_________________________________________________________________________________ALMEIDA, Luiz Sávio de. O protestantismo: minhas lembranças e o discurso sobre as almas. Tribuna Independente. Maceió, 20 Mai. 2012. Contexto.
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Um
bilhete sobre católicos e protestantes na construção das Alagoas
Continuamos
as notas sobre o protestantismo. Há um jogo inevitável entre a memória e a
leitura, no caso destes artigos; somamos
anotações de um diário, com anotações de leituras. Desejo oferecer o pequeno
texto, ao saudoso Aurélio Viana cujo papel na vida política alagoana não foi
ainda trabalhado; ofereço também à Igreja Batista do Pinheiro que pode ou não
concordar com as coisas que digo, mas na certa respeitará como respeita a todos;
aos meus colegas dos tempos do Colégio XV de Novembro em Garanhuns, época em
que estive um tanto quanto semi-presbiterianizado.
Sávio
de Almeida
O
protestantismo: minhas lembranças e o discurso sobre as almas
LUIZ SÁVIO DE ALMEIDA
Quando criança tive dois encontros com o protestantismo. O
primeiro falava de minha avó na Capela, gente do Apostolado da Oração e que
abrigava, em sua casa, crentes que estavam sendo apupados e
perseguidos mesmo. Dondon não admitiu em frente da sua residência, que se violentassem
pregadores batistas e foram abrigados e
espalhados os “linchadores”, conforme história que circula em nossa copiosa crônica familiar.
Tomando a Capela como motivo, é possível dizer da
universalidade da perseguição articulada por autoridades paroquialescas e pelo
pacto de dominação. Imagine-se o que seria todo este processo do ponto de vista
da psicologia popular! Afinal de contas, quem iria aceitar a ineficiência de
seus anos de preparo para a salvação? Todo um caminho para chegar ao Reino de
Deus estava jogado fora. E, na verdade, surgiam, neste contexto, sujeitos tidos como impertinentes, caboclos
levantando para contestar potentados, mais uma demonstração do caráter inovador
do ingresso protestante. Isto poderia ser considerado como rebelião, pois o povo estaria sendo tentado a prescindir da parafernália suntuosa católica, presente,
por exemplo, na performance dos irmãos de opa, da morte visitada com cruz
alçada, nas libras de velas derramadas e por ai seguiriam os ritos e rituais
populares ou oficiais do catolicismo, dando conta da vida depois da morte.
Quem é esse caboclo para ficar afirmando de que tudo era
engodo e que jamais – por aquele meu modo
usual de brigar com o diabo no meu caminho para Deus – , seria impossível colocar os pés no paraíso? Era possível sentir um “Você sabe com quem
está falando?” Um caboclo afrontando o sagrado ao dizer que santos somos nós? Havia uma subversão no ator religioso e na sua
fala; no seu conjunto, a religião protestante acaboclava nas Alagoas as veredas
da salvação, apesar das origens branca. É de parecer um paradoxo: a origem branca
acaboclando. É a subversão que o protestantismo sai perdendo ao longo do tempo
na sua vivência junto ao nosso agrarismo ou quem sabe, uma subversão com fortes
limites e teve de render-se ao sistema? Belo ponto a ser discutido.
O acaboclar estava
representando a dessacralização imediata do mando político que resguardava a
fundamentação católica; o sagrado escapava da mão sacerdotal da hierarquia na relação religiosa com o agrarismo e se fazia
até mesmo por gente de ponta de rua, gente longe do quadrilátero do território
urbano do poder onde sempre estaria a Matriz tendente a ser monumental. E mais,
era uma pregação cabocla que estava aqui e ali, multiplicando pontos
territoriais de contato na luta pela conquista, nesta espécie de guerrilha das
salvações.
Isto incomodava severamente ao agrarismo, calcado na sua
base de poder local. Dondon – a minha avó – apesar da sua proveniência da ”nobreza”
capelense, por tropeços de vida era pobre e demonstrava, por outro lado, que o agrarismo tinha brechas a serem forçadas.
É neste sentido que sua história foi chamada pelo texto desta anotação em nosso
diário. Quantas famílias viram e
sentiram situações semelhantes? Inúmeras? Ainda se pode ter copiosa referência
de perseguições aos bodes, amainadas na
década de sessenta. Uma aluna minha,
levantou casos dentro de sua igreja e eram inúmeros. Li e admirei seu trabalhop.
Não sei que destino o material tomou. Eu havia aconselhado a traçar uma relação
entre o que estava acontecendo de perseguição, enquanto as histórias pessoais de
salvação aconteciam. A aluna era de primeira linha, sempre apostei no seu
futuro; lembro dela, mas o plano não foi
adiante. Caso eu não esteja enganado, ela pertencia à Assembleia de Deus. Faz
tempo.
A CRENTE NA PORTA DA
MINHA CASA
Uma segunda anotação em diário, refere-se à Penedo. Procuro por minha mãe e ela estava
conversando na calçada. Era com uma senhora, baixa, morena clara, cabelo
comprido; a imagem eu guardei. Nada
entendi da conversa. Perguntei quem era: “É
uma crente, meu filho. Ela não acredita
em santo e nem em Nossa Senhora”. E minha mãe arrematou: “Ela diz que santos somos todos nós!”. Para
quem havia terminado de fazer a primeira
comunhão, estava ali a essência de um pecado mortal pois agredia à fé católica
até o último fio de cabelo. Era uma
sensação que passaria por qualquer um, a quebra de toda uma patronagem
celebrada com oragos e protetores, dentre eles o anjo da guarda, “meu zeloso
protetor que a ti me confiou a piedade divina” e que deveria me guardar e
iluminar.
O próprio cotidiano do protestantismo atingia e colocava o
sistema em salvaguarda, era no público que ele pisava ao estar nas ruas de
Capela e do Penedo, resignificando a passagem dos tempos de vida naqueles
urbanos. Um acinte: desestruturava uma hagiologia e uma Senhora que tinha um
mês de devoção evidente, o Mês de Maria
onde se passava confirmando a Cova da Iria. No fundo, a conversa era simples e
ela dizia à minha mãe: “Moça, o que você
aprendeu está tudo errado1. O que vale, Dona Maria, seu exército de
frades, padres, monges, freiras,
irmandades?”. Absolutamente nada: negava-se, portanto, a base do sagrado de
toda uma formação histórica e isto era subversão, deixava todo o poder de
orelha em pé.
É bode quem tem
bigode
Minha terceira experiência foi mais profunda; fui durante
três anos aluno interno de um colégio
presbiteriano. Entre ser interno no Diocesano ou no Quinze de Novembro, ambos
em Garanhus, meus pais não hesitaram e embarquei de mala e cuia para o Quinze. Ali
tive convivência constante com missionários americanos e candidatos ao Ministério.
A idéia de uma pedagogia avançada e trabalhada pelos presbiterianos cai por
terra, mas esta é outra história; muitos do que escrevem sobre a educação
deveriam consultar o por baixo do processo pedagógico, quase no viés thompsiano das falas vindas por uma “history
from bellow”, este lugar social tão dificilmente palmilhado. As gentes do
Bellow são normalmente trocadas por gentes de cima. Deixando a sociologia ou história da educação
de lado, nesta anotação o que importa é a ligação do que vivi e a rede de
relações naquele internato, uma composição a bem dizer impossível de escola
laica e confessional ao mesmo tempo, funcionando como espécie de seminário
menor, com os Candidatos convivendo conosco.
Tocava a campa, com pouco mais vinha o banho e o café quando
então orávamos, sempre com um Candidato ao Ministério falando, treinando a
interlocução com Deus. Para que se entenda esta pedagogia avançada, cada mesa de
refeitório tinha seu próprio Censor, cada quarto tinha seu Censor e todos os
censores dos quais me lembro eram Candidatos
ao Ministério, em primeiro treinamento para ser pastor. Interessante ter um
sacerdote se iniciando na posição de Censor, mas deixemos a tal pedagogia
moderna em suspenso, matéria de um trabalho especial que comecei a escrever como
se fosse apontamento para uma tese de doutorado, quando estava na Michigan State University
para uma disciplina chamada “A terceira
cultura”.
Dez horas da manhã, um pequeno culto com todo o XV de Novembro
reunido, oração, fala de missionário, esposa de missionário a tocar piano e
vamos ao hinário, aos coros, corinhos e hinos: O nome do Senhor deve ser exaltado. Em tal rotina de cânticos e orações,
terminei por praticamente decorar o hinário e aprendia, sem saber, muitas
melodias brancas dos Estados Unidos, daquelas dolentes e solitárias nas
pradarias dos filmes de cowboy. Eram hinos e músicas que jamais passariam pelos
tons e harmonias de nossa cultura. O protestantismo litúrgico era exótico. Era
preciso trazer para aqui, os fatos da América; lá sim, estava criado um mundo
encantado de enlevamento litúrgico e deveria ser posto na terra brasileira,
cujo baticum estaria empestado do som afro-pecaminoso, indígena-tupan e branco-chapa-católico.
Vez em quando
pintava uma reunião social, quando se juntavam o internato masculino e o feminino, além de
alguns convidados. E se dançava a carrocinha
pegou três cachorros de uma vez... Por uma espécie de deboche das
probabilidades, esta música foi gravada pelo Carequinha e espantei-me quando a
ouvi, pois ficou fincada no substrato religioso de minha cabeça; outra, era a história do chapéu com três bicos.
Depois que passei a ver musicais americanos e a prestar mais atenção ao que
ocorria, eu estava country e no mais bizarro estilo da branquitude americana, numa superposição do
wasp
ao meu acaboclamento: white, anglo saxon, protestant, umas das principais indicações de direcionamento para
a direita política americana. O fato era que se tinha um chapéu puritano e
o desconhecimento do chapéu de palha. My
hat has three corners, trazia a modo do século XVIII, aquele chapéu a
procurar a forma de um triângulo, contra o senso de circunferência a cobrir a
cabeça que estaria em todo o território dos sertões dos garanhuns.
A única
exceção que vi, no sentido do acaboclado nordestino sendo mantido – e decorei a música –, foi um dia em que, em
cima de um caminhão passamos por dentro da cidade de Garanhuns em festiva
marcha para um piquenique, boys and girls cantando alto a pequena vingança protestante
numa sacudida musiquinha que Luiz Gonzaga bem poderia ter gravado:
É bode, é bode, é bode
Quem
tem bigode,
Quem
tem cavanhaque é bode!
O seu
fulano, que é dono do pagode,
Ele
brinca sem dinheiro
Mas não
brinca sem bigode!
Oi!
Ora,
jamais a palavra pagode corresponderia ao vocabulário presbiteriano e jamais
estaria sendo utilizada somente para deixar a rima redonda. Ele dizia que havia
a fuzarca e um dono, mas o que aparece é o deboche do nordestino em face do
oiiiiiiiiiiii final. Não se gostou do bode; ele
ficou atravessado numa região de tradicional missão presbiteriana e
local de funcionamento do Colégio XV de Novembro, comemoração protestante da
República, onde se teve uma alforria legal. Em torno de um século da visita
apressada de Kidder, o panorama do protestantismo havia mudado, mas ainda não
estava calçado na normalidade da vida. Era suficiente para causar a fundação de
um complô, era suficiente para uma resposta na década de 50, mas vai precisar
de urbanização e mudança na arena política, e ele que foi uma força a bem dizer
inovadora, tendeu para uma posição de direita ou conservadora. Em torno de 120
anos se esclarece qual o grande caminho político, salvo algumas raras exceções, a ideologia política foi comprometida
com o status quo, aquilo que nos
começos dos combates esteve sendo afetado por Kidder.
Um orientador ligado ao batista
e à missão
Outra
experiência foi na Michigan State
University. Meu orientador chamava-se Ted Ward, um homem capaz, amigo. Ele
foi emeritus
do Departamento de Educação da Estadual de Michigan e, posteriormente, membro
da Trinity Evangelical
Divinity Scholl. Eu estava interessado no que se chamava
de non-formal education e ele era
dos melhores no que se tratava de non-formal theological
education. Convivemos largo tempo,
aprendi e sou grato. Aliás, um de seus livros foi traduzido para o português e
publicado pela JUERP, editora de grupo batista.
Era aberto e um de seus princípios era básico nas
suas proposições quanto às missões: respeito à cultura. Uma das leituras
recomendadas era sobre o que chamava de true
believer. Tive uma imensa dificuldade para entender e traduzir a expressão mas
notei que talvez a base do fundamentalismo estivesse por
ali, pois se tratava não da possibilidade de um verdadeiro crente, mas do acreditador: aquele que tem a profissão
de acreditar e de repetir o mesmo mote de sua crença de modo exaustivamente
continuado. É esta diferença entre o verdadeiro crente e o acreditador que me
aproxima, sobremaneira, da Igreja Batista do Pinheiro em sua composição atual,
um passo absolutamente distanciado dos tempos de Kidder, do complô maximalista,
do crente na porta da casa da minha avó e da crente na porta da minha casa, do
bode de Garanhuns e um ganho em direção à integração cultura e salvação, onde o
universo do poder é claramente desbastado, de uma forma muito mais rica do que
se poderia fazer com o corpo de encíclicas que calçam a chamada Doutrina Social
da Igreja.
A busca pela salvaguarda social fez com que o
protestantismo em Alagoas tendesse ao conservador e mesmo à direita como já
anotei. É proverbial o caso do vereador Guilherme Falcão que militou no PMDB em
1982 e passou para o Partido Socialista Brasileiro (ao qual pertenci e com o
qual ainda mantenho ligações) por volta de 1985. A pressão foi forte para que
ele deixasse o partido por conta de posições à esquerda. Ele saía ou ficaria mal na comunidade da
Igreja, conforme me disse e faz muito tempo, andando ali pelos lados do Parque
Gonçalves Ledo. Há, também, o conhecido caso do Ricardo Coelho.
UM
RINGUE NA BASE CULTURAL
No fundo, estamos lidando com a forma da
representação realizada pelos protestantes e a resposta da descaracterização
dada pela reação católica: uma tensão de natureza dialética; ela se transmite,
automaticamente, para as bases da chamada cultura popular e para o que chamarei
de Alagoas profunda, as Alagoas de suas próprias razões, da intimidade do seu
cotidiano, resistente à mudança, presa à tradição e tridentina por excelência
embora com universo próprio que refaz o princípio da romanização sem controles
e maniqueísta com fórmulas estabelecidas para padronizar a ideia de verdade e
de mentira, de bem e de mal. Uma Alagoas do agrarismo, à qual o novo do
protestantismo termina por se justapor e dialogar e estar em relação constante.
É nesta Alagoas profunda que vamos situar a tensão
e escolher um caminho: a chamada literatura de cordel, composta por folhetos de
feira. Como estaria posta a figura do protestante e a figura do crente? Este tipo de literatura é solidificado pelos
finais do século XIX no nordeste (Curran; 1991)
e passou a veicular valores,
razões, argumentos de uma forma que atingia, sobremaneira, às faixas pobres e
rurais especialmente do Nordeste brasileiro. Claro que há todo um rastro
europeu, ibérico, português, mas a que nos importa, de modo enfático, é a que se estabelece no
Nordeste e um dos precursores dessa safra é o paraibano Leandro Gomes de Barros
com produção pelos finais da segunda metade do século XIX.
Basicamente, a poética estava ao lado da Igreja
Católica nesta porfia pelo sagrado e bem que se poderia ter o dedo da
hierarquia interessada em sedimentar a hostilização com relação aos princípios
religiosos dos protestantes. O folheto respondia de modo direto ao que o
mercado pedia e, nesse caso, era a severa condenação e o conjunto da literatura,
o seu corpus na realidade, cobria o
que vou chamar de enunciado da nova-seita, estruturada o mais das vezes quase
sempre numa figura comum, em local usual do povo. A tática da Igreja foi atingir o protestante
por cima nas hierarquias sociais e atacá-lo, profundamente, na via do cotidiano
Era uma oralidade em pregação, tomando o poeta
como o seu veiculador; na realidade, o poeta recuperava os valores que
circulavam e os transmitia às vezes na montagem de uma porfia, ou desafio, como
era usual, inclusive, nos encontros de tocadores de viola. Evidentemente,
estava adredemente montado o aceno do vencedor em um modo padrão de ritmo a
viabilizar uma participação de quem o escuta e o lê, em termos até mesmo de
memorização, conforme Abreu (1999) ressaltou. A tendência do folheto era a de
falar de dentro e é interessante entender o traço de nivelamento entre forma,
autor e público, o que, em parte, está destacado em Curran (idem) e enfocado por D’Olivo (2010).
É em sua forma de articular desafio, cena comum e
o estigma que o cordel deve ter sido uma matéria chave de transmissão da visão
católica em radicalização contra a protestante. Não fosse desta forma, perderia
a simetria e até mesmo, a veia conservadora que sempre tendeu a demarcá-lo. O crente seria no contexto do
cordel, o crente oficial retrabalhado
pelo imaginário nas ligações existentes dentro da Alagoas profunda, a deep Alagoas.
Era ela
quem estaria sendo fustigada, sinal da renovação que seria o protestantismo mas
que, necessariamente, não tinha raiz e, sobretudo, negava a que seria
estruturante do processo da vida religiosa. Como se integrar dentro deste
universo da raiz – que jamais seria a sua –, das estruturas profundas, seria o
desafio que o protestantismo iria ter, encontrar ganhos de apoio, viabilidades
de integração com a sociedade, poder, portanto, viver, sobreviver e crescer nas
Alagoas rasa, a do dia a dia acontecendo mas fundada na profunda, a das grandes
marcas estruturais e isto iria desde a situações mais frívolas como a moda, o
se vestir, até situações de maior vulto como pactos de natureza política, até
mesmo partidária, tudo isto dentro de um contexto de urbanização constante e de
celebrações junto ao poder.
A IGUALDADE NO
SISTEMA
O folheto de feira que tornava o Padre Cícero e
Frei Damião santos, jamais poderia abrigar o anti-canonização, nem mesmo pela
via da força romana isto foi conseguido, no que se tem a Beata Maria de Araújo
como exemplo. O que pode parecer frase de efeito na realidade não é: o profundo
era profundo mesmo, difícil de ser extirpado e a consagração do Padre Cícero, o
nosso Padrinho era um contrato de patronagem irrompível. O que era capaz de
negar Roma, estaria mais do que habilitado a negar Lutero, ao qual
figurativamente nos referimos, por ser alvo principal da contra-reforma.
Estamos
diante do que vamos chamar de a porfia por escrito e que iria traduzir a porfia
verbal, a disputa na fala. As Santas Missões estariam nos folhetos, como
estariam, também, a própria hierarquia estabelecida na figura de padres que
estavam a paroquiar, incluindo, na ação, todo o complexo ideológico agrupado no
universo do que era chamado de pasto espiritual, uma preocupação de duplo
significado pois estava no estado e na própria religião. Havia uma unidade nas
Alagoas profundas, nas estruturas de base, formadoras, corporificadoras de
expectativas e comportamentos e de uma Igreja Católica rígida em seus dogmas e
cheia de modos sociais e político de ser.
A Santa
Missão era bem mais do que uma mera pregação, era toda uma ordem de solenidade
para a salvação e ia das obras ditas pias, até ao espetáculo das fogueiras a
queimarem o pecado, como se pronuncia Maia (1991). São extraordinários os
relatos de Fr. Apoloni de Todi, que
missionava desde os finais do século XVIII, o verdadeiro festejo, os
mistérios dos acontecimentos e a geração das obras junto com o casamento dos
amancebados. São relatos postos em Lisboa (1835) e mostram o tom espetaculoso
da fé.
OS FOLHETO DE FEIRA
Um bom exemplo dessa porfia é dada em
um folheto ainda da década de cinquenta e que em 1956 estava em sua segunda
edição – houve uma terceira edição em 1970 e uma sexta em 1979 –, sendo da
lavra do famoso Rodolfo Coelho Cavalcante, alagoano de Rio Largo –, tendo nascido em 1919.
O folheto era intitulado A discussão do
Padre com a protestante. Rodolfo
Coelho Cavalcante não tinha compromisso, devendo ter sido ligado ao espiritismo,
com um folheto extremamente simpático ao Chico Xavier. Bom, ali estava a mulher
protestante em lugar público, a pregar a Palavra de Deus, esperando um trem e
nisso começa a briga com o Padre. O primeiro argumento da crente dizia respeito
à Bíblia Sagrada, propondo, portanto, que a Igreja Católica não poderia
tornar-se salvadora, rebatendo o Padre que havia afirmado as excelências
católicas:
Minha filha, qual a crença
Na terra mais soberana,
Do que a Igreja Católica
Apostólica Romana?
Só a Santa Igreja salva
Neste mundo a alma humana!
Para a crente, nem a Igreja salvava e
nem se fundamentava na Bíblia e menciona especialmente a questão do Papado que,
segundo ela, nunca havia acontecido a sagração de Pedro como Papa. A crente
então ataca justamente a plataforma de baixo da cultura religiosa e deve ter
sentido o peso da última fala do Padre: A senhora sendo cega,/Peça a Jesus e
veja!
Ela rebate:
O senhor assim graceja
Com seu erro doutrinário.
Esse negócio de missa
Confissão e rosário
Não passa de inovações
Da Igreja, seu Vigário.
A discussão então evolui para um ponto
central da discussão: a existência de uma Bíblia falsa. A investida protestante de
querer o pais lendo a Bíblia, levava à
fala de que se fundamentava em Bíblia falsa. Perrone (1856) falava em Bíblia
truncada ou corrompida, e esta
argumentação seria usual. Não era, portanto, dito que estavam errados – onde a
discussão se estabeleceria – mas que estavam em falsidade e, portanto, nem
havia o que discutir e sim determinar a mentira, o crime. Não se estava diante
de um adversário, mas de algo criminoso a ser combatido, inclusive com o rigor,
por existir uma religião de estado que a
tudo controlava. O início da institucionalização dos protestantes (nova seita, crente e bode não são mais palavras correntes) levará
a uma tática composta por três elementos básicos: a) montagem de foco, onde seriam estruturados
núcleos; b) contato político em busca
das brechas no sistema e c) evitar o confronto aberto, iniciando à base da
distribuição de material impresso e Bíblias, modo essencial de conflito: o domínio das fontes
do sagrado.
Este
conflito irrompe no texto do poeta alagoano com a seguinte fala da crente:
Toda
Bíblia é uma só
De
fácil penetração
Para
aquele que Jesus
Lhe
promete Salvação
Bíblia
falsa isso é conversa
Da sua
religião!
Era a
afronta completa; uma mulher do povo tinha a veleidade de discutir com um
sacerdote, completa subversão do sistema e tudo em um lugar público, na
plataforma de uma estação. No fundo se
tratava de uma subversão local e como tudo indica, ainda pelos anos cinquenta,
o protestantismo se constituía em fator desta subversão:
Onde a
senhora aprendeu
Por
certo teologia
Para
andar pregando ao povo
Sem a
menor teoria?
A
crente tinha pesados argumentos, era topetuda
e entra em um dos redutos fundamentais da religião profunda das Alagoas:
Falando
agora em Maria
Que é
que seu Padre me diz!
Quem
foi ela aqui na terra?
Quero
que seja feliz!
Se é
filósofo responda
Já que
sou uma aprendiz!
Praticamente,
todo o folheto vai delineando a impossibilidade de um diálogo entre ambos pois
os campos se encontravam irremediavelmente divididos:
Eu não
quero discutir
Com
mulher, que não convém
Quanto
mais uma protestante
Que não
respeita ninguém
Se eu
gostasse de briga
Seria
crente também.
Pode o
senhor se zangar
Mas a
verdade não nego
Sou
crente, tenho direito
Para
todo mundo prego
O
Evangelho de Cristo
Que no
coração carrego.
Credo
em cruz, eu te arrenego
Disse o
Padre nesta hora
O trem
nisto ia chegando
Vi o
Padre cair fora
E aí a
crente cantou
O seu
hino e foi embora.
Extremamente
virulento foi Antônio Araújo Lucena – já falecido e nascido em Cajazeiras na
Paraíba – com seu folheto intitulado O Pastor que virou Bode:
Um bode
preto retinto
Já foi
visto no sertão
Durante
a segunda guerra
E
naquela ocasião
Foi
quando o dito pastor
Andou
causando terror
Em
quase toda a nação.
Seria
um copioso inventário do que se teve produzido sobre o tema nos folhetos de
feira, demonstrando o quanto perdurou o combate ao nova seita que seria
obrigado a transitar politicamente e assim legitimar-se. A legitimação é um
processo de fazer-se aceito e nisso a qualidade política aproximou-se das
Alagoas profundas, salvo raras diferenças como a do saudoso amigo Aurélio Viana
que se somou à esquerda democrática no arrebentar do Estado Novo, e a quem
deixo um abraço afetuoso com estes pedaços do meu arquivo pessoal.
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