos 50. Ele é vencido pelo famoso long-play que cabia muita música e era mais fino, muito mais difícil de quebrar e com melhor qualidade de gravação. O pesadão era o de 78 rotações e 14 polegadas.

Quando eu era menino, assim por uns 18 anos, ouvi dizer, várias vezes, que o de 78 era feito com cera de carnaúba do vale do Açu no Rio Grande do Norte. Lembro quando o long-play entrou e o primeiro que vi foi em Palmares, Pernambuco. Passa tempo e aparece a primeira radiola lá em casa: era a Flor de Liz da RCA Victor. Tenho o móvel. Era um belo móvel de imbuia. Dentro, o pick-up e o rádio, além de visões para colocar os álbuns de disco.  A radiola ainda não era uma cois comum e estou falando em 1958. Os amigos se visitavam levando long-play para ser ouvido. Alguns chegavam a ter o disco, mas não tinham como tocar e levava na casa do amigo. A juventude já começava a ouvir os acordes do rock, mas o pessoal da Era do Rádio ainda pontificava.


Foram muitas as músicas cantadas por Carlos Galhardo que ficaram em minha memória, desde a tenra idade em Penedo, quando era ouvido em um Zenith com ondas média, larga e curta e um olho mágico que ajudava na sintonia fina, com a antena imensa passando por cima do telhado e danando-se para o fundo do quintal.  Carlos Galhardo fazia parte do que vou chamar de sons e tons de uma cidade, no caso, a Penedo de minha infância. Carlos Galhardo se confunde com o que chamarei de recordações dos sons penedenses, pois ele viva nas raríssimas casas que teriam um pickk-up  e menos ainda radiola, nas inúmeras casas com rádio, nas festas de rua pelos serviços de auto falante e na seleção que tocava nos cinemas, mormente, nas soiré.

Clique para ouvir Elis Regina
 https://www.youtube.com/watch?v=cjNFHV2mxAg 

Antes de começar o filme, as pessoas sentavam e ficam conversando, em um papo, ouvindo música e à espera da terceira chamada, quando então tocava o que era chamado de prefixo do cinema. Lembro que em um deles, tocava a Aquarela do Brasil e no outro parece que Delicado. Você jamais consegue desalojar os sons de sua cabeça; eles fazem parte do cotidiano e são das mais diversas formas e valia. Carlos Galhardo não começou e terminou em Penedo; anda comigo pela vida e está aqui quando penso em sons de Penedo.  Eu não sei quando Fascination entrou nos meus ouvidos que jamais se libertaram da melodia. Possivelmente, eu comecei a ouvi-la a partir de uma versão inglesa que, comparada à em português, praticamente nada tem em comum.  Quem sabe, ela não seria bem diferente da sua feição inicial, composta em 1905 na França por Fèraudy e Marcheti.
 


Fascination


 It was fascination
I know
And it might have ended
Right then, at the start
Just a passing glance
Just a brief romance
And I might have gone
On my way
Empty hearted

It was fascination
I know
Seeing you alone
With the moonlight above
Then I touch your hand
And next moment
I kiss you
Fascination turned to Love

Clique para ouvir Cole
https://www.youtube.com/watch?v=fQknNaxLAaA

A primeira versão brasileira foi gravada em 1943 por Carlos Galhardo e era de  de autoria de Armando Louzada e nada tem com a versão para o inglês:  são duas poesias diferentes para uma mesma melodia, mas ambas guardam aquilo que me fascina em Fascination: o tom nostálgico e o adocicado das cordas quando diz que o cara sabe que é fascintion.  Ninguém pode esquecer, a interpretação dada por Elis Regina. Ela desfaz de uma forma sutil, toda a ideia da construção francesa e da construção americana, para dar uma tonalidade nossa a este lamento de amor.
Antigamente, como não havia a profusão das lojas de confecção, rara a casa de classe média que não tivessse o que se chamava de quarto de costura e, no mínimo, um lugar de trabalho onde ficasse a máquina de costura.  Lá em casa era uma Singer, comprada à prestação ainda quando meus pais moravam em Quebrangulo. Minha mãe costurava e bordava pedalando a máquina que, em Penedo e na rua da Penha, ficava na varanda. Não era raro ouvir uma voz a se dizer maviosa,  infiltrando-se no meio dos ruídos das pedaladas, a linha enlaçada a brotar da carretilha. A voz em falsete falava de um modo extremamente delicado: Is sonhos mais lindos sonhei.

A máquina se encontra comigo e fica à esquerda da porta do meu quarto. Passo por ela e vez em quando me lembro da Fascinação, sinal de que, realmente, os  sons se agarram em nosso cabelo.

 São muitas as músicas  cantadas por Carlos Gargalhado e que eu ouvia rebatidas dentro de casa. Já falei no Salão Grenat e agora lembrei-me de uma que retinha toda a condição de uma cavernosa modinha: A pequenina cruz do teu rosário:

Clique
 
 A pequenina cruz do teu rosário


Agora que eu não te vejo ao meu lado
A segredar apaixonadas juras
Busco às vezes do nosso amor de outrora
A recordar nossas íntimas loucuras
Faz tanto tempo, nem me lembro quando
A vida é longa e o pensamento é vário
Tu me mostravas vil, no idílio santo
A pequenina cruz de teu rosário
E sempre que eu a via, recordava
Do nosso amor, a fantasia louca
Todas as vezes que a pequena cruz beijava
Eu beijava febril a tua boca
Mas o tempo passou triste eu segui
Da minha vida um longo itinerário
E nunca mais, nunca mais eu vi
A pequenina, a pequenina
Cruz de teu rosário.


Como os dois faziam amor? Eu não consigo imaginar como seriam as íntimas loucuras, mas posso entender que o pensamento é vário a vida  é longa e vário dá uma rima imediata com itinerário É incrível o que se evidencia nesta história de vida, com a cruz tornando-se intermediária de algo essencialmente erótico. O Salão Grenat era um outro tchan. Era a volta ao ninho onde existia uma felicidade que foi jogada fora. Sofisticada no ninho francês, preenchida de música e perfume, a felicidade poderia refazer-se: 

Clique o Salão Grenat 

Quero negar que é saudade,
Chamando curiosidade
O que estou a sentir.
Abro a porta, temeroso...
Do impossível, esperançoso:
De te ver a sorrir!
Num salão Grenát
Paira pelo ar
Nota esmaecida.
Um perfume teu
Resto da canção que foi minha vida
Triste em solidão
Teu piano está como eu estou
Sentindo aumentar
Da saudade a dor
De quem me abandonou
Sei que hás de voltar
Ao salão Grenát
Que era o nosso ninho
Tornarás a ter todo meu amor
Todo o meu carinho
Sei que voltarás
Pois hás de lembrar
Que foste feliz
Nunca houve alguém
Que quisesse o bem
Que eu sempre te quis. 


Muitas e muitas músicas de Carlos Galhardo ficaram gravadas e tudo decorria de meu pai e de mimha mãe, especialmente depois que foi comprada a Flor de Liz que não era RCA como afirmei antes, mas Standard Eletric. Discos comprados em Palmares, em Recife e em Natal. Sempre, aqui e ali, Carlos Galhardo. 
Como separá-lo de minhas recordações de vida? Acho que a música é um botão de start para muita coisa, incluive para relembrar