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LESSA, Golbery. Um programa político para a esquerda alagoana. Tribuna Independente. Maceió, 18 mar. 2012. Contexto
________________________________________________________________________________Um pequeno bilhete sobre rumos em Alagoas
Esta é uma reflexão sobre
os caminhos da esquerda em Alagoas, produzida por Golbery Lessa, contendo
pontos evidentemente controversos. Não importa discordar ou concordar: importa
discutir o que o texto carrega como
polêmica. É preciso que apareçam outros
documentos deste tipo; Alagoas precisa urgentemente entrar na berlinda. Vamos ler e discutir à exaustão, sem perder a noção de
que o tempo passa e que a vida é e sempre foi urgente.
Sávio de Almeida
Um programa político para a esquerda alagoana
Golbery Lessa
A atual esquerda de Alagoas não
tem um programa político para o estado. A injustiça e a infâmia campeiam, a
miséria atinge metade da população, o capitalismo está paralisado numa etapa
primitiva há cinquenta anos, o Estado de Direito é residual, mas a esquerda da
terra de Graciliano, única corrente local capaz de impulsionar o progresso
humano, não demonstra consciência de quais são suas tarefas táticas e
estratégicas. Para ultrapassar a atmosfera econômica, social e política
asfixiante em que vivemos neste pedaço do Brasil comprimido entre os rios São
Francisco e Persinunga, é imperativo refletir sobre as causas desse descompasso
entre pensamento e realidade.
Há uma evidente contradição na
esquerda local (composta pelos intelectuais críticos, os movimentos sociais e
os partidos políticos marxistas) entre sua boa capacidade de refletir sobre o
Brasil e o mundo e sua grande dificuldade de pensar a formação social alagoana,
onde se encontra o pedaço do capitalismo planetário contra o qual lhe é dado
lutar imediatamente. Vários militantes do movimento estudantil, por exemplo,
expressando a situação geral da esquerda, são capazes de dissertar com rigor
sobre a crise estrutural do capitalismo e o Programa de Transição de
Trótski, mas têm poucas informações sobre a superexploração dos trabalhadores
nas usinas de açúcar ou relativas às estruturas fundiárias das três
mesorregiões do estado.
Após a publicação de O
Capital, de Karl Marx, o entendimento do capitalismo de uma formação social
particular, por exemplo, de Alagoas, passou a ser mais difícil do que a
compreensão das leis gerais do capitalismo. Parece um paradoxo, mas é a
verdade. Para repetir ad infinitum o que está escrito em O
Capital, basta ter lido o livro com cuidado e método. Já para aplicar a
teoria do pensador alemão aos casos particulares é preciso capacidade de
percepção do complexo relacionamento entre singularidades e universalidades, o
que demanda domínio do método dialético e criatividade teórica. De modo análogo,
a publicação da teoria de István Mészáros sobre as especificidades da atual
crise do capital, que seria, no seu entendimento, uma crise estrutural e não
apenas cíclica, explica muito da quadra histórica do sistema, mas não explica,
nem poderia fazê-lo devido ao alto grau de abstração que precisa comportar,
como este fenômeno se expressa em cada estado brasileiro.
A esquerda alagoana
sofisticou-se nos últimos vinte anos como em nenhum outro momento de sua
história devido à expansão do ensino superior e o avanço dos meios eletrônicos
de comunicação, tendo absorvido o essencial da tradição científica universal.
Cumpriu, portanto, uma etapa cognitiva necessária para uma corrente ideológica
obrigada a intervir com lucidez na realidade. Contudo, ainda necessita sair do
altíssimo grau de abstração no qual se encontra e desvelar os objetos
particulares que estão ao seu redor, sob pena de perecer enquanto corrente
política relevante. Encontra-se envolta em um internacionalismo alienado da
realidade local, uma espécie de “cosmopolitismo abstrato.”
É sempre mais cômodo e, ao
mesmo tempo, inútil enfrentar o capitalismo sem ponto de apoio algum na
realidade empírica mais próxima. De fato, só através do enfrentamento de suas
manifestações particulares e regionalmente delimitadas pode-se combater o
capitalismo como um todo. O internacionalismo não deve ser a negação das lutas
nacionais e locais, mas o resultado da articulação dessas lutas. A revolução
mundial não ocorrerá em águas internacionais, onde inexistem fronteiras e,
também, relações humanas; acontecerá em territórios habitados por povos
diferentes que articularão suas lutas.
O mais irônico é que, em seu
presente estágio, a hoje erudita esquerda alagoana, quando alfinetada pelas
demandas da realidade estadual, acaba efetivando, tacitamente, a transposição
da análise do sistema capitalista como um todo para iluminar sua ação na
realidade local, repetindo o que mais critica na antiga esquerda mecanicista e
dualista. Do ponto de vista político, o resultado é trágico, como foi no
passado.
Vejamos quais são as duas teses
básicas da esquerda caeté-palmarina.
Deduz das ideias de crise
estrutural (final) ou crise cíclica profunda do capitalismo (mas isso nunca é
explicitado oralmente ou por meio de textos, o que já é indício da dificuldade
de sustentar a dedução) que não seria coerente propor qualquer reforma
econômica, cultural ou política para o capitalismo alagoano; se o capitalismo,
como sistema global, é irreformável e incontrolável, o capitalismo em Alagoas
seria igualmente irreformável e incontrolável; ou seja, não seria teoricamente
sustentável um momento democrático e reformista num programa da esquerda
alagoana para o estado, mesmo que esse momento fosse parte de um processo
de revolução permanente, como propôs Trótsky ara os países
periféricos.
Deduz da ideia de que o Estado
de Direito democrático é a melhor forma de administrar os conflitos numa
sociedade capitalista e legitimar a ordem regida pelo capital a noção de que a
esquerda deveria essencialmente denunciar e contornar esse Estado, atuando o
máximo possível “por fora” das instituições políticas clássicas, como os
parlamentos e os partidos políticos, mesmo os partidos revolucionários. Diante
de uma realidade alagoana na qual há uma enorme carência de organização
política da classe trabalhadora em partidos de esquerda, o Estado Direito
democrático é residual e a luta por direitos formais tem o condão de levar a
massa velozmente a questionar o capitalismo, a nossa esquerda manda dizer que o
Estado de Direito democrático é um engodo, está historicamente ultrapassado e
deve ser abandonado à própria sorte.
É evidente a falta de mediações
geográficas, econômicas e políticas decisivas nas duas teses expostas acima.
Mesmo que se admita uma crise estrutural, final, do capitalismo, disso não se
pode deduzir que essa tendência essencial se realizaria de maneira idêntica em
todos os países e sem contratendências de alguma magnitude, como Marx
demonstrou em O Capital. Do fato de que o sistema como um
todo, num grau bem alto de abstração, seja irreformável e esteja
impossibilitado de retomar um crescimento duradouro, não se pode deduzir
legitimamente que inexista espaço para várias reformas pontuais, mas
significativas, em países e regiões, efetivadas pela pressão das massas
populares e tendentes a minorar as dores sociais do parto da nova ordem que
está em germe dentro da antiga. Nesse sentido, o caso do avanço da reforma
agrária em Alagoas é eloquente (hoje existem 60 mil alagoanos vivendo em
assentamentos que juntos possuem 200 mil hectares de terra, o que representa a
metade da área da cana-de-açúcar e metade de sua força de trabalho agrícola).
Ficassem os sem-terra parados, embasbacados diante da tese da crise estrutural
do sistema, teriam morrido às margens do latifúndio.
Aceitas as acima referidas
teses da esquerda local, torna-se inviável qualquer programa político para
Alagoas que não seja a propaganda das impossibilidades e a defesa imediata da
revolução socialista num único estado da Federação, o que é um absurdo tão
evidente que ninguém tem coragem de explicitar. Atua-se como se fosse possível
saber de antemão exatamente o quanto as políticas públicas poderiam avançar ou
retroagir nos embates efetivos entre as forças populares e o capital. A reforma
agrária seria impraticável, a melhoria da educação seria impossível, os
hospitais nunca poderão melhorar, enfim, a política se transforma num vale de
lágrimas, dada a impossibilidade de propostas concretas imediatas. O programa
máximo socialista passa a ser gritado a propósito de tudo e espera-se que o
trabalhador, num passe de mágica, pule as reivindicações reformistas e
transforme-se num revolucionário. Critica-se o neoliberalismo, defende-se a
escola pública, mas com a ressalva de que ela é, de fato, uma quimera sob a presente
crise final do sistema.
Enfim, unem-se o fatalismo
econômico antidialético e o voluntarismo político.
Um programa para a esquerda
alagoana que supere as dicotomias criticadas pressupõe a conceituação da
realidade que esta corrente política pretende modificar e, portanto, implica na
definição do tipo particular de capitalismo vigente no estado de Alagoas.
Realizada essa primeira tarefa reflexiva, tornar-se possível identificar os
entraves para o progresso econômico, político e cultural e definir as modificações
que a esquerda deve propor para induzir esta formação social a alcançar novos
patamares de desenvolvimento humano.
O capitalismo alagoano tem a
mesma natureza geral dos capitalismos brasileiro e nordestino, entretanto
também apresenta características singulares, peculiaridades que são encontradas
apenas no estado, bem como diferenças entre os vários momentos históricos de
sua trajetória. Entender a formação social alagoana é, pois, o mesmo que
identificar essas peculiaridades e compreender a sua relação com as
características que Alagoas compartilha com o Nordeste e com o Brasil.
Não se trata de perceber o
capitalismo local inserido em um tipo particular distinto do brasileiro (frequentemente
denominado colonial, hiper-tardio, prussiano, periférico, dependente, entre
outras adjetivações), o que nos obrigaria a providenciar um adjetivo que o
definisse; trata-se de usar a teoria sobre a particularidade do capitalismo no
país para entender de maneira concreta o caso alagoano, produzindo assim um conhecimento
mais acurado e útil por ser enriquecido pela identificação de mais mediações
existentes entre as esferas nacional, regional e estadual.
O pensamento social brasileiro
moderno, que começa com Aureliano C. Tavares Bastos e Joaquim Nabuco, passa por
Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque, e chega a Florestan Fernandes e Francisco de
Oliveira, entre outros, decifrou o enigma Brasil. Sabemos que o país tem um
capitalismo não-clássico, repleto de gargalos que o impedem de avançar para uma
forma mais positiva e democrática deste sistema social. O impasse surgiu porque
o Brasil formou-se como colônia e não superou os empecilhos internos advindos
desse fato por meio de uma revolução burguesa, como ocorrera nos EUA, na
Inglaterra e na França.
Segundo a vanguarda do
pensamento social brasileiro, entre os principais impasses do Brasil moderno
estão: 1) o caráter lento e concentrador da modernização da agricultura; 2) a
dependência da indústria em relação a fornecedores externos de tecnológica; 3)
a restrição estrutural do mercado interno causada pelos baixos salários e o
crescimento retardatário da produtividade; 4) as altas taxas de juros tornadas
possíveis por taxas de lucro muito elevadas em relação à média mundial,
provenientes da superexploração dos trabalhadores; 5) os impactos negativos do
caráter não-clássico do capitalismo no universo político, que se caracteriza
pela fragilidade do Estado de Direito democrático e o predomínio de práticas
patrimonialistas; e 6) a fragilidade e corrupção das instituições republicanas,
como o Parlamento, o Judiciário e os partidos, e as dificuldades postas pela
elite social para a participação política constante das massas populares.
A partir da segunda metade do
século XIX, esses e outros graves problemas do capitalismo nacional passaram a
ser mais agudos no Nordeste brasileiro do que no Sul e no Sudeste. A formação
social paulista, por exemplo, por ter o seu desenvolvimento menos embargado do
que a alagoana, pelo menos a partir da segunda metade do século XIX, aprofunda
progressivamente, durante a virada do século XIX para o século XX, as suas
etapas de industrialização. Começou produzindo bens de consumo corrente, passou
para a fabricação de bens duráveis e chegou até a constituição de uma indústria
de bens de capital, última etapa na efetivação do chamado capitalismo
industrial. Entretanto, é importante sublinhar que esse processo paulista foi
constituído nos moldes precários e com a lentidão típica do capitalismo
colonial.
No caso alagoano, nas primeiras
cinco décadas do século XX, chegou-se a cumprir parte do primeiro momento do
desenvolvimento industrial, processo que foi capitaneado pela indústria têxtil.
Entretanto, a partir da decadência da indústria de fiação e tecelagem, que
ocorreu no final dos anos 1950, o capitalismo local sofreu uma séria involução.
O estado não avançou mais no sentido de cumprir a primeira etapa do
desenvolvimento capitalista, ou seja, de produzir a maior parte dos bens de
consumo corrente que o seu mercado interno adquire. Com a derrocada da indústria
têxtil, a economia do estado passou a produzir apenas açúcar, álcool, mandioca,
leite, fumo, coco e, a partir dos anos 1980, elementos químicos derivado do
sal-gema. Os milhares de produtos que os consumidores locais necessitam são
importados de outros estados ou do exterior. A parte dinâmica da economia
voltou-se para fora, para a exportação.
A paralisia histórica do
capitalismo de Alagoas a partir do final dos anos 1950 não foi, evidentemente,
absoluta. Ocorreram modernizações na economia estadual, no entanto, foram
processos muito conservadores, que não avançaram de maneira significativa no
sentido de completar sequer a etapa inicial do desenvolvimento capitalista e,
muito menos, de superar outras fases. As modernizações tenderam a reforçar os
mesmos setores econômicos, as mesmas relações de produção atrasadas, o mesmo
arcabouço político oligárquico e a garantir a prevalência da exportação sobre o
mercado interno. A agroindústria canavieira passou a ser nessa fase a parte
mais dinâmica desses processos, que também ocorreram na fumicultura e na
produção de leite.
A agroindústria canavieira no
Brasil, não apenas em Alagoas, tem singularidades que a tornam particularmente
atrasada em relação a outros setores econômicos de dimensão análoga de capital.
Não se trata, necessária ou principalmente, de um atraso tecnológico, mas em
essência de um retardamento estrutural, de uma impossibilidade de mover-se pela
lógica capitalista mais avançada e coerente com os momentos mais contemporâneos
do sistema. Apesar de incorporar substanciais desenvolvimentos tecnológicos, e
mesmo a vanguarda da tecnologia da área em alguns momentos, e fazer outras
mudanças para adequar-se às conjunturas, apresenta uma situação financeira mais
instável e uma relação mais predatória com o meio ambiente, as instituições
estatais, a infra-estrutura pública e a força de trabalho.
Isso não significa que a
agroindústria canavieira no país e em Alagoas seja inca-paz de alcançar a taxa
média de lucro da economia e mesmo de ultrapassá-la em determinadas
conjunturas, denota apenas que obtém essa taxa a custos sociais, ambientais e
políticos acima da média de outros setores de mesma estatura econômica. Esta
contradição ocorre devido à existência dos fenômenos da entressafra na produção
de cana e, portanto, de açúcar e de álcool, e da união entre canaviais e
indústria sob o mesmo capital, o que provoca uma grande diminuição da
velocidade de rotação do capital das usinas e destilarias, já que implica numa
paralisia econômica de cerca de seis meses.
As degradações sociais,
ambientais e políticas aludidas patrocinadas pela agroindústria da cana são uma
via para compensar os efeitos na taxa de lucro da lenta rotação de capital por
meio de um enorme aumento, muito além da média do sistema, da exploração dos homens,
da natureza e dos fundos públicos. Isso explica a natureza enigmática da
agroindústria canavieira no Brasil e em Alagoas, que aparece simultaneamente
como moderna e arcaica.
A partir do começo da involução
capitalista apontada acima, o setor canavieiro alagoano, o mais estruturalmente
atrasado da indústria local, passou a ter o predomínio econômico sobre mais de
cinquenta municípios e a hegemonia política no Legislativo e no Executivo
estaduais; enquanto isso, desapareceram setores poderosos (como as fábricas
têxteis e a burguesia comercial de Jaraguá) que lhe serviam de contrapeso e
amorteciam seu impacto negativo sobre o desenvolvimento capitalista e a esfera
pública.
Por uma série de
singularidades econômicas e geopolíticas, mesmo representando apenas algo entre
15 e 20% do PIB, o setor canavieiro tem conseguido uma vigorosa hegemonia
política, que se expressa como um domínio oligárquico sobre a máquina pública
os outros setores da classe dominante, o Sertão, o Agreste e a capital,
retardando o desenvolvimento capitalista por sua má influência econômica e pela
degenerescência que causa nas instituições públicas que poderiam elaborar e
efetivar um programa político de superação dos entraves para o progresso
econômico e social.
Resumo do diagnóstico: o
capitalismo periférico e dependente alagoano sofreu uma séria involução a
partir da década de 1960, destruindo a etapa de desenvolvimento que estava em
vias de completar, dando margem ao predomínio econômico e à hegemonia política
oligárquica de um segmento da classe dominante, o setor canavieiro, que é
organizado no estado e no país de modo a ser intrinsecamente retardatário e
retardador do desenvolvimento capitalista do seu entorno; este setor, mesmo sem
representar a maior parte do PIB, domina por causas geopolíticas a máquina
pública, submete os outros setores burgueses, subordina a capital ao interior,
e inviabiliza qualquer projeto de modernização do estado que aponte para a
complementação das etapas clássicas do capitalismo, mesmo nos conservadores padrões
brasileiros.
Qual deveria ser a essência de
um programa de esquerda para a Alagoas contemporânea para romper as barreira ao
desenvolvimento identificadas no diagnóstico acima? Deveria propor a revolução
armada imediata e o estabelecimento do socialismo num único estado da
Federação? Isso seria, evidentemente, uma espécie de cúmulo do stalinismo, que
advogava, como se sabe, a viabilidade do socialismo num único país. Quais
seriam as alternativas? É isso que discutiremos na segunda e última parte deste
artigo.
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