Umas poucas palavras
Luiz Sávio de Almeida
A temática do negro em
Alagoas tem um recente perfil de estudos e ele começou a ser esboçado, efetivamente, na medida em que surgiu
o movimento negro. Inclusive deve ser considerado que o NEAB
da UFAL jogou papel importante, sobretetudo depois que deixou sua fase
intelectualizada do tempo do João Azevedo, fascinado pela documentação sobre os
Palmares, indo encontrar-se mais diretamente com o movimento negro.
Não é possível falar que exista uma historiografia
em Alagoas ou uma ciência social sobre o
negro e que chegue perto do razoável em
termos de volume, embora se tenha diversos textos de categoria; no entanto,
eles são dispersos, sem produzirem a possibilidade de uma visão abrangente
sobre a condição negra alagoana, tanto em termos de passado quanto em termos de
presente. Pouco foi produzido quando se olha para o passado e pouco se tem
quando se olha para o presente. É preciso que novos valores surjam, que a
temática negra seja vista como central para o entendimento desta coisa chamada
Alagoas, não importando a base teórica e ideológica que informe os
trabalhos. Talvez seja possível pensar
numa renovação semelhante à que aconteceu com os estudos sobre índios em
Alagoas. Quando penso em negro em Alagoas e olho para o passado, o marco que se
apresenta é o nome de Abelardo Duarte com sua chamada sobre a religião e aquilo
que considerava como folclore negro.
É dentro do espírito de
renovação de temática e de ampliação de produção, que aparecem os nomes, por
exemplo, de Ulisses Rafael, Bruno César Cavalcanti e Rachel Rocha. É excelente
somar Jane e seu mestrado em Antropologia - começou sua vida no Curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Alagoas - em face de sua vontade, capacidade de trabalho e busca de formação
teórica. Jane demonstra-se uma jovem e
dedicada pesquisadora em busca de consolidação de um rumo de pesquisa e tomara
que sempre prevaleça a condição da vida negra em suas preocupações.
Nesta oportunidade,
Espaço entra na Festa de Iemanjá e eu mesmo entro com meu orixá de frente que é
Xangô (Cabecinha!). Estamos lá. Jane coloca um painel interessante, que passa pelas
vissicitudes do quebra de 1912, demonstra a distribuição espacial densa dos
cultos e trata especificamente sobre Iemanjá e sua festa, que na verdade,
acompanho desde priscas eras, desde os tempos em que se procurou dar ênfase às
comemorações na chamada orla, esvaziando, quem sabe, o distante que era a sereia do Major.
Vale a pena ler seu
material criterioso e despreconceituoso, discutindo autores, demonstrando o
tamanho dos cultos, dando elementos da história para entrar nas suas anotações
inteligentes sobre a Festa, uma espécie de demonstração da amplitude
territorial dos terreiros, demonstrando-os capazes de refazerem o espaço
religioso tanto para fora (a festa) como para dentro (o baixo). Aliás os terreiros podem ter uma amplitude
incalculável. Por exemplo, agora, eles tomaram as páginas desta edição e fez de uma forma a deixar-lhe a
dimensão religiosa que os orixás requerem. É assim que os terreiros estão em Espaço e é assim que estão no próprio
texto da Jane.
Saravá! Que eu vou de
banda!
Janecléia
Pereira Rogério é bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade
Federal de Alagoas. É mestre em Antropologia pela Universidade Federal de
Pernambuco e professora de ensino religioso da rede estadual de Educação, onde
leciona a disciplina na Escola Estadual Dr. Miguel Guedes Nogueira. É também
pesquisadora/colaboradora do Laboratório da Cidade e do Contemporâneo (LACC) do
Instituto de Ciências Sociais da UFAL.
Maceió:
religião afro e a festa de Iemanjá
Janecléia
Pereira Rogério
A religião afro-brasileira em
Alagoas: O quebra em 1912
Há quase cinco anos, o
Laboratório da Cidade e do Contemporâneo – LAAC/UFAL vem produzindo pesquisas
que buscam compreender como as manifestações culturais e religiosas negras
representam seus símbolos no espaço alagoano. Dois artigos foram publicados
sobre o tema: Maceió, cidade negra –
diversidade e distribuição espacial de manifestações, bens e serviços
afro-brasileiros (2007) e Mapeando o
Xangô – notas sobre mobilidade espacial e dinâmica simbólica nos terreiros
afro-brasileiros em Maceió (no prelo), cujo objetivo é o de tentar
descrever os lugares onde são realizadas essas manifestações e como seus
espaços vêm se modificando ao longo do tempo. O Laboratório conta com a orientação dos professores Bruno
César Cavalcanti e Rachel Rocha de Almeida Barros.
Datam
pelo menos de 1905, em Maceió, algumas matérias jornalísticas sobre as
religiões afro-brasileiras, então denominadas de “Xangô”, que podem ser lidas
como verdadeiras campanhas contra toda uma história religiosa negra que se
desenvolveu no Brasil. Os termos mais usados pelos jornais da época para se
referirem aos cultos eram “feitiçaria” ou “bruxaria”, que são, ainda, usados pela população (e alguns grupos
religiosos evangélicos) com sentido preconceituoso e pejorativo.
A
partir daqueles jornais é possível perceber, também, que os cultos afro-brasileiros no início do
século XX eram postos em relação com a política local. È possível verificar que
se dava o crescimento de uma camada média, e de grupos sociais mais populares, reforçando o
esboço de facções políticas na cidade, quando se formará a Liga dos
Republicanos Combatentes em Homenagem a Miguel Omena que se aliará, em 1912, a
grupo político oposicionista com a intenção de derrubar Euclides Malta,
acarretando perseguições às casas de cultos na cidade de Maceió, e chegando a
várias cidades do estado.
A
história da repressão aos cultos afro-brasileiros mostra que intervenções
intimidatórias foram comuns em várias partes do território nacional, como
fechamento de terreiros, espancamentos e prisões de líderes religiosos, que
compõem um capítulo da história dessas práticas religiosas no Brasil. Em Maceió
- quando cotejamos a nossa história com a de outros estados a
partir da bibliografia que consultamos
-, essas ações repressivas parecem ter tido um caráter especial, mais violento
e exterminatório, naquele ano de 1912.
É desta forma que pode ser lido o episódio
conhecido, ainda, como o “quebra-quebra” dos terreiros de Maceió, ou,
simplesmente, “operação Xangô”, que ocorreu em 1912. Neste caso, não se tratou
apenas de algumas casas de culto que foram fechadas, ou de alguns pais e
mães-de-santo que foram perseguidos, mas de uma intervenção que nos parece ter
sido contra todos os templos religiosos afro-brasileiros da cidade, na medida
em que relacionamos número de terreiros e população, apesar de não se poder
ter um critério de resultados precisos. Trata-se
de um quebra realizado por uma parcela
da população que investiu contra os
terreiros, arrancando dos pejis as imagens das divindades, os paramentos
sagrados e jogando os objetos em praça pública, onde parte foi queimada.
Nos
dias que sucederam a esse episódio, foram presenciadas cenas de perseguições,
de humilhações públicas e de espancamentos. Depois, parece que ocorreu uma
dispersão de líderes religiosos para outros estados com o objetivo de escaparem
dessa fúria de repressão. Uma das conseqüências desse episódio foi o
afloramento do que foi chamado de “xangô rezado baixo”, modalidade de
resistência política de uma prática religiosa que se desejava silenciar, sendo parte, portanto, do complexo de formulação
estratégica de um grupo sob forte impacto de dominação, segundo observa o
professor Sávio. Este sentido foi por ele registrado em Maceió, depoimento de
um babalorixá nagô, ainda na década de sessenta do século XX, portanto vários
anos após o registro do Gonçalves Fernandes, segundo consta de anotações de
pesquisa do professor que, inclusive, chama a atenção para ter-se o cuidado de não se transformar o
episódio em mera situação da política branca, onde as Salvações de Hermes da
Fonseca, transformadas no ritmo da Soberania alagoana, assumam o contexto do processo político minimizando-se
o negro pelo privilegiamento da política branca.
Antes do quebra, e
segundo os relatos do historiador Félix Lima Jr., os batuques em Maceió
eram ouvidos em vários bairros na primeira década do século XX. Batuque,
ainda segundo o professor Sávio em entrevista que realizamos, poderia estar
equivalendo à fala pública negra, e
tinha no texto do Félix Lima Júnior
sabor político semelhante ao que estava nas diversas posturas municipais
do século XIX. Batucou: cadeia! Diz ainda, que variou a forma de expressão
pública do culto aos orixás, haja vista, inclusive, o que ocorria no complexo
escravocrata da senzala que jámais permitiria uma organização religiosa em
evidência de batuque. Diz Sávio, que o
rezado baixo ou forçar á reserva pública era a tradição frente ao incisivo
domínio católico, por exemplo, nos engenhos onde estava concentrada a massa
escrava. Neste caso, rezado baixo passaria por
não deixar evidente uma forma pública religiosa.
Abelardo Duarte que
reuniu peças sobreviventes da destruição - e que foram expostas como
documentação da barbárie e depois lançadas num depósito da Perseverança e
Auxílio dos Empregados do Comércio, onde durante décadas permaneceram
esquecidas - observou que boa parte delas não foi feita em Maceió, afirmando a
existência de contatos das casas de culto da cidade com candomblés da Bahia e
com centros da África – intercâmbios de peças e de informações que transitavam
de um lado a outro dos dois continentes. Era o negro em evidência: religião, no
caso, encontrava as Salvações e chegar ao negro equivale a ver o quebra - como Sávio comenta - por baixo.
Gonçalves Fernandes
(1941), no seu livro O Sincretismo
Religioso no Brasil, menciona, em Alagoas, o “xangô rezado baixo”. Diz o autor
que após a perseguição e destruição de terreiros em Maceió, “as cerimônias
se passam num tom de reza ciciada”, acabando-se os terreiros, os toques, as
danças. Comenta o professor Sávio na entrevista mencionada, que foi uma má
leitura realizada pelo autor. A ação em jogo não era ciciar, mas operacionalizar uma forma política
e que terreiros, toques, danças não se acabaram: recolheram-se entrando em
trânsito, para irem se recompondo.
É importante deixar
claro que não há evidências de pesquisas empíricas nos terreiros da cidade de
Maceió, mas uma simples visita do autor, em 1939, a um terreiro da
cidade. Foi com base nessa experiência que ele ajudou a divulgar a expressão “xangô rezado
baixo”, e que é reforçada por Luiz Sávio de
Almeida, Douglas Apprato e Ulisses Rafael, apesar do professor Sávio
considerar que Fernandes realizou uma leitura insuficiente e sem discutirr o
fundamento estratégico da questão. É um termo não muito conhecido atualmente entre os adeptos do culto no estado.
Hoje
observamos que mesmo com toda repressão vivenciada,
essas referências não desapareceram da memória e da vida da população. É
importante lembrar que, em face do quebra, o problema da história da
religiosidade afro-brasileira em Alagoas, especialmente em Maceió, adquiriu
caráter particular. De modo geral, Maceió reconstruiu seus terreiros a partir
de circunstâncias específicas, vendo-se como uma cultura perseguida e
“controlada”, mas afirmando-se como expressão religiosa. Neste contexto, as
expressões religiosas afro-brasileiras mudaram suas práticas e seus fundamentos
para adaptarem-se às novas condições sociais. A expressão do culto cresceu, o
que se pode comparar cotejando o sentido do batuque que comentamos e o
extraordinário titulo de um livro: Os Tambores Ponta Grossa, de ... Os
antropólogos Bruno César e Rachel Rocha sempre têm dado destaque ao episódio ocorrido
em Maceió e à associação de suas conseqüências com outros aspectos culturais
das populações negras.
Tentar classificar,
quantificar e localizar as casas de Xangô em Maceió foi/é um trabalho difícil e
escorregadio. Cada dado colhido está passível de mudanças futuras. A cada dia,
semana, mês uma nova casa é aberta,
fechada, ou tem seu endereço modificado.
O
mapeamento por nós realizado em 2007 (LACC) demonstra que o Xangô em Alagoas,
especialmente em Maceió, é religião demograficamente expressiva (ver mapa). Com
base nos dados cadastrais colhidos nas três federações pesquisadas na cidade
Maceió, e através de idas sistemáticas à orla marítima da cidade no dia de
homenagem a Iemanjá, localizamos 2.125 (dois mil cento e vinte e cinco)
terreiros no Estado, dos quais existiriam 466 (quatrocentos e sessenta e seis),
em Maceió podendo esse número ser bem maior. Segundo os próprios diretores das
federações existem mais terreiros não cadastrados do que cadastrados.
A mãe de
todos os Orixás
É para dentro dessa experiência
religiosa na vida dos adeptos que direcionamos a imagem de Iemanjá, orixá que nos cultos
afro-brasileiros tornou-se modelo feminino por excelência no panteão. Iemanjá
associa vários atributos diferenciados que geram uma imagem complexa de mãe,
virgem, sereia, santa, mulher, guia e senhora da cabeça e vida de seus filhos,
transformando-a numa entidade essencialmente maternal, feminina e quase
assexuada.
A saída das oferendas |
Para
Ramos (s/d:246) a “mãe inacessível,
porém, transmuda-se na protetora, que acode aos aflitos, resolve dúvidas e
problemas de vida, consola os desgraçados, como está no culto materno de todas
as religiões”. Segundo o autor, o “primeiro elemento insciente da atração
materna está nos seus atributos de beleza, a exigir do apaixonado todo um
adereço de bourdoir: sabonetes, frascos de perfumes, fitas, pentes, etc. E os
cânticos são lânguidos e doces, evocando-lhe a
beleza interdita e fatal, a beleza inacessível aos seus filhos”.
Segundo
Segato (2000:51 e 55), em alguns terreiros de Recife, “Iemanjá é vista como um pouco menos feminina porque é a mãe dos orixás
e é, por isso mesmo, mais velha e mais inibida. Apesar de seus gestos meigos,
ela mostra menos interesse em dar-se ou prestar atenção nos outros. Ela é, em
geral, mais distante, e sua meiguice é interpretada, simplesmente, como ‘boas
maneiras’ ou ‘polidez’ no trato”, e que, “nada senão obediência e respeito” lhe são oferecidos. Mas, como boa parte do país, em Maceió, pode falar que
a imagem de Iemanjá segue o padrão de mãe, protetora, bondosa, e detentora de
um grande poder e respeito.
A montagem do espaço do sagrado |
Iemanjá
é a mais popular das divindades afro-brasileiras
do país hoje. Seu culto expandiu-se enormemente no Brasil, não só nos terreiros
ditos tradicionais, mas também nos grupos mais aculturados, como a Umbanda.
Associada às águas.
é cultuada pelos pescadores e pela população em
geral. Talvez o mito de origem de Iemanjá
explique um pouco a importância dessa divindade para a religião
afro-brasileira. Segundo Pierre Verger, na África,
Iemanjá era associada ao mar, sendo ela filha de Olokum, deus (Benin) ou deusas
(Ifé) do mar.
Conta
um dos mitos que Iemanjá era filha de Olokum, deus (Benin) ou deusa (Ifé) do
mar. Em Ifé casou-se com Olofin, tendo com ele dez filhos, todos orixás.
Cansada de viver em Ifé fugiu em direção do “entardecer-da-terra”; chegando lá,
casa-se com Okerê. Como ele a maltratava, ela resolve fugir. Enfurecido, Okerê
manda um exército atrás dela. Como estava sendo alcançada, Iemanjá
transforma-se num rio para correr mais depressa. Tentando impedir sua fuga,
Okerê transformou-se numa montanha, barrando sua passagem. Vendo bloqueado seu
caminho, ela pede ajuda a Xangô, o mais poderosos de seus filhos. O orixá do
fogo junta várias nuvens e, com um raio, provoca uma grande chuva, que enche o
rio, e com outro raio parte a montanha em duas e Iemanjá foge para o mar. E
segundo as lendas, é por isso que seus filhos lhe fazem oferenda para lhe
acalmar e agradar.
Considerada
a mãe de todos os orixás e a deusa dos mares e oceanos, Iemanjá rege a
maternidade e a fecundidade. Gosta muito de flores, sendo costume oferecer-lhe
rosas brancas abertas, que são jogadas ao mar como forma de agradecimento. Usa
um adé com franjas de miçangas que
lhe cobre o rosto. É o orixá que preside a
formação da individualidade.
O momento sagrado
Nossa
pesquisa empírica e relatos sobre a homenagem à Iemanjá pelos adeptos da
religião demonstram que os horários e locais onde são realizadas as entregas
das oferendas vêm se modificando a cada ano. Segundo alguns filhos-de-santo de
Maceió era “comum” os terreiros da capital irem à orla marítima realizar suas oferendas,
mas o desrespeito da população às tradições religiosas afro-brasileiras, a
sujeira da praia e os furtos aos objetos sagrados (flores, dinheiro, perfume,
sabonete...) fizeram com que os terreiros da capital realizem suas oferendas
durante a madrugada do dia 8 de dezembro, ou em praias distantes. Por ser mais
tranqüilo.
Mas
ainda observamos um grande número de pessoas vestidas com roupas-de-santo e formando
seu “terreiro” para reverenciar Iemanjá e os outros orixás, pois mesmo sendo um
dia para Iemanjá todas as outras divindades são prestigiadas na gira.
Percebe-se também, durante todo o dia 8, atitude de devoção de não adeptos, com
entrega de rosas ao mar, em troca de proteção. Para quem oferta o momento da
entrega da oferenda é sagrado, da mesma forma que é sagrado o espaço.
Não
existe uma data precisa de quando se deu início às festividades em homenagem à
Iemanjá nas praias de Maceió. Mas é em busca de seus devotos que há cinco anos
consecutivos e sempre no dia 8 de dezembro vamos às praias da orla marítima da
cidade, especialmente à praia de Pajuçara, local de maior concentração das
homenagens a essa divindade, para realizarmos registros fotográficos,
filmagens, pequenas entrevistas e observações sobre o ritual, e assim,
compreender um pouco esse universo religioso no estado.
Os
ônibus chegam cheios de adeptos que vêm do interior do Estado. Na maioria das
vezes, as mulheres já vêm com seus vestidos cheios de anáguas, calças
compridas, colares, lenços ou coroas em suas cabeças, etc. E os homens com
calças compridas, blusas com mangas compridas, gorro e colares. Tudo nas cores
de Iemanjá, podendo ser também na cor do seu orixá de cabeça, ou branco, no
caso da Umbanda. Chegam prontos para começar o toque (ritual
religioso com os cânticos e atabaques), que é realizado ali mesmo, antes
da oferta no mar.
Como
se estivessem no terreiro forma-se, no caso da Umbanda a gira, que é aberta com
os toques dos atabaques e os cânticos em homenagem não só a Iemanjá, mas a
outras divindades. O calor denso aumenta gradativamente com o surgir da tarde,
cresce a movimentação intensa da multidão aglutinada em toda extensão da praia
e se misturam ao ritmo dos atabaques parecendo contribuir para as incorporações.
Dentro de algumas barcas, além dos presentes, como perfumes, sabonetes,
arranjos de flores, frutas, etc, é possível observar pequenas imagens de Nossa
Senhora.
As
obrigações para Iemanjá têm início dias antes da festa. O primeiro momento é a
escolha dos produtos ofertados, como velas, perfumes, sabonetes, pentes,
bonecas, frutas, flores, bebidas, fogos, etc., seguido pela montagem da barca,
que em alguns casos vai para o mar com os presentes, e em outros voltam junto
com as imagens. Tudo e todos os envolvidos devem estar purificados. Cada filho
de santo oferece o que pode, como alguns adeptos mesmo relatam, é ela uma
divindade que pouco cobra de seus filhos, mas é muito exigente em suas
obrigações, e com, o que lhe é prometido.
É
um dia onde todos se dedicam exclusivamente à sua homenagem. Nada pode sair
errado, pois não é uma simples homenagem a uma divindade, mas um ato de
respeito e honra à mãe de todos. Enquanto não se aproxima o momento de levar as
oferendas ao mar, as incorporações acontecem ao som dos atabaques, das palmas,
dos cânticos; e do girar sincronizado e insistente, que faz com que o rodopiar
fique cada vez mais rápido.
Próximo
da hora de levar as oferendas ao mar, várias filhas de santo continuam
dominadas pelo orixá das águas salgadas. Muitas vezes essa incorporação dura
até a divindade ver as jangadas voltarem do mar com seus filhos. Muitas filhas
ainda incorporadas cantam, realizam curas, muitas delas rolam na areia da
praia, próximo ao mar. É o momento onde todos, adeptos ou não, trazem oferendas, escrevem seus pedidos, ou
silenciosamente os anunciam para Iemanjá.
Geralmente,
o ritual, na praia segue um mesmo padrão: um jangadeiro é contratado para levar
a oferenda até longe da margem. Quem leva as oferendas são os filhos de
Iemanjá. Ainda em transe, algumas filhas cantam para a Rainha do Mar. As
oferendas vão sendo levadas até o mar, até os jangadeiros voltarem. Para muitos
é a festa mais bonita. É o momento
onde são reveladas crenças, visões de mundo e de sociedade, estando as relações
sociais inseridas no sobrenatural. Durante todo o dia, os olhares voltam-se
completamente para o mar, contemplando sua “força”. A mesma força necessária
para se enfrentar os desafios da vida cotidiana.
O valor simbólico religioso da
praia, nas oferendas para Iemanjá, se faz presente na liturgia da oferenda e no
ato da entrega; em seguida, esta passa a ser um espaço não sagrado. Para o
religioso, a praia tem duplo simbolismo, o de pertencimento religioso e o da
presença da divindade no lugar. Antes da entrega da oferenda temos um espaço
que não é religioso, mas espaço de lazer. No momento da entrega da oferenda, o
espaço deixa de ser profano, isto é, perde seu caráter de uso cotidiano e
adquire qualidades de lugar religioso. Findando o ato da oferenda, o lugar
religioso volta a ser um espaço profano.
REFERÊNCIAS
CAVALCANTI, Bruno César & BARROS,
Rachel Rocha de Almeida Maceió, cidade
negra – diversidade e distribuição espacial de manifestações, bens e serviços
afro-brasileiros. In Bruno C. Cavalcanti, Rachel Rocha de A. Barros e Clara
Suassuna Fernandes (orgs.) Afroatitudes.
Maceió: NEAB/Edufal, 2007, pp. 63-74.
______________ & ROGÉRIO, Janecléia
Pereira. Mapeando o Xangô – notas sobre
mobilidade espacial e dinâmica simbólica nos terreiros afro-brasileiros em
Maceió. In Bruno C. Cavalcanti, Rachel Rocha de A. Barros e Clara Suassuna
Fernandes (orgs.) Kulé-Kulé. Maceió:
NEAB/Edufal, (no prelo).
DUARTE,
Abelardo. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico de Alagoas. Maceió, 1952, vol. XXVI.
_________ Catalogo Ilustrado da Coleção Perseverança.
Maceió: Departamento de Assuntos Culturais - SENEC, 1974.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
FERNANDES,
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MOTTA, Roberto. Tempo e Milênio nas Religiões
Afro-brasileiras in XXXIV
Encontro Anual da ANPOCS. Petrópolis, 2000
RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. 4° ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2001.
SEGATO, Rita Laura. “Inventando a natureza: Família, sexo e
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religião do corpo e da alma. Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
VERGER. Pierre.
Lendas Africanas dos Orixás.
Salvador. Corrupio, 1997.
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