sábado, 24 de dezembro de 2011

[HISTÓRIA CIDADE: MORADOR DE RUA: MACEIÓ: ALAGOAS] Luiz Sávio de Almeida.. Moradores de rua. Um pouco sobre a vida de Maria Lopes










Esta matéria foi publicada no tablóide Contexto do jornal Tribuna Independente, Maceió, na edição de  25  de Dezembro de 2011. A entrevista com Maria Lopes pertence ao acervo do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Direito, Sociedade e Violência (CESMAC). 
















































Um pequeno bilhete sobre os caminhos da vida neste

 imenso Natal de 2011


Este é um depoimento dado por uma vida que se esconde em Maceió. É a história de Maria Lopes (nome fictício para sua proteção), mulher de 24 ano,  cativante e inteligente e  que teve abortado o sonho de ser modelo. O texto faz parte do acervo do Banco de Dados sobre Direito, Sociedade e Violência do CESMAC e foi produzido a partir da pesquisa de acadêmicos estudiosos da questão. Para Contexto, é quase uma fala trágica e poética.

Contexto pede para que seja atendido o apelo de Maria Lopes e que você, ao encontrar a gente de rua, faça uma reverência aos que conseguem sobreviver  às labaredas do inferno urbano. A base de Contexto, nesta edição,   foi montada pelas gravações  de dois acadêmicos membros do Núcleo:  Flávio Soares Salgueiro e João Paulo de Carvalho Vasconcelos. O trabalho deles consistiu em registrar o depoimento, mas isso  é extremamente importante, um pequeno começo.

 Jingle Bell para todo mundo e um beijo no coração das Marias Lopes!

Sávio de Almeida







Um pouco sobre a vida de Maria Lopes


Luiz Sávio de Almeida



Maria Lopes é uma vida nas ruas de Maceió, desde seus tempos de adolescente.  Ela é uma rueira, como parece se costumam tratar. Seu sonho era simples: ser modelo, sinal de que se via fisicamente na categoria das belezas de passarela. Ela é uma rueira, como se chamam. Às vezes, seu depoimento parece ir além do real, como se nos revelasse o fantástico de um imaginário acossado pelo cotidiano. Nosso interesse na conversa, era sentir a ideia que ela  fazia da sociedade, do poder e do Estado. Como Maria Lopes abordaria e falaria sobre o significado que essas categorias teriam para ela? Ou, também, o que ela nos daria possibilidade de inferir a partir de sua fala?

A droga entra pesada;  o ESTADO é  um estado-serviços e tem cara, rosto certo.  O que ela fala sobre a  polícia é contundente, não importando se é fruto ou não da sua construções de verdades. Seria uma vingança?  Uma forma de tentar avaliar o quadro pelo que ela tem mais de acesso que é o bandido? E ela se coloca como se não tivesse escolha: para ela, do seu ponto de vista, melhor o bandido e aí, ela necessariamente tem que encontrar uma brecha para justificá-lo.  E nasce um jogo: ele mata para não morrer, como se o crime fosse a justificativa para uma cadeia de crimes. Maria Lopes está entre o bem e o mal? Na verdade, o que são bem e mal para Maria Lopes?  Existe isso?

Será que Maria Lopes se vinga do Estado que a pune e o pune por uma forma típica de verbalizar as contradições?  Neste depoimento, em nada pesa se o que é dito é verdadeiro ou não; importa que pode ser dito, quem sabe com uma amarra na realidade, quem sabe por achar que deve ser assim? Será que a Maria Lopes vinga-se  da sociedade ao falar no estado? São muitas e muitas as perguntas que tornam a entrevista um fértil material para hipóteses.

É possível que haja a possibilidade de ter acontecido uma interferência errada da polícia? É sim. Mas se pode a partir daí, criminalizar a polícia?  Como?  O importante é que a ausência da plena cidadania,  como se pode deduzir, leva a encontrar e realçar acentuadamente as marcas de perseguição pelos que dão vida ao estado.  O que se fala da saúde, é o mesmo que se fala da polícia. É possível que aconteça um fato? É possível. Isto leva à criminalização da saúde?  A ausência de um sentido de cidadania, leva a que o quase ou não-cidadão construa a solidão cívica, como está na lógica da preferência ao bandido, seguramente exótica, mas possível.

 O bandido está bem mais próximo ao perfil de vida, do que a polícia. Um estimula, o outro reprime, gerando a agonia de um mundo onde tudo é possível,  onde o punitivo é bem mais efetivo do que o não-punitivo. Ela diz entender as razões do traficante, embora condene as mortes. Ela diz ser inaceitável o tipo de relação que a rua tem com a polícia. Onde estão o começo e o fim desta análise que ela realiza?  A que ela conduz? É o seu modo de perceber ou de elaborar sobre a vida. O estado está nas entrelinhas e com ele o direito e a vida.  Posso de tudo isto, apenas tirar uma conclusão: o todo da rua é a parte que  a ela  aparece e sobre a qual ela elabora; isto deve ser a base de todo o exercício das estratégias que tem de agendar. Quando a Maria Lopes fala, não resta dúvida que aproveita a ocasião e atira. Eu chego a pensar que Maria Lopes soma em sua fala, inúmeras outras vidas de rueiros, como se ela encontrasse guarida para o que seria de todos.

O interessante, é que Maria Lopes se identifica a um grupo, que, mesmo informe,  demanda senso de pertença. Há um trecho importantíssimo, quando ela reivindica para todos. Em nenhum momento, Maria Lopes choraminga e até mesmo traça o perfil do político que mereceria voto: aquele que atendesse à gente da rua, uma espécie de sociedade ambulante que vive nesta Maceió. A miséria é vista no coletivo dos que perambulam, estão aqui e ali, moram lá e cá, daqueles que jamais diriam de um  domicílio, apesar de  tão sabido.

Outro ponto para ser verificado na leitura deste documento, é que ela não sai distribuindo culpas pelas escolhas pessoais que são realizadas.  Por outro lado, seus apelos são dirigidos à sociedade e, aí, Maria Lopes reivindica, essencialmente, que se quebre o preconceito.

Maria Lopes não seria possível aqui no Contexto para dialogar conosco, se não contássemos com os trabalhos do Núcleo.  Maria Lopes é uma figura humana, que pede igualdade. É de cortar o coração – como diria a minha mãe –, quando se lê a imensa vontade que tem Maria Lopes, de comer uma pizza em família. Contexto jamais assumiria a responsabilidade de dá-lo como sendo obrigatoriamente verdadeiro no todo ou em parte. Seria impossível  enveredar por aí. O que sabe é simples: o depoimento deve estudado  e é  matéria prima para análise desta relação entre o direto, a sociedade e a  violência.


                                                                                  gazetaweb.globo.com

Contexto foi e como o documento, também, um mero canal de informe sobre o que pensa uma pessoa de rua. É um documento que deve ser lido com carinho e cuidado pelo estado e pelo cidadão comum. Seria ótimo que a polícia o  estudasse, que a saúde o estudasse. É que talvez estejamos diante de duas perguntas aparentemente tolas: a) o que seria uma segurança própria para o rueiro que vem sendo assassinado e b) qual seria uma saúde rueira? Temos que aprender um pouco a olhar o mundo por baixo, onde, muitas vezes, as vidas se desmancham. É uma boa oportunidade ler este material produzido pelo Núcleo que é nosso parceiro. Levy-Strauss certa feita e tomando Rousseau como base, tratava do ganho hermenêutico sobre a discussão de algo semelhante a este depoimento: não importa se é verdade ou não, o fundamental é que se tem de ter uma consistente discussão sobre ele.

Mas Natal não é um tempo para tanta racionalização; é para sentir mais uma vez, o apelo fraterno que deve nos circundar diariamente.

Feliz Natal Maria Lopes! É o que Contexto lhe deseja.



A vida de Maria Lopes não é sopa!

(Entrevista a  Flávio Salgueiro e João 

Vasconcelos)


Flávio Salgueiro













Tenho 24 anos, 2 filhas. Elas moram no Tabuleiro,  com a minha mãe e  meu padrasto. Eu só queria saber de ficar no mundo, droga, me prostituir. Ai minha mãe disse que ia criar;  aceitei,  e graças a Deus estão muito bem criadas. Nasci aqui mesmo em Maceió, Tabuleiro
.
Os amigos e a onda do vício

Comecei a me envolver com droga através de amigos. Não estava indo para a escola, comecei pegando loló, depois passei pra maconha, ai gerou crack.  Ai minha família tentou me dar apoio e eu não queria. Passava 3, 4 dias sem ir em casa. Quando ia , era só pra comer e dormir. Ai,  eu me deixei no mundo. Achei melhor tá na rua do que dando trabalho à família.

Eu me tornei moradora de rua porque eu passava de segunda a sexta fazendo programa, e nisso ficava usando droga. Nunca cheguei a ficar assim dormindo na rua não, mas morar eu morava; só não dormia, porque tinha medo, passava a noite me prostituindo e me drogando pra não dormir. Tinha medo de dormir;  tirava assim um cochilo, negócio de 2 horas da tarde. Era lá na Federal. Lá nos carros, carro velho, dentro de ônibus, caminhão velho, debaixo de caminhão. Ai eu cochilava assim de tarde. Quatro horas, eu já tava me arrumando,  já pra ir pra o ponto de novo me prostituir.

Um pouco sobre a droga
  

João Paulo
Comecei a usar droga,  eu tinha meus 19 anos. E o que me aviciou mesmo e me fez sair de casa foi o crack... Hoje eu tenho 24 anos. Eu não uso mais droga não. Tou a um mês sem usar.  Só fumo cigarro normal e tomo cerveja de vez em quando. Eu tava envolvida com um rapaz,  também usuário de droga e minha família não aceitava ele dentro de casa. Ai eu disse “se ele for pra rua, eu vou também”. Ai eu saí com ele pra fora. Ai,  foi me trouxe pra cá. Eu fiquei aqui e ele foi embora.

 Nunca cheguei a ser expulsa de casa; já saí  por espontânea vontade minha mesmo, pra não dar trabalho a eles e por eles não terem concordado com meu ex- casamento, meu ex-relacionamento. Usei droga antes do casamento,  mas ele já me influenciava também a usar, ele ia fazer usar pra me prostituir, pra usar mais ele. Eu vi que não dava certo, não ia ter futuro nenhum com ele, achei melhor partir pra outra. Ele sabia;  ficava me esperando no ponto todo dia; eu que dava dinheiro a ele e ele que ia comprar a cola  Eu me prostituía.  

Estudei até o 1 º ano. Meu pai era [...], minha mãe só vive tomando conta das minhas filhas... Minha mãe é dona de casa. Nunca faltou nada pra mim, graças a Deus até hoje. A família nada tem a ver com a droga; a família não. Ao contrário, eu agradeço a eles pela força que eles ainda estão me dando aqui, na hora que eu quiser voltar pra casa, eles estão de braços abertos, como minha família sempre disse, só que não quer eu no mundo das drogas novamente. Tem medo de eu aparecer morta, que é o que mais aparece hoje em dia. Quem se envolve com crack, sempre aparece morta ou presa.

O coroa e a filha

O pai da mais velha das minhas filha,  ele faleceu, era um coroa, [...] aposentado da [...], tá ai a pensão pra resolver. E o da mais nova, a vó dela é [...], só dá as coisas quando quer e minha mãe vive pela mais velha.  É. E tem o meu padrasto também, que ele é [...]. Eu tinha 13 anos de idade, meu pai tinha um bar. Ai ele se agradou em mim, quis investir em mim, eu sempre fui interesseira, ai concordei. Ai pronto; ele faleceu, deixou a pensão da minha filha na justiça, foi agora recente que ele faleceu. Com 2 anos depois ele faleceu. Eu num cheguei nem há um ano,  já fui logo pegando um bucho... Eu  tinha 13, ele  57. A minha  família apoiou;  antes ele, do que chegasse e eu perder minha virgindade com um cara ruim...

Depois disso eu fui morar com ele.  A família dele não concordou, a família dele nunca concordou, porque eu era nova. “Ah painho não pode não. Tá com uma menina nova, porque você pode ir preso, até como pedófilo”, e nada empatou de eu ficar com ele. Mas chegou um certo tempo que eu tava sentindo tanta vergonha dele, que ele ia me levar no colégio, que eu não quis mais ficar com ele, ai eu fugi de casa com um rapaz. Ai eu vim aparecer depois que ele já estava falecido.

             Passei quase 1 ano com ele, engravidei dele. Criei minha filha com ele até com 1 ano de idade. Quando ela completou 1 ano de idade,  eu fui embora mais outro rapaz. Ai ele ficou cuidando dela com a minha mãe, até hoje. Ele reconheceu. Minha outra filha foi de um relacionamento de um homem novo, de 20 anos, o negócio dele só era beber, não usava drogas, só beber e fumar mesmo. E também não deu certo, desgostei dele,  de repente passou. Quando eu desgosto...

             A irmã e a  rua

         Eu estava falando com a minha irmã, que ela também é usuária de crack...  Ela não é moradora de rua. Ela mora na casa da minha mãe. A gente já saiu, já passou a morar comigo na rua.  Ela foi primeiro do que eu morar na rua. Ai a gente ficou morando na rua, fazendo programa também na rua. E minha família não quer mais ela dentro de casa por causa dos erros que ela faz. Porque eu não roubava muito, mais me prostituía, meu negócio era mais me prostituir e ela era mais roubar, meter faca nos outros. Minha família não tava mais aguentando ela dentro de casa, ela é uma viciada. Eu graças a Deus eu sou uma ex, eu me considero uma ex-dependente química. E ela não, ela é ainda é uma viciada. Faz de tudo minha família para tirar esse vício.
A  gente dormia juntas. Dormia no mesmo lugar. Ás vezes ela saia mais o namorado dela, porque ela tinha um namorado que concordava com os programas. Ai a gente se encontrava mais no ponto de fazer programa.

         A discriminação

A gente somos discriminados por a gente ser, o que a gente somos. Muita gente discrimina, não dá valor, não dá oportunidade. Eu acho assim que morador de rua, ex-dependente químico, ele tem direitos. De chegar ajudar a gente, chegar dar a apoio, de abrir as portas pra gente, porque a gente tá aqui pra recomeçar de onde a gente parou.
 Estamos aqui pra pedir ajuda assim, pra continuar nossa vida. E pra gente não cair nas drogas e não voltar e ter um recaída era bom que todos abrissem a porta do emprego, investissem mais na arte, na cultura e assim vai... Porque quando a gente passa escondem a bolsa, a gente passa diz “uma prostituta”, ficam ali discriminando a gente dizendo “ a prostituta vai ali pro beco por 10, 15 reais só pra usar o crack”.

          A polícia e a imagem que Maria Lopes passa



Os próprios policiais estão ali. Ao invés de pegar, levar preso, não... Pega, maltrata, chuta, joga ... Quando a gente tava usando a droga, tomava o cachimbo da gente, batia na gente e eles não tinham direito de fazer isso com a gente, com nenhum drogado, com nenhum dependente químico, eles não tinham direito. Principalmente as mulheres que apanhavam por policiais homens.

Então eu dou mais valor aos bandidos do que a própria polícia. Quando deve,  é diferente. Eu acho assim que cada um mantém o vício quando pode, quando não pode, tá errado, tem que pagar mesmo. Eu não acho certo, entendeu? Porque ninguém tem direito de tirar a vida de ninguém, a não ser Jesus. Matam.

Aconteceu com meu ex-cunhado. Ele tava vendendo droga no ponto dele, não sei de onde o dono dele é, não posso dizer, e chegaram e mataram ele. Bem pertinho dela, porque ele devia droga, não pagou. Então se ele não paga o cara, o chefe, o próprio chefe manda matar ele. Porque não é dele, ele já pega de outra pessoa pra vender. Então como eles pegam de outra pessoa pra vender, ele não tem como pagar do bolso dele, ai ele paga com a própria vida, por causa de um rueiro.

Porque eu acho assim, uma pessoa que deve e não tem condições de pagar ou deixa o vício de uma vez ou vai pra longe, vai ver se consegue construir a vida de outra maneira e longe. Mas tem gente que deve e fica ali no mesmo canto ou então vai pra outro canto e faz pior. Uma pedra e  R$ 5,00. Eles dão um tempo certo pra vim pagar: “Vou dar 3 dias pra você me pagar”;  depois desses 3 dias eles não vendem mais. Agora se você pagar eles vendem a você novamente, mas se você não pagar ele já vai atrás de você pra matar. Seja o valor que for. Seja R$ 5,00, seja R$ 20,00...

 Porque eu acho assim...toda mulher de programa, ela tá ali porque precisa. Pode ser pra manter a família em casa, pode ser pra manter o vicio, como era o meu caso. O traficante quando ele quer fazer um programa com a gente, ele não vem assediar a gente, não vem pegar a gente a pulso que nem a polícia faz. Eles paga, eles dá 2 pedras, 3, dá o dinheiro. Aí a gente vai e faz o programa.

 Já, já fui estuprada. Por policias não. Fazendo programa eu já fui estuprada duas vezes. Mas é como diz a história, você vive no vício da droga só quer saber dela, quanto mais usa, mais você quer. Quando a gente entra ali no carro pra fazer um programa, a gente tá sabendo que vai, mas não tá sabendo se volta.

 O crime que eu já pratiquei era comigo mesma de estar vendendo meu próprio corpo por mixaria, por besteira, mas crime não.  O crime que já cheguei a roubar,  roubava dentro de casa, nunca roubei na rua não. O mundo da droga

Veja, algumas drogas, a gente se torna um zumbi das drogas, a gente quer mais e mais, ai a solução quando a gente num acha rápida pra se prostituir é roubar.

         A ajuda dentro do grupo

Não fosse a droga,  eu estaria empregada, com as minhas filhas, com a minha família, com um casamento bom. Agora eu tô com outra pessoa vai fazer um mês, ele que tá me ajudando a sair das drogas, tá me dando apoio. Ele também era dependente químico, tá com um mês também que parou, depois que me conheceu, a gente se conheceu.
A gente parou. Assim eu to achando forças aqui e nele. Porque a gente sempre conversa, quando bate a abstinência em mim, bate nele, ai a gente senta conversa, ele pede pra mim não usar, eu peço pra ele não usar, ai gente acaba se entendendo e nós não usa.

         O resultado da droga e a saúde

A droga ela me ressecou toda por dentro, teve um momento que não tava podendo comer nada, ai eu fui, o que me passaram foi soro. Mas assim quando a gente chega no hospital com começo de overdose... Quando chega no hospital com começo de overdose, com algumas doenças através do crack, eles não fazem, deixam a gente sofrer um pouquinho, pra gente vê que a  vida não foi feita de droga pra gente usar.

Cheguei lá com  as minhas próprias amigas mesmo, que eu achava que eram amigas, mas na verdade eram só amigas pra ali mesmo no meio da droga, colegas mesmo a gente ali todo reunido usando, ai deu um branco em mim, aí eu desmaiei, aí quando eu acordei já tava lá no Pronto Socorro, já tava com o soro, injeção...

Na primeira vez eu fui bem tratada, mas na segunda vez eu não fui não. “Ah é um maconheiro qualquer deixa ai pra aprender, dá trabalho a mãe, dá trabalho a gente, é bom que morre logo”  Disseram tudo isso. E já ouvi também muito da polícia. Quando a gente vai vê amigo morto ou uma pessoa conhecida morto que era envolvido com droga.

        O rueiro e os outros

Tem pessoas assim que nem vocês, que ainda pensam em ajudar a gente, só que não tem como a ajudar a gente, porque a gente tem que primeiramente se ajudar. Mas vocês também não podem ir  abrindo porta de emprego pra gente. Eu vejo em vocês assim meninos que conseguiu na vida sem drogas, corajosos.
 Esses filhinhos de papai, passando e olhando pra pessoa, filhos do cranco. Eu tinha raiva, xingava, filhinhos de papai... xingava muito  Eram pessoas que não olham pra gente, que olham com discriminação. Fico com raiva e muita.  Porque a gente não tem a oportunidade que vocês têm, a gente não teve o ensino que vocês teve, porque vocês são mais bem sucedidos do que a gente.

         Uma vida que poderia não ter sido



Teve é verdade, oportunidade que a gente mesmo jogou fora. Mas tenho raiva. É inveja... dispensei.  Ah me arrependo. Hoje em dia se eu não tivesse usado droga era pra tá assim que nem vocês bem sucedida, com estudo né, com a família. Eu me arrependo muito. A gente tem que deixar. Tem o meu irmão. Ele já foi traficante, já foi preso e hoje em dias graças a Deus, primeiramente a Deus, hoje em dia ele é bem sucedido. Casou, trabalha fichado. Largou tudo que ele fazia antes e tá com um novo emprego.
Tudo é possível? Eu tenho esperança de mudar, de ter uma vida melhor. Do mesmo jeito que o meu irmão, que era pior do que eu. Era traficante e mudou a história dele, a vida dele. Porque que eu não posso mudar a minha?   Ele usava e vendia. Se ele mudou a vida dele, que a vida dele tá melhor do que antes, porque a minha não? Tô me espelhando nele.


         A qualidade do voto

Votar,  eu voto. Mas eu ainda estou sem documentos, mas eu voto. Porque hoje em dia até pra gente tirar novos documentos a gente tá sem oportunidade.  Eu escolho por aquele que faz alguma coisa, pelo que faz alguma coisa pela cidade, pelas pessoas, que ainda ajuda, chega junto. Porque hoje em dia eu não vejo, não tenho um. Vou dizer assim, se eu tivesse com o meu título agora, se fosse a hora de votar em algum, não votaria em nenhum, porque eu não vejo nenhum fazer nada, só promessa.
Porque era pra eles botar mais casa de recuperações, era pra... Porque tem tanto terreno vazio ai que... Da Caixa mesmo, pra prefeitura mesmo que não fazem uso, poderiam botar casas pra pessoas que moram na rua.

         A marcha da esperança

Eu sinto esperança. De vocês mostrar, publicar e vê se alguém é capaz de fazer alguma  coisa.
A educação a gente tem direito. Podia botar um professor que viesse pra cá ou arrumasse vaga pra gente no colégio que a gente também tem direito. Sobre a saúde, a gente poderia cada um, todos nós ter o cartão do SUS, a gente não tem. Ai como a gente não tem,  a gente não é atendido ou é atendido pelo jeito que eles bem querem.
Tenho notícia do povo que viveu comigo. Teve uma aqui que mataram uma, porque tava roubando pra manter vício. Não tava mais conseguindo fazer programa de magra, de feia, porque a droga deixa a gente assim. Eu tive notícia de que mataram uma que a gente andava sempre muito junta eu e ela. E eu tento evitar de saber deles, porque eu oro por eles, mas eu tento evitar. Porque isso me dói, me machuca saber que eu não posso está ali, sabendo que eles não tão tendo a oportunidade que eu tô tendo.
Eu tô tendo a oportunidade de dormir. Tenho água pra tomar banho, boa ou ruim tenho comida pra comer, eles  não. Então eles não tão tendo isso. Tão lá no sereno, levando chuva, no relento, sendo maltratado pela população, pela polícia mesmo.

         Eu tenho um sonho

Eu nunca pensei em felicidade não. Pra mim felicidade nunca existiu. Quando eu comecei a voltar a usar droga, a família acabou pra mim, saiu tudo desmoronando, os relacionamentos nunca davam certo, por causa, através da droga.  Nenhum momento... Nem na hora que tava usando a droga. Porque eu usava e no mesmo tempo eu terminava de usar, ia chorar, arrependida. Mas como ela falava mais alto do que eu, era mais forte do que eu, ai eu voltava a fumar novamente.
Ah antes do crack eu era feliz. Tinha uma vida legal com a minha família, passeava, era uma família, né? A gente se reunia final de semana, saía pra pizzaria, ai eu era feliz antes do crack. Depois que eu comecei a usar o crack... Só tô sabendo o que é felicidade agora porque eu saí do crack.
 Hoje eu me sinto feliz. Com todos os obstáculos que eu ainda estou enfrentando, discriminação ainda. Ah tem gente que passa por mim ah...família mesmo  diz: “Eu não dou um mês que ela vai voltar pras drogas” e não dão nada por mim. É mais eu tô de cabeça erguida, tentando mostrar que eu vou conseguir pra aqueles que não deu nada por mim ou não deram, pra mostrar que eu vou conseguir tudo de volta. Que eu vou consegui meu sonho, realizar meu sonho, ser modelo.
Meu sonho é ser modelo, linda e maravilhosa.  Desde sempre eu tive esse sonho de ser modelo e eu vou conseguir.

         Um apelo à fraternidade

Eu só peço pra pessoas que têm dinheiro, os filhinhos de papai, o povo que tem dinheiro, que ajude, que ajude os moradores de rua, e os... nem os aviciados, porque nem todos são ruim, nem todos estão ali pra roubar não, nem estão ali porque quer.  Abram as portas de emprego, tirando da rua, dando alimentação... E é isso ai...xauuu

[HISTÓRIA: MEMÓRIA: POLÍTICA: IGREJA] A esquerda catolica no Rio Grande do Norte: D. Eugênio de Araújo Sales e 1964






Meu bom amigo D. Eugênio


A vida não perdoa e Eugênio envelhece. São muitos anos de vida sem descanso. Poucos sabem sobre  o enorme bem que este homem fez a tantos. Foi, sem dúvida, fora do âmbito de família, a pessoa mais importante na minha vida. Ele me armou de força e confiança e jamais deixei de seguir sua orientação.  É claro que discordamos muito, mas isto fortaleceu uma intensa amizade e sempre segui com ele e suas orientações. Jamais tomei uma atitude política sem o ouvir e isto durante toda a sua carreira. Pactuamos muito. Eu o conheci como Bispo Auxiliar da Arquidiocese  do Rio Grande do Norte e continuei filialmente ligado a ele, quando foi ser  Primaz e depois Cardeal no Rio. 

Faz tempo que não nos vemos. Ele está velhinho. Imagino o que sentirei quando for necessário que ele se vá.  Com meu pai morreu grande parte de minha história de vida, mormente a familiar. Eugênio arrastará com ele a história da minha formação intelectual e as razões de muitas atitudes que tomei na vida, sendo algumas, um osso duro de roer.

A última correspondência que trocamos foi em 1999, justamente por conta deste artigo que reproduzo hoje no blog, no que Élio Gaspari teve implicações na história. Foi ele quem comentou com D. Eugênio que a matéria havia saído.  Eu iria dizer bem depois a ele, que havia publicado o texto. Eu precisava dar um depoimento sobre ele, mas somente a ele realmente competia falar; sabia de muita coisa contada por ele, mas tudo pertencia a ele e não a mim. O que ele salvou de gente, o tanto que ele ajudou não está no gibi e isto em todo o cone sul. Uma vez ele me disse que não pararia.

Eu precisava escrever.

Por um, desses acasos da vida, Marco Antônio Coelho, sogro do Gildo Marçal Brandão, era editor da Revista de Estudos Avançados. Submeti o texto a ele, achando até que não seria aprovado por conta do conteúdo evocativo e sem qualquer babado acadêmico. Tolice minha: o tom era justamente evocativo, um dossiê memória. Ele conversa com Alfredo Bosi e o Bosi aprova, interessado que era no  que o jargão politiquês chamaria de esquerda católica. Disse-me Marco Antônio que visitando o Instituto, D. Evaristo Arns falou sobre a importância do texto para começar a deixar clara a figura política de D. Eugênio.

Depois disso, junto com Marco Antônio Rocha (falecido) – suponho que ainda estava na Fullbright –  e Marcos Guerra começamos a pensar numa homenagem a Eugênio em Natal. Uma comissão de amigos entrou no jogo e deu corpo à ideia. Foi a última vez; ele estava com a Mainha, irmã dele, e com D. Heitor, irmão e Bispo em Natal.  Muita gente. Todos os que trabalharam com ele estavam lá.  Pelo menos a grande maioria estava na homenagem em forma de jantar,  depois da missa na qual entrei com uma Carteira Profissional simbolizando a nossa luta à época pelos trabalhadores. Os olhos de Eugênio brilharam quando viram um antigo rádio das Escolas Radiofônicas levado pela Zezé.

Ele estava em pé e eu disse: Sávio. Um sorriso aflorou em seu rosto e colocou a mão em meu ombro.  Muita gente chegou. Na saída, nós nos abraçamos. Ele como sempre dormiria cedo e acordaria com as galinhas.  Eu disse: Tenho muito carinho por você! Eu lhe quero muito bem.

Ele me respondeu: E eu a  você!.

Saiu.

Era a segunda vez  com elel, que uma despedida, atingia-me a fundo.

Procurei Mainha e o Heitor.

Pedi para dizerem a ele, o quanto eu agradecia por tudo que ele fizera por mim.  Até mesmo garantiu a minha vida,  como garantiu a de inúmeros outros. Presume-se que D. Eugênio de Araújo Sales tenha ajudado a umas  mil pessoas. Uma vez ele me disse: Eles sabem o que faço, mas não podem mexer comigo! E riu.

Não  perguntei o que ele fazia; se ele desejasse teria me dito! Fiquei apenas, mais uma vez, na evidência de um eles e um eu. Mas eu posso contar alguns que me foram contados até com uma certa euforia. Rindo.

Você ainda vai viver muito meu amigo! Mas vai mesmo!

É muito importante saber que no mundo existe uma honestidade igual á  sua.

Muito obrigado!

Feliz Natal Eugênio!

O seu presente é o texto que escrevi, tentando mostrar um pingo de sua grandeza.

Faz pouco, falei de você aos meus filhos e sinceramente meus olhos se encheram d'água. 

Obrigado!

Feliz Natal novamente!



Este era o D. Eugênio com quem tive a honra de começar a conviver

E sempre lhe tive uma dedicação filial




O texto foi publicado em 1999 na Revista Estudos Avançados

Estud. av. vol.13 no.37 São Paulo Sept./Dec. 1999

DOSSIÊ MEMÓRIA







Caderneta de lembranças




Luiz Sávio de Almeida






NÃO GOSTO MUITO da palavra memória; prefiro lembrança, coisa bem mais simples, ligada ao comum do dia a dia. Todo mundo tem lembrança; raros os que dizem memória. É assim que me lembro da viagem, saindo do Colégio XV de Novembro em Garanhuns no qual era interno e rumando para Natal, rua Felipe Camarão, local em que meus pais estavam morando, após termos vivido em Palmares, mata pernambucana por onde passa o Rio Una, sujo e fedorento de tiborna da Usina. Meu pai era andejo: funcionário do Banco do Brasil. Nossa vida sempre foi uma permanente mudança: a gente nunca tomava banho duas vezes no mesmo rio, embora não houvesse rio apenas em uma cidade em que moramos: Bicas, cheia de café nas Minas Gerais, quase um bairro de Juiz de Fora.

Rebolei na estrada, cheguei novamente sem amizades. Tratei da matrícula no Marista: terceiro ano de Colégio e no ponto de fazer vestibular. De leitura, na realidade, havia decorado O que sabe você sobre o Petróleo somente para atentar a alma dos missionários norte-americanos que ensinavam no XV de Novembro: presbiteriano. Passei filando em matemática; havia um gênio, Quincas. Ele resolvia os problemas em um talão de jogo de bicho e distribuía as folhas. Então, terminei o colegial, com quadro de formatura e tudo mais. Fazer vestibular... Danei-me a estudar para Medicina mas desisti, faltando três meses para a prova. Fui fazer Direito: decorei Cícero e Ovídio na ordem direta e na indireta e passei.

Foi nessa oportunidade, que fiz amizade com um cara chamado Marcos Guerra; era de uma família muito ligada à Igreja. Eu vivia da mesada de meu pai. A Emissora de Educação Rural — pertencia à Arquidiocese — abriu um curso para locutor e fui fazer. Levei cacete na locução esportiva; não tinha velocidade para acompanhar a bola; era um desastre. Marcos Guerra conseguiu um emprego para mim na Caritas Diocesana e, então, começou a minha vinculação mais direta com a Igreja de Natal. Apesar da grande amizade que nos uniu, o gringo jamais andou satisfeito com o meu trabalho e isso com toda a razão. Por outro lado, eu não conseguia ficar datilografando e Michael deve ter pensado em me despedir, mas não tinha como burlar a amizade.




Acari no Rio Grande do Norte



Antiga Catedral em Natal
Vai que apareceu uma oportunidade: ir trabalhar no Serviço de Assistência Rural, uma ONG (como se diria hoje) ligada à Arquidiocese e dirigida por D. Eugênio de Araújo Salles que era — parece-me — bispo auxiliar. É isso mesmo: D. Marcolino ainda estava vivo, morando numa casa lá perto da Catedral. Meu trabalho foi no Setor de Sindicalização do SAR, nome um tanto quanto pomposo para uma pequena sala, um ventilador, um arquivo de aço e duas pequenas mesas. Depois, fui trabalhar no Movimento de Educação de Base, que operava com a rede de escolas radiofônicas montada pela Arquidiocese. Pouco a pouco, as responsabilidades cresceram e, vez em quando, viajava para um ou outro lugar, em função de encontros ou algum tipo qualquer de assessoria até mesmo em outra Diocese. Era coisa de homem feito, posta em cima de menino, a demonstrar quanto a política daquele período pressionou a nossa geração, obrigando a que se construísse, urgentemente, toda uma ordem de experiência.

Duas palavras andaram em jogo nesse tempo. A primeira era politização e teve imenso prestígio; depois é que entra conscientização. Elas deram o compasso às discussões internas sobre educação. Não sei se tenho razão, mas educação de base, politização e conscientização indicam tempos no movimento, com a última revelando, inclusive, a crescente importância de Paulo Freire a partir de sua experiência no Recife. Foram momentos rápidos e sutis, mas tive a oportunidade de vivê-los. Dar nome aos tempos, parece eqüivaler a um esforço de colocar a vida em prateleiras mas, se por um lado pega mal, ajuda a organizar as lembranças.

O Padre Vaz: orientou-me por correspondência
Pois bem, a minha entrada no SAR levou-me a uma convivência de perto com a Juventude Universitária Católica e com os primórdios da Ação Popular que nasceu visceralmente ligada à JUC. Os quadros iniciais da AP no Rio Grande do Norte, por exemplo, eram basicamente JUC. Eram de grande peso uma revista publicada em Minas Gerais (se não me engano, coordenada pelo Betinho), um livro publicado pela UNE e que parece se intitulava Cristianismo hoje, além de um filósofo jesuíta chamado Henrique de Lima Vaz que trabalhava dois temas básicos: consciência histórica e, por extensão, o engajamento cristão.

Para a JUC, dentre outros pontos, a AP significava liberdade para agir, pois como organização do laicato mantinha vínculos com a autoridade episcopal e se estrangulava politicamente, à medida em que avançava proposições e alianças indo até os comunistas, velhos fantasmas para a hierarquia. Lembro-me, que certa feita, quando se discutia o local para um encontro nacional, a opção foi Aracaju e isso significa que D. Távora, apesar dos pesares, era uma das poucas portas. Foi nesse encontro em Sergipe que conheci o padre Vaz, pessoa erudita e amável, com quem cheguei a manter correspondência, pedindo orientação para leituras.

D. Távora
Era Natal, o que se poderia considerar como pólo das atividades sociais da Igreja no Nordeste. Isso, apesar de o bispo ser conservador, mas trabalhava em face de sua percepção da Doutrina Social da Igreja: uma terceira via que poderia ter desvios à direita, mas jamais à esquerda, justamente, pelo perigo de encontrar-se com o comunismo. Recentemente, ao examinar uma dissertação, é que entendi a profundidade da construção anticomunista pela hierarquia católica. Esse homem teve uma extraordinária influência em minha vida e ainda dedico-lhe, apesar do afastamento, um grande carinho. Não posso negar que parte do meu modo de ser foi forjado em nossa convivência. Foi uma convivência de conflitos, em razão de posições políticas, mas isso jamais abalou as relações pessoais. Minha cabeça é muito devedora da obstinação, da dedicação que aprendi ao trabalhar com ele.




Folheto de feira que escrevi naquele tempo

Teoricamente, a minha cabeça era a mais perfeita e brutal confusão. Lia e relia os textos da Doutrina Social da Igreja; saía de Martitain, entrava por Chardin, investia em Mounier, mas tinha um namoro furtivo com Marx que aumentava na medida que me relacionava com a AP. Lia o ISEB como se estivesse diante da mais potente demonstração da inteligência. Brigava com os comunistas, somava com eles, estudava direito e, pouco a pouco, no meio de toda a confusão, foram aumentando as minhas responsabilidades no SAR.

Houve uma eleição para o Diretório Central dos Estudantes. Não me lembro se entrei na chapa; somente sei que o candidato a presidente era o Ginani (hoje médico em Brasília) e que fiquei como diretor de Cultura. Conversamos, arranjaram passagem e fui para o Recife com a missão de marcar a ida de Paulo Freyre a Natal. A chapa eleita havia sido uma composição entre JUC (nem todos de JUC eram de AP), AP, PCB e os que eram considerados independentes.

A antiga Reitoria da UFPE era no parque Treze de Maio (será esse o nome?). Eu tinha alguns assuntos pessoais a resolver: fui saber se poderia me inscrever para o concurso do Instituto Rio Branco; disseram que não tinha idade. Fui procurar inscrever-me em algum daqueles cursos (conhecidos na época como cursinhos Wallita) da Sudene: também disseram que eu não tinha idade. Devidamente esclarecido de que deveria ficar velho, fui procurar o Paulo Freire no Departamento de Extensão Cultural.

Fui muito bem recebido e acertamos a sua ida; mais ou menos meio-dia, deu-me uma carona, num fusca velho. Lembro do papo no caminho. Ele me disse que tudo havia começado a partir de um filho seu e da televisão. O menino passava com ele por uma rua, viu uma propaganda e gritou: "Olha papai, Nescau!" Disse o Paulo Freire que se convenceu da força da imagem. Hoje em dia, acredito que existiram, pelo menos, três Paulos. Um primeiro ainda preocupado com problemas tipo economia da educação; o segundo à procura de caminho e, finalmente, o Paulo Freire depois de 1964, quando entra em maturidade, gerando a obra que se registrou na educação internacional. Nessa época em que procurei manter o contato, eu ainda trabalhava no Serviço Assistência Rural com D. Eugênio.

Em determinada época, tivemos um problema sério, pois eu havia sido convidado — e aceitei — para falar em um Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais. A Diocese era contra. O argumento de D. Eugênio era que eu fazia parte de uma equipe e somente poderia falar o que o grupo pensava. De certa forma ele tinha razão, pois o que eu dissesse seria implicado com o trabalho. Insisti, que o convite era pessoal e terminamos por concordar que eu deixaria de trabalhar com ele, tudo numa boa. Mas, acredito, ele estava altamente preocupado, pois eu conhecia, como a palma de minha mão, grande parte das malhas da Igreja no Rio Grande do Norte.

O discurso que pronunciei foi altamente inflamado. Falava da força da história, da revolução que deveria ser feita, da importância da ligação entre operários e camponeses e estudantes na condução da revolução brasileira. Todo o lugar comum apareceu e a vitória sempre esteve falando alto. Aquilo era a febre da vitória, algo insofismável, automático, quase dois e dois são quatro, no modo de somar fatores políticos, de ver o futuro e de lançar a burguesia no caos de seu próprio enxofre. Pintei e bordei e cheguei a ser veladamente ameaçado de morte por um deputado federal que foi bisbilhotar o Congresso: "Se fosse na minha terra, eu dava um jeito em você!"

Não posso dizer que o trabalho de sindicalização rural somente havia sido realizado no Rio Grande do Norte, em face da contenção do avanço das Ligas Camponesas. Isso eqüivaleria a uma redução imensa do quadro político, mas havia, sem dúvida alguma, o componente contra elas. As Ligas Camponesas não deixavam de ser uma preocupação direta da Igreja. Estava sendo vivenciado um tempo em que o Nordeste foi transformado em barril de pólvora. A organização rural pelos comunistas no Rio Grande do Norte jamais foi forte. Isso não se deve, tão somente, à incapacidade que o Partido tinha em deixar de ser urbano; somavam-se a ela, sobretudo, as dificuldades de nucleação do trabalhador rural e, ainda, o avanço que a Igreja havia tido por meio das escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base e de seu prestígio secular na sociedade brasileira.







Pelo que entendo, essa sindicalização rural tinha dois matizes: antiliga e continuidade a longo prazo do trabalho social da Igreja. Eu não concordava com o antiliga; achava que ocupava um espaço que os sindicatos não podiam ocupar e que ambos eram necessários. Mas jamais tive qualquer aproximação com elas, mesmo pelo fato de que não chegaram sequer à fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba. Somente fui fazer uma reportagem no caso de Sapé e no da Usina Estreliana: Paraíba e Pernambuco, respectivamente.

A Emissora de Educação Rural era a mola mestra de todo o trabalho da Arquidiocese. Não havia qualquer outra ligação de massa e politicamente organizada dentro da estrutura da Igreja. A Arquidiocese dispunha de um jornal de pouca penetração (A Ordem) e da emissora; em torno de 1/3 de sua programação era centrada no meio rural, pois além das aulas, as escolas funcionavam como nucleação local, mediante monitores, e a audiência era cativa. Foi dessa rede que nasceu a liderança-chave da sindicalização rural e, portanto, ela não deixava de ter um tom paroquial, elemento que D. Eugênio sempre cultivou. Talvez, daí, as reuniões freqüentes com o clero e dentre uma imensidão de pontos, o trabalho do Serviço de Assistência Rural paroquiava-se coordenadamente em todo o território da Diocese de Natal.

Sempre achei que D. Eugênio era o vigário de Acari, por onde, penso, começou sua vida sacerdotal. Daí, a Diocese era a paróquia, da qual ele era vigário e da qual gostava de ver tudo organizado: livro de tombo escrito direitinho, Matriz limpa, capelas sólidas e, à sua maneira, intrincada no cotidiano para o qual havia uma ordenação: Doutrina Social da Igreja. Era um vigário lido, mas sobretudo executivo, dando um forte acento à disciplina. O próprio carro chefe da Diocese tinha essa marca e era rural. A pergunta não é tola: qual a razão de não ser Serviço de Assistência Urbana? Era o vigário pensando no desenvolvimento, recebendo a herança do Serviço Social Rural, dos Clubes 4-S e por aí vai.

Caso a lembrança não seja troncha, a Igreja incorporara a sindicalização rural no Rio Grande do Norte, por meio da experiência de um setor específico que funcionava no Serviço Social da Indústria. Quando começou a operacionalizar a programação, encontrou o lastro plantado pela rede de escolas radiofônicas espalhadas. Depois, esse modelo foi sendo exportado para outras dioceses. Foi nessa sindicalização rural que começei a trabalhar, tendo passado antes pelo escritório da Caritas, onde minha função era apenas burocrática e tão escandalosamente desempenhada, que sempre senti a possibilidade de perder o emprego a cada minuto.

É claro que essa Igreja não poderia ser homogênea; havia conflito de toda a ordem, destacando-se a JUC. Era o que havia de mais avançado dentro da Ação Católica, o que se devia, talvez, à exposição de todos na vida universitária, densa de discussão e conflito que caracterizavam aquelas quadras de vida nordestina. Dentro do próprio Serviço de Assistência Rural existiam grupos e era extremamente difícil não haver choque. O que era escrito era facilmente controlável e, então, o que saia pela rádio também; mas era impossível controlar o que se dizia lá no campo, nas fazendas, nas casas de candeeiro aceso. Daí, alguns autores que estudaram o Serviço de Assistência Rural chegarem à conclusão de uma confusão teórica e de maior nível de coerência na ação. Quando o documento se destinava a algum encontro meio perigoso tinha que se pagar o preço de querer fazer o "batismo de Marx" — como diz um professor daqui da UFAL — na Sé da Doutrina Social da Igreja.

Acho que o grande problema político de D. Eugênio poderia ser personificado em Djalma Maranhão, irmão de Luiz Inácio Maranhão Filho, figura de destaque no PCB. Ele havia sido eleito para a Prefeitura de Natal e passou a desenvolver um trabalho de educação que mexia com a Igreja, face ao volume de massa que tomava: de pé no chão também se aprende a ler, com o qual colaborei de modo muito acidental e discreto. Apenas lembro que dei umas duas aulas em um treinamento.

Era um trabalho importante de inovação e dirigido pelo Moacir de Góes, migrante depois para o Rio de Janeiro, onde esteve, posteriormente, com o PSB. Um dos dirigentes desse trabalho era meu amigo íntimo; figura ainda muito querida — o mencionado Josemar — que me parece tinha ligações próximas ao PCB. Soube que eu havia deixado a Arquidiocese e me fez uma proposta: Djalma estaria interessado em entrar com ações no meio rural. Não sei se ele politicamente inventou e nem sei se realmente o recado teria vindo da Prefeitura: o fato é que eu disse não e a negativa circulou, não sei como, na certa devo ter comentado com outras pessoas.

Djalma Maranhão
Realmente, aceitar o convite seria uma brutal traição. D. Eugênio mandou alguém me telefonar marcando um encontro: ele realizou-se numa sala em que recebia visitas. Começou a falar e a falar e depois me agradeceu. Aí, foi outro problema, pois eu perguntei a ele se podia passar por sua cabeça que eu me comportaria como traidor. Depois de ter recebido tanta confiança, entregar ou ameaçar os esquemas seria moralmente trágico. Aliás, a proposta que D. Eugênio fez era singular: continuar trabalhando na Arquidiocese, mas sem nenhum contato com o público. Sabidamente, esteve querendo uma forma de me guardar. Eu disse que não se preocupasse; estava sendo dada minha palavra de que em nada comprometeria a Diocese. Disse, também, que havia aceito convite e iria trabalhar no grupo do Paulo Freire.

Jamais os desencontros perturbaram a minha amizade; eu gostava do cara e ainda hoje gosto. Podia não concordar com ele, mas era gente muito fina comigo. Outros podem pensar diferente, mas, como dizia a Madre Superiora, experiência pessoal é intransferível. Terminado esse encontro, durante o qual ele mandou servir formalmente um cafezinho, a amizade prosseguiu e, quase todo fim de semana, eu ia para a praia de Ponta Negra onde ficava o Centro de Treinamento da Diocese. Dormia em um quarto em frente ao seu. Vez em quando, eu pegava uma rede e roncava na varanda. Certa feita, após o boa noite de fim de jantar, nos encontramos por acaso. Ele me disse que havia sido convidado para a Bahia. Raramente nos vimos, desde quando ele foi para a Bahia, quando o vigário de Acari tornou-se cardeal.

A ida de Paulo Freire a Natal havia empolgado uma parte dos estudantes ligados direta ou indiretamente à esquerda. O auditório encheu e muitos estavam dispostos ao trabalho. Desconheço como foi feito um acordo, mas, tempos depois, um estudante ligado à AP me procurou dizendo ter sido convidado para a implantação do método Paulo Freire no Rio Grande do Norte. Aluísio Alves e seu secretário de Educação, Calazans Fernandes, jornalista que, segundo circulava, tinha ligações ou havia trabalhado com o grupo Times-Life, puxavam o trem. Havia sido realizado um acordo entre Sudene, governo do estado e Usaid para que fosse trabalhada a educação no estado. Nada sei como esse conchavão foi montado, mas bem que gostaria de sabê-lo.

Calazans Fernandes
Calazans Fernandes era insinuante, hábil. Aluísio Alves vinha de uma vitória sobre Dinarte Mariz. Corria que fizeram — Aluísio e Calazans — um projeto: vender o Rio Grande do Norte aos norte-americanos, mostrando que a miséria era recuperável dentro do barril de pólvora. Cuba deveria estar fumegando por aí. Nunca tive o menor contato com Aluísio e nem maiores aproximações com o Calazans Fernandes, apesar de achá-lo simpático, agradável, boa prosa. Faz tempo que não vejo Calazans; a última vez, estava dirigindo um projeto na Editora Abril. Realmente não sei como tudo se processou. Sei apenas que foi criada uma estrutura paralela à Secretaria de Educação e, dentro dela, começou a funcionar o pessoal do método.

O amigo que me havia procurado era Marcos Guerra e, caso eu lembre direitinho, era presidente da UEE. Conversamos, e acredito que foi em sua casa onde quase todas as noite estudávamos até tarde da noite. Discutimos as dificuldades e as perdas políticas que a montagem de uma equipe para a implantação do método geraria. Tratava-se de uma operação que, diziam, era financiada pela Usaid e os ecos do CPC da UNE eram fortes: o imperialismo. Ainda hoje não percebo quais foram as razões de a Usaid ter entrado na parada; na certa, não faria de bobeira; possivelmente, seus maiores investimentos estavam no Nordeste onde, quem sabe, o imaginário norte-americano da era Kennedy pensava a possibilidade de uma nova Cuba sem a Sierra Maestra mas com o açúcar.

A idéia da mobilização popular que poderia ser feita era fantástica; pensei que valeria comprar qualquer problema e não era uma oportunidade a ser perdida. Acho que o Marcos pensava o mesmo. Disse-lhe que trabalharia com ele e não participei da experiência pioneira de Angicos (terra de Aluísio Alves), mas, depois da saída da Diocese, entrei a todo o vapor. Depois de Angicos, o trabalho ganhou campo e, realmente, estourou a alfabetização em diversos pontos do Rio Grande do Norte. Posso afirmar isso tranqüilamente, pois fizemos levantamentos: a alfabetização era realizada em menos de 40 horas; era bonito ver as pessoas desarnarem as letras, construírem as palavras. Eu me encarregava de trabalhar as questões políticas que poderiam ser discutidas com as palavras-chave; montava uma espécie de referência a ser utilizada pelo monitor, se é que estou dizendo o nome certo.

Fiz questão de escrever essas lembranças, sem consultar a nada ou a qualquer pessoa. Eu as desejo brutas. É por isso que fico dizendo o tempo todo: se eu não estou enganado, é possível... Pois bem, parece que existia, institucionalizado ou não, um tal pacto operário-estudantil-camponês. Ele se declarava contra a experiência e lançava um decreto: quem trabalhasse com a Usaid era vendido ao imperialismo ianque. Marcos Guerra deixou a UEE. O estigma foi lançado pelo Partidão e por setores mais à esquerda da AP.

Falar da AP, como estou fazendo, dá a imprecisão de que vivíamos uma organização. Não era assim. Sem dúvida, havia um grupo, mas sem grandes formalizações, composto, sobretudo, de pessoas da JUC. Arrisco-me a dizer que a AP era mais objeto de nossa invenção do que propriamente de revolução: o carro chefe do que poderia ser chamado de esquerda era, ainda, a JUC, com a qual eu tinha ligações, embora não pertencesse e pertencesse ao mesmo tempo, o que parece uma contradição mas perfeitamente cabível àquela época. Aliás, parte do clero me gozava, chamando-me de ateu clerical e eu bem que merecia.

Todo esse besteirol começou a me chatear e hoje eu penso que jamais tive uma consciência, digamos assim, revolucionária, militante, combatente. Por bom tempo acompanhei a alfabetização pelo estado, mas guardo especial lembrança — não sei a razão — dos trabalhos em Mossoró; quando penso no MEB, a lembrança leva de imediato para Ceará-Mirim e também não sei a razão. Bom, o fato é que qualquer coisa me levaria a sair; eu andava, sem saber, procurando um pretexto; qualquer um era suficiente e apareceram dois: a vontade de casar e um boato. Disseram que um camarada da AP andava falando que eu era vendido ao imperialismo ianque. Isso era um pesado desaforo. Eu, que precisava de uma gota, tinha duas e decidi sair. Meu pai, que morria de medo do que eu andava fazendo exultou e mergulhei em direção a Maceió. Durante um bom tempo, fiquei na moita; depois, estava pondo as mangas de fora.

Um dia ouvi, pelo rádio, o que se falava sobre o comício da Central. Tive a sensação de que alguma coisa em breve iria acontecer. Nesse contexto, tive dois lances de sorte: o primeiro foi não ter ido para Sergipe participar da montagem da experiência de alfabetização acompanhando a mesma equipe com que trabalhava em Maceió; o segundo foi não ter aceito ir para Brasília na montagem do Ano da Alfabetização do Governo Jango. Quando se deu o estouro, o pessoal voltou para Natal e foi preso na estrada: Caruaru. Eu nunca entendi direito o lance dessa prisão. Já havia decidido ficar em Maceió e o negócio era ganhar dinheiro e casar; por isso, não aceitei sair.


Em Natal, meu pai queimou o que eu tinha; minha mãe vivia impressionada com umas espingardas debaixo de minha cama. Passava caminhão de soldados pela rua, ela quase batia as botas e um dia, coitada, um deles inventou de quebrar na porta lá de casa. Segundo me disseram, boatos circularam: eu havia sido preso, eu havia sido morto numa guerrilha no Paraná... Eu estava morrendo, mas era de medo. Sabia que muitos de meus amigos haviam sido presos e então liguei para um irmão de D. Eugênio: ele deveria perguntar se eu poderia ir para Natal. Ney telefona e me diz para encontrá-lo no aeroporto do Recife. Chegou, conversamos, eu estava sendo aconselhado a não botar a cabeça de fora pelo menos durante uns seis meses; mesmo depois da quarentena, se eu desejasse ir a Natal, deveria consultar primeiro. D. Eugênio havia conversado com o general Murici e havia assumido a responsabilidade comigo (minto, eu soube disso por ele depois). Foi extremamente generoso, pois era impossível que não soubesse do que andava acontecendo, do que andei fazendo.








Mesmo antes de tudo isso, eu sempre argumentava que D. Eugênio não era aquele direitista de quem se falava. Comigo, pessoalmente, sempre foi um homem aberto e leal. Sei que isso não é argumento político, mas vejamos o seguinte: eu fui um de muitos que foi salvo da cadeia por ele; sei de casos contados por ele, inclusive na presença de um de meus irmãos, que é o Marco Antônio (Fullbright-BSB) quando estivemos com ele, certa feita, em Salvador. Nunca conversei demoradamente com D. Eugênio sobre 1964 e não sei efetivamente o que ele pensava. Admito que aceitou 1964 como marco contra o comunismo. Tenho certeza apenas de um fato: jamais, em tempo algum, concordaria com tortura, deboche contra as pessoas, ilegalidades. Ele não pode ser considerado como um homem de 1964; ao contrário, acredito que 1964 o tomou em suas malhas, quando o vento soprava a invenção do diabo comunista sobre a Igreja.






Alguns interesses dentro da Igreja desejaram lançá-lo contra D. Helder. Eram amigos e se respeitavam, cada qual no seu cada qual. Disso D. Eugênio deu provas quando a pressão contra D. Helder estava a todo vapor no Recife. Aliás, quando do recente falecimento de D. Helder, ele esteve no Recife e celebrou missa. Lembro de algo que me disse certa feita e parece que em Salvador: havia conquistado uma posição e dela poderia fazer muita coisa. Jamais gostaria de deixar uma falsa impressão no seio dessas lembranças. Não estou dizendo que D. Eugênio era um homem infalível; pelo contrário, errava muito — no meu modo de ver as coisas — mas errava com reta intenção e isso é raro, extremamente raro. Pode parecer um moralismo pequeno-burguês; talvez seja. E o que sou?

Sei apenas que, apesar das discordâncias radicais, lhe quero bem e é uma das poucas pessoas que, nesse olhar para o que se foi, recupera esse carinho pessoal, essa coisa que a gente tem por quem gosta. Jamais a discordância colocou de lado este fato: gosto dele. Concordar, são outros quinhentos.