Vamos
evidenciar a conjuntura que desembocou na série de acontecimentos conhecida
como “O Quebra de 1912” .
Pretendemos observar como se constituiu
o discurso que co-fundamentava a perseguição sobre os grupos de religiosidade
de matriz africana em Maceió, durante os primeiros anos do século XX,
cidade que oscilava entre o provincianismo dos pequenos povoados
e passando por reformas e melhoramentos em sua estrutura física. É importante,
para contextualizar a realidade de Maceió,
entender a crise econômica que passava o Estado. O governo afirmava que não
havia sido dada solução por causa da conjuntura federal desfavorável; o
discurso oposicionista mesclava falas a respeito de denúncias de corrupção e
inércia do governo, e também associava os termos: Crise - Euclides – Xangô.
Os impasses políticos e o xangô
O
período anterior ao movimento de violência se demonstrava propício para a liberação
dos cultos africanos. A primeira justificativa para isso é dada quando tratamos
do processo sincrético, que, até certo ponto, se configurou como elemento que
fermentou esse processo de “aceitação” das religiosidades africanas
Naquele
momento – a transição republicana –, o catolicismo necessitou traçar o mínimo
diálogo entre as instâncias do oficial e do popular. O resultado disso? Aceitação
estratégica de alguns elementos dessa cultura popular, que estava impregnada do
imaginário do Candomblé. A questão era permitir a religiosidade popular, até
que não ferisse elementos primordiais da doutrina oficial.
A montagem dos Maltas e da oposição
Pela
parte do processo de oposição à Oligarquia de Euclides Malta e de seu irmão,
montava-se verdadeiro aparelho para-estatal que consideramos uma antecipação da
organização do movimento integralista no
Brasil. A famosa “Liga dos Republicanos
Combatentes em Homenagem a Miguel Omena” encaixava-se nos pré-requisitos de uma instituição para-militar
que urgia por sentimentos como a ordem e principalmente a limpeza étnica. Em
nota do “Jornal de Alagoas” de 13 de Fevereiro de 1912 podemos observar algumas
características desse grupo.
Mesmo
cometendo atos ilícitos contra a liberdade de culto, infligindo dessa forma a Constituição,
a Liga se coloca a favor desses princípios legais – denominando-se como o “lado
do bem”, ao mesmo tempo em que denunciam as calúnias que estavam sofrendo dos
“adeptos de Chango” – agora, o “lado do mal”. Na Liga dos Republicanos e só
existiam “homens dignos e amantes do Direito e da Liberdade...”. Em suas ações,
distribuíam folhetins, fechavam repartições públicas, vaiavam cidadãos e
invadiam residências, e inclusive em momento posterior, o próprio Palácio dos
Martírios forçando a fuga de Euclides para o Recife (NEVES, 2004, p. 203).
Ainda na nota de 13 de Fevereiro de 1912 são ditas, de
forma muito garbosa, a aceitação, comoção e disponibilidade em ajudar que os
integrantes da associação, considerada como “carbonária” por Abelardo Duarte
recebiam da população. “Em nossa sede temos recebido diversos objectos
pertencentes à Bruxaria levados pela massa popular.”. Nesse período, com a
divulgação dessa nota, se efetivava o maior número de ocorrências de quebras de
terreiros pela cidade. “A onda de populares que tem dissolvido mais de setenta
ninhos de bruxaria...” (Jornal de Alagoas, 13 de Fevereiro de 1912). E a
própria Liga também possuía um jornal onde era efetivada a campanha contra a
Oligarquia Maltina e o Xangô – “O Combatente”.
Malta e o xangô
Os
“próceres do fanatismo” colocados nas noticias do dia 20 de Fevereiro de 1912,
são as “bugigangas dos santos” que remetiam a figuras como “Ogum Taiô, Tia, Macuca
e Leba.”. Essa última era a expressão de
Exu feita naqueles cultos – Exu-Legba, que em muitos deles era a associação ao
Diabo, como nos conta Bastide, e que, em parte das propagandas anti-governistas
era imediatamente direcionado a figura de Euclides Malta e seus
correligionários (que eram apelidados especificamente dessa forma – “os Lebas!”).
Inclusive com acusações de que, rituais
próprios como estupro de garotas virgens seriam realizados em uma câmara
secreta nos fundos do Palácio dos Martírios, em homenagem e oferenda a
Exu-Legba e outra divindade - Ali Baba (NEVES, 2004, p. 105).
Inclusive, uma das tiradas mais ácidas na satanização
do Euclides Malta, assim como dos cultos a Xangô é a da história posta em nota do
primeiro dia de Carnaval (20/2/1912). Tratava-se de reclamação de alguém
assinado “chorona inconsolável” e que reclamava com os editores do “Jornal de
Alagoas”: o famigerado “Ogum-Euclides-Taiô” teria roubado o seu marido. Nesse
caso o marido era o próprio rei-Momo, “a alegria do povo”. Como ponto final, diz:
“-Console-se Moma, tenha paciência, elle um dia chorará também no inferno e seu
marido pode voltar para o anno.”
Em
muitos momentos na seção “REFLEXÕES” do “Jornal de Alagoas” era realizada a
associação entre o governo de Euclides e “a negra tirania de Xangô”. Como se a
pureza sacralizada do poder secular estaria rompida e estuprada por poderes
satânicos próprios do culto a Xangô. Nessas “REFLEXÕES” feitas nos dias 20 e 21
de Fevereiro de 1912, os cultos a Xangô são nomeados como “simplórios processos
de porca magia” e que agora, com a saída a miúda do Sr. Euclides Malta do Estado
os seus “feiticeiros tinham perdido o prestigio”. Nelas se encontra a alusão a
uma tirania que escravizava o povo alagoano, e uma das causas do seu poder era,
justamente, “a negra tirania de Xangô” que atormentava com os seus tambores e
seus batuques, tanto quanto os desmandos
do governador. Era a limpeza étnica e cultural se realizando em uma sociedade heterogênea em sua raiz. Quando
da fuga do Sr. Euclides, dizia-se que “(...) partiram todos os malles que nos
affligiam e torturavam...”. E deste modo se representou o caráter muito próprio
das sociedades cristãs e sua relação com o mal e suas personificações.
Todo o
mal que viria cair sobre a população alagoana possuía, agora, sua válvula de
escape, seu bode expiatório. Como no Messianismo Político, a origem das
dificuldades e das tragédias é refletida em uma figura especial e
necessariamente identificada. Naquela ocasião, a apatia da população alagoana,
a má índole dos políticos representantes de oligarquias seculares, a situação
externa que desvalorizava mais e mais o preço do açúcar e etc. convergiam para
que o Estado permanecesse em crise por mais de uma década. Contudo, a
responsabilidade deveria recair sobre alguém, ou sobre um determinado grupo.
Nesse sentido, a seqüência de interdependência Crise – Euclides Malta – Xangô era oportuna
para o movimento oposicionista que se generalizou e se efetivou das formas mais
violentas.
Os começos do Quebra
No
noticiário do dia 4 de Fevereiro de 1912 no “Jornal de Alagoas”, o fato mais
enfático desse processo, aparece na notícia
da noite do “Quebra”. De todas as notas essa é a mais incisiva e ferina, onde a
relação da seqüência de interdependência que mencionamos é externada em todas
as suas possibilidades. Sua manchete é bastante incisiva, como se pode
verificar na figura 1.
A ligação entre a política euclidiana, as
casas de Xangô e o Demônio, cerne mais específico do nosso trabalho, é
externada por termos como “antros endemoniados” e era conveniente relacionar as
ditas casas como lugares de ameaça para a estabilidade social. As Casas de
Xangô eram vistas e tidas como “focos de indolência e prostituição”.
Para a efetivação das práticas de
exorcismo, o jornal oposicionista sempre se refere à atitudes dos populares.
Tática conveniente aos seus propósitos que, no discurso, pousa como a instância
que observara a justiça sendo feita pelo gosto e desejo popular. Inclusive, é
salientada a responsabilidade popular com muita propriedade, “O povo quiz isto
fazer, e fel-o”. Para o momento do saque, que o “Jornal de Alagoas” publicou
como sendo de responsabilidade popular, o texto praticamente fala por si: “Era uma pequena sala,
cheia de pinturas grosseiras, de hyerogliphos de ídolos, de adufos, bancos
immundos e porcarias, onde o suor dos negros, coagulado pelo pó em constante
suspensão impregnava a acanhada atmosphera, envenenando os assistentes; e foi
isso, que antehontem se acabou pelas mãos de quase duas mil pessoas, entre
sorrisos e gargalhadas.” (Jornal de Alagoas, 04 de Fevereiro de 1912).
As notícias complementares revelavam
que, existiria um plano, na dimensão irreconhecível da Bruxaria, para tratar da
morte do Coronel Clodoaldo da Fonseca e do Sr. Fernandes Lima, os maiores
opositores da Oligarquia, e prova é que teriam encontrado bonecos que tinham a forma desses indivíduos
e que perto deles “ardiam velas” para que o trabalho fosse realizado, e mais,
segundo a notícia, existia uma foto do Coronel por debaixo das vestes do Leba,
para que seu futuro assim estivesse trancado e amarrado ao pescoço de um bode
preto sacrificado, que deveria ser enterrado na praia. O “povo” (as aspas são
nossas) teria sido ajudado por algumas guarnições policiais, que após terem
quebrado literalmente tudo, ainda mandaram prender os pais-de-santo mais
famosos da cidade.
O ponto
fundamental do discurso era promover o desmantelamento da Oligarquia Malta. As
matérias dos jornais oposicionistas da época, principalmente o “Jornal de
Alagoas”, são oportunas para que possamos colher esse tipo de discurso.
Existiam fundamentalmente três tipos de associações elementares e constitutivas
da lógica desses argumentos. A primeira era conceber uma culpabilidade pelos atrasos
e pela miséria a qual passava o Estado diretamente aos desmandos da Oligarquia
Malta. Segundo, tornou-se necessário tecer a relação do Sr. Euclides Malta com
os cultos a Xangô. A terceira, era manipular as obviedades do imaginário cristão
católico a respeito do Xangô que, certamente já existiam no linguajar
popularesco à identificação com o mal. Nesse sentido o mosaico se fechava e a
associação era construída. Essa ligação é explicitada, por exemplo, pela nota que se encontra na Figura 2.
Uma das
questões mais importantes é observar em quais momentos, a perseguição contra os
terreiros de Xangô em Maceió extrapolou questões políticas e acabou se
configurando como uma real representação de uma Modernidade tardia que
pretendia se impor ideologicamente. Nesse sentido, era necessário fundamentar
falas que radicalizassem a visão já distorcida das pessoas. Em nota tirada do
“Jornal de Alagoas” de 13 de Fevereiro de 1912, observamos elementos bastante
próprios destas associações. (Ver figura
3)
Conclusão
O
momento que comprova isso se realiza quando, na tarde do dia 3 de Fevereiro,
dois homens levam os despojos de mais de trinta quebras de terreiros para a
redação do Jornal de Alagoas. Um é o de Leba, “o espírito do mal”, que
juntamente com o de Ogum e de Baluaiê foram habilmente arrastados por toda a
cidade para que todos vissem. Finalmente todos os despojos ficaram em
exposição. Outro ponto importante era ratificar elementos que eram
pré-requisitos da religiosidade que estava sendo exorcizada e associá-los a outras
formas de vida impróprias à civilidade. Os cultos de Xangô se utilizavam das
batidas nos tambores assim como de cantorias, e o texto refere-se ao incômodo
que isso provocava, o tormento que provocava. Suas práticas eram irremediavelmente
associadas às modos de vida próprios da vagabundagem, da prostituição e etc.
As
noticias são representativas não só pela necessidade de se expor a alteridade a
uma posição de inferioridade, mas também de que sejam naturalizadas as atitudes
exorcistas. Óbvio, um dos elementos que mais nos chamou a atenção para a
produção do trabalho foi a contradição inerente a uma sociedade dita como
republicana que se esboçava como moderna, mas que tratava de forma violenta um
traço cultural que já existia em seu cerne – o Candomblé. Ou seja, era a
atitude de se naturalizar a violência e respaldá-la em nome de um processo
civilizatório que, contrariava a configuração secular desta mesma sociedade,
que era a mestiçagem não só da cor, mas dos costumes, das referências
ontológicas para a vida e etc.
Nenhum comentário:
Postar um comentário