sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

[HISTÓRIA: POLÍTICA: COMUNISMO: INTENTONA: ALAGOAS E COMUNISMO] ALMEIDA, Luiz Sávio de. A sublevação comunista: Alagoas, novembro, 1935


Esta matéria foi publicada no tablóide Contexto,  jornal Tribuna Independente, Maceió, 27/11/2011


Um pequeno bilhete sobre a “Intentona Comunista” em Alagoas ou um novembro avermelhado

 

  
Contexto divulgará, pouco a pouco, uma série de anotações que fiz sobre a história da esquerda em Alagoas, especialmente até a década de trinta do século passado. Hoje trata de um documento importante: o inquérito aberto no 20º Batalhão de Caçadores sobre as atividades subversivas que se desenrolaram no quartel. A abertura do inquérito foi determinada pelo Major José de Andrade Faria no dia 21 de novembro de 1935. Gostaria que as notas por mim tomadas,  somassem no conhecimento do período. Quem sabe as transcrevo mensalmente ou as transforme em um livreto que se encontra – e bote tempo nisso, como diria o Eliezer Setton – praticamente pronto?  

No meu arquivo estava escrito por mim: “Texto lido e anotado. Maceió, maio, 1993”. Ao lado, uma pequena observação: “Devo confrontar com as declarações do Zé Maria.” Anos e anos após sua militância em Alagoas, Zé Maria ainda vibrava quando falava sobre sua vida no Estado, sobre a organização do partido, sobre sua eleição, as do Moacir de Andrade e do André Papine que formaram a bancada comunista na Assembléia Legislativa.

Esta pequena nota que escrevi, é uma singela homenagem ao querido primo Zé Maria, filho da Tia Rosinha (Rosa Sampaio de Albuquerque), que vivia, nesta época, pelos lados da Rua do Cisco em Maceió, bandas por onde morava molecoreba do turno do raspa. Esta nota repousou pelo menos 16 anos no fundo do baú. Qualquer dia – quem sabe quando? – sairá mais material para a luz do dia. Coisa ligeira, sem qualquer pretensão de ser douta como tudo o que faço.

Reproduzimos a capa do inquérito e da carta do Cabo Macário; nela se passa por baixo de um quartel e me faz lembrar o achado de Thompson para urdir a history from below: as cartas de um soldado durante as guerras napoleônicas. Macário  de Almeida efetivamente pertencia ao Partido Comunista e, segundo informou Zé Maria,  terminou barbeiro em Quebrangulo onde nos anos de 1945 e 1946 foi secretário de célula. Resta ler este texto e sentir os lances  políticos que o Inquérito desperta.

Sávio de Almeida 


A sublevação comunista: Alagoas, novembro, 1935


Luiz Sávio de Almeida

Uma pequena introdução


    O que teria acontecido em Alagoas, dentro do conjunto de acontecimentos que ficou consagrado à direita como Intentona Comunista?  Não é fácil responder: falta de documentação e de interlocução com os atores da época. Ainda consegui gravar  José Maria Cavalcanti, as esposas de dois implicados; recolhi dados sobre Sebastião da Hora e outros; Graciliano e Mata deixaram documentos escritos, os jornais noticiaram sobre o assunto, mas falta o conhecimento das grandes articulações que existiram. Mantive contato sistemático com a família de Esdras Gueiros. Entrevistei durante horas a Alberto Passos Guimarães e confrontei com ele, em busca de verificar autenticidade, grande número de documentos sobre o comunismo da época e ele atestou a autenticidade conforme carta que conservo.

O interesse era encontrar tema fascinante para o doutorado e ele se encontrava entre o Socorro Vermelho e as mulheres que ficaram com o peso de serem esposas de comunistas presos; elas sustentaram a retaguarda familiar em universo punitivo e nada se fala sobre isto. Tive a honra de gravar a esposa do Coronel Mata, cuja dignidade pessoal somava-se à do Josué Miranda. Também andei vasculhando sobre o Socorro Vermelho, mas sem sucesso, pois famílias envolvidas ou não sabiam ou não desejaram falar. Inclusive cheguei a receber pedido para não mexer no assunto.

 Por anos guardei as notas e fui desistindo de utilizá-las, mas cheguei a uma conclusão: poderiam ser úteis e darem idéia, embora talvez frágil em alguns pontos, sobre o que teria sido o comunismo de trinta em Alagoas. Restaram páginas que rastreavam a formação da esquerda alagoana.  Algumas foram publicadas aqui e ali, sem muita elaboração, mantendo a característica de nota, entendida como um registro para ser incorporado, após revisão, em texto maior.

Os pequenos e grandes centros conspiradores



  Alagoas tinha seus pontos de conspiração sediados em Maceió e formados nas áreas militar e civil. A primeira composta essencialmente por cabos e sargentos do 20º Batalhão de Caçadores, como se fosse espécie de conspiração de baixas patentes; a segunda estava montada na Aliança Libertadora Nacional (ALN) que abrigava os interesses do Partido Comunista (PC).

José Maria Cavalcante vasculhou Maceió comigo, mostrando lugares e falando de feitos e, especialmente, reconstruiu durante uma tarde inteira, o antigo quartel do 20º Batalhão de Caçadores enquanto narrava os sucedidos de 35.  Construía a paisagem e o cenário para uma conspiração de altíssimo risco e baixíssima capacidade operacional. Alagoas cai antes de Natal, Recife, Rio de Janeiro, o que ajuda a demonstrar a falta de integração dos que desejavam fundar o Exército Nacional Libertador (ENL).

É interessante associar o tom bombástico do Manifesto do Comitê Revolucionário do Nordeste lançado no Recife em 24 de novembro de 1835 e o que estava acontecendo em Maceió. Era dito que estava sendo começado no Nordeste “[...] o movimento nacional-libertador tão ansiosa e justamente aguardado pelas amplas massas do povo Brasileiro, secularmente oprimido na mais brutal e nefanda exploração do capitalismo parasitário estrangeiro, diante do qual se curvam os governos de traição nacional de Getúlio Vargas, Lima Cavalcanti, Argemiro Figueiredo, Osman Loureiro, Rafael Fernandes et caterva.”

Veja-se o Manifesto: tudo começava naquele dia 24 de novembro e havia uma imensa sustentação de massas. Claro que se tratava de propaganda; naquela oportunidade, já havia começado no dia 23 em Natal e nos 21 de novembro de 1935, portanto dois dias antes, o Major José de Andrade Faria, Comandante do 20º Batalhão de Caçadores (20º) baixava Portaria determinando a abertura de inquérito que teria Mário de Carvalho Lima – 1 º Tenente – como escrivão.

Em torno de um mês, o inquérito foi concluído gerando um volume manuscrito intitulado “Inquérito policial-militar sobre a conspiração de um movimento subversivo no 20 º BC”, datado de 24 de Dezembro de 1935; em torno de dois meses após, o General Manoel Rabelo comandante da 7 ª  Região Militar remetia ao Ministro da Guerra – RESERVADO e datado de 15 de Janeiro de 1936 -  expediente ao qual anexava o texto do inquérito sobre fatos “intimamente ligados ao movimento revolucionário de novembro do ano findo”. 

Quatro civis estavam implicados: Esdras Gueiros, Sebastião da Hora, Hildebrando Falcão, Manoel Leal. Dos militares, estavam listados quatro cabos: José Maria, Oséas Pimentel de Almeida, Nildo Pereira de Lucena, Vicente Ribeiro Cavalcante. Havia um sargento ajudante, João Marçal de Oliveira, um terceiro sargento chamado Josué Augusto de Miranda. A maior patente era a do 2º Tenente de Administração Luiz Xavier de Souza.  Estava listado, também, Francisco Alves Matta que será companheiro de prisão do Graciliano Ramos.

Esses nomes foram os garimpados para constituírem a evidência da subversão.  É fácil entender os nomes constantes da relação militar e difícil entender os nomes de Alves Matta e dos demais civis. Matta nos originais de suas memórias – li com permissão da família –, nada fala capaz de esclarecer o motivo real de sua presença no inquérito. Qual a razão dos demais? Seria interessante esclarecer, mas, sem dúvida, estariam em realce o tom da militância  e a evidência pública, especialmente no que se refere a Hildebrando Falcão, Leal, Hora, Esdras Gueiros. Matta é apontado por uma testemunha, José Vieira Lessa, cabo, como chefe subversivo de inúmeros elementos na polícia.


Por outro lado, era o baixo clero militar que estava em jogo, como se o movimento tivesse, apenas, conseguido mobilizar um estrato do quartel e não passado por níveis superiores: dois oficiais são mencionados e apenas um implicado. O conjunto dos depoimentos leva a algumas simples constatações: a) o baixíssimo nível de integração; b) a falta de cuidados na conspiração; c) o acompanhamento pela inteligência mobilizada pelo comando.  Não parece ter havido efetiva  integração do quartel, com Maceió, com Alagoas e com a região.  Acontecerem relações,  é diferente de integração. Segundo relato de Zé Maria em conversa comigo, na manhã seguinte após uma reunião realizada no dia anterior nos fundos do quartel (praia), na hora da formatura, veio a voz de prisão. Estava sepultada a conspiração no quartel do 20º.  E tudo fica na categoria do disse que disse típico; no dia seguinte, os conspiradores sabiam que o comando sabia e, então, todos sabiam alguma coisa sempre já sabida. Evidentemente, não foi tão simples assim; simples foi o final, inconsequente para o nível de ação que se pretendia.

Uma indefinição de movimento

Do ponto de vista das razões do movimento, podemos ter claramente duas situações: (a) os depoentes combinaram esvaziar o conteúdo ideológico ou (b), na realidade, tinham pouco o que dizer. Não falaram sobre o conteúdo do movimento, mas demoraram em três pontos: a) seria algo semelhante a trinta; b) teria inspiração comunista, mas não seria comunista, c) pertencia ao âmbito de ação da ANL. A posição a bem dizer intermediária dos sargentos na hierarquia militar era aparente: eles tiveram força de  ligação  e ela era por baixo. Se as outras capitais  repetiram Maceió, seriam raras as altas patentes envolvidas. Inclusive, isto parece ter pesado na possibilidade de aliciamento, como se pode verificar no inquérito.

Parece estar assente que se teriam dois locais para início do movimento: Rio de Janeiro e Recife, onde estava sediado o grosso da tropa da 7ª RM. Há uma espécie de espera permanente por sinal para início do movimento, como se tivesse a possibilidade de rapidamente assumir ações em Alagoas, o que demandaria todo um preparo de planos e condições de agir;  pelo que se pode depreender de José Maria, os planos foram discutidos: tomada de palácio, Inspetoria, barreiras em estradas,  distribuição de armamentos enquanto se estaria esperando a vinda de pessoal do interior e se contava com o concurso da polícia.

Uma primeira menção das articulações surge no primeiro depoimento tomado e que foi do José Maria, ao dizer que havia sido aliciado por Oséas (por seu turno, incorporado ao movimento por Miranda) e que Oseás teria sido convidado por um conhecido do Rio. Como de fato isso aconteceu, não aparece no depoimento. No do Cabo Nilo, tem-se a ligação de Oséas com um capitão vindo do Rio. A maioria das informações sobre estas articulações pode ser vista no depoimento do Sargento Miranda.

Pelo que está anotado, desde março de 1935 – épocas em que o Coronel Silvestre Péricles esteve preso no quartel – que Miranda havia sido chamado para o movimento.  Aliás, o Sargento Floriano Novaes estava no quartel à época e teria sido chamado por Miranda, posteriormente, mas temeu que ele incluísse seu nome no complô.  Faz então um acordo com o Cabo Cícero Rocha: vigiar os conspiradores para poder informar. Nas suas denúncias, afirma que Marçal e Miranda tinham um código de correspondência e era, principalmente, para a Bahia. Novaes teria tentado descobrir onde se davam as reuniões, mas não conseguiu, por não ser de confiança, mas algumas teriam sido na casa de Galindo. Fala que Miranda disse contar com cabos, pessoal de policia e civis, comandados por Sebastião da Hora,  Falcão e Gueiros.

Teria passado por Maceió, um militar que servia no Ceará e articulado o Sargento Ajudante João Marçal de Oliveira. No entanto, as informações são todas desencontradas. Na verdade, os depoimentos não permitem a montagem de uma nítida matriz das relações, desde que são fragmentos. Por outro lado, a ideia de comunismo que é central, passa em poucos momentos dos depoimentos militares.  O jogo entre o interno (quartel) e o externo (Alagoas, região e Brasil) jamais fica claro.

Miranda dá a entender, por exemplo, que havia articulação entre ele e a Bahia. O fato é que Marçal se localizava dentro do contexto subversivo, como Miranda e tantos outros, mas não se sente uma amarração a partir dos depoimentos.  Outra informação dada por Miranda evidência a articulação com Recife. Teria recebido a visita de um cidadão que se vestia civilmente; diz ter vindo do Recife e que tinha informações sobre Miranda, passadas pelo Cabo Macário de Almeida que era do 29º.   Macário veio a Maceió como parte de escolta que conduzia preso. Então, parte da conspiração e das ligações acontecia, também, utilizando o normal da vida militar, especialmente, deslocamentos, possibilidade de controle de telégrafo...

O visitante que teria encontrado,  declarou ser Antônio Fragoso e capitão do 2º RI.  Cícero Rocha que foi inquirido como testemunha, fala que Miranda havia dito ser o capitão desertor e andava pelos lados do norte. Rocha assevera que Miranda havia dito que a missão do capitão era encontrar com ele, Gueiros, Xavier, Oséas e aqui aparece o nome de Matta na polícia. Sabe-se que foi marcado encontro entre Miranda e Fragoso no Relógio Oficial, no Grande Ponto. Sete horas da noite, começam a conversar: Fragoso informa ter vindo para organizar as atividades. Perguntado sobre o pessoal que contava no quartel, menciona  Oséas e fala em  outros cabos.  Miranda teria perguntado se contava com algum oficial e Fragoso pede para que não se preocupar, pois os oficiais apareceriam assim que fosse necessário e, sugeriu tratar-se de dois capitães e de um primeiro tenente.



Novo encontro teria sido marcado, mas não aconteceu; na despedida do encontro anterior, Miranda recebe a informação de que havia no quartel pessoa habilitada a informá-lo sobre tudo e que não lhe foi passada qualquer missão, algo, sem dúvida, estranho, pois Fragoso arriscava a sua segurança ao se apresentar para um mero encontro de muito prazer com o Miranda no centro da cidade.

Posteriormente, Miranda encontra-se na festa de São Benedito, com o sargento reformado Galindo e o informa da visita recebida. Fragoso estava em visita demorada; dois dias após, Miranda vai novamente e à mesma hora à área do Relógio Oficial, procurando pelo capitão. É quando encontra Oséas, que diz ter estado com ele  – isto é negada por Oséas em seu depoimento – na casa de Esdras Gueiros: “[...] o depoente então se retirou para sua residência, pois temia ser pressentido pelos policiais que quando soube que o Dr. Esdras Gueiros estava metido no meio do movimento, não mais procurou o capitão, pois diziam que o Dr. Esdras era um elemento comunista [...]”. Oséas era amigo pessoal de Esdras Gueiros desde a época da prisão de Silvestre Péricles e disse nada saber quando ao envolvimento do dentista.

Na verdade, jamais Esdras pertencera ao PC, embora fosse elemento de proa da ANL. O importante no texto, é que revela a atividade policial de informação sobre a vida dos suspeitos. A casa de Gueiros era, portanto, um local visado.  Ele estava na cúpula da Aliança, mas era liberal como tantos outros e, no máximo, poderia ser considerado como um simpatizante e aliado do PC que se encontrava em atividade, embora fosse pequeno, sem maior expressão de massa.

Miranda afirmou que a base dos cabos seria composta por Oséas, Oscar, Ribeiro. Ribeiro falará da vinda do Capitão. Miranda teria dito a ele, que iria acertar a ida de Oséas para que conversassem. Ribeiro afirma que certa feita procurou escutar  conversa de Miranda e Oséas sobre a circulação de boletins no quartel, com Oséas pedindo que isso não fosse feito, por estar de plantão. Ribeiro afirma que procura Miranda e diz para não colocar os boletins, pois informaria ao comando. Ficou seguindo Miranda, o que possivelmente teria sido uma missão recebida.

Ainda nos sentidos das articulações e das informações que circulavam, o Cabo Oscar Leite de Araújo informa que ao regressar de férias em Recife, foi procurado por Miranda e perguntado sobre como andava o movimento naquela área. Afirma que Miranda teria dito que aconteceria coisa por lá. Ribeiro teria comentado com Araújo, que Miranda se encontrava doido. Acontece que foi encontrada uma carta do Cabo Macário na mala de Araújo e ela continha trechos que o comando considerou comprometedores, falando da “misteriosa morte do Tenente Santa Rosa”. Era sinal de que foi procedida uma revista em todo o quartel, em busca de documentação comprometedora. Este depoimento de Leite Araújo já foi tomado na Penitenciária de Maceió e não mais no quartel.

Miranda em novo depoimento, fala sobre a participação do 1º Tenente Xavier e que ele revela a existência de pessoas graduadas do Batalhão também envolvidas e diz que alguns oficiais tomaram parte de um almoço dos gravatas vermelha.  Xavier sabia quem eram os envolvidos; Miranda identificava pelo menos o Capitão Jansen. Aduz que Fragoso havia perguntado por Xavier que, em seu depoimento a tudo nega, sendo, então, produzida acareação com Miranda.

Miranda disse que levou Fragoso à casa de Xavier e que, na oportunidade em que conversavam dentro da casa, aparece um homem a quem Xavier indicou como sendo médico. A negação de Xavier foi peremptória a tudo quanto Miranda colocou, inclusive sobre o fato de que havia dito sentir-se espreitado. Ele volta a depor e fala do objetivo que tinham em envolvê-lo, parecendo demonstrar que havia um racha entre os indiciados ou que, a todo custo, Xavier desejasse fugir das acusações, o que parece acontecer quando insinua o comunismo de Miranda.

O descuido e a imaginação

No fundo, a impressão é que se criava um imenso Exército de Libertação  com tropa imaginária que surgiria não se sabe onde e nem de onde, com todos estando à espera de um momento a vir imediatamente do nada. Uma conspiração que, pelo menos em Maceió, parecia descuidada. O dia da praia com os cabos é exemplar: Oséas Pimentel de Almeida busca integrar os cabos em reunião  sabida pelo comando. O depoimento do José Maria (depois repetido pessoalmente para mim) mostra a informalidade como um assunto conspirativo de alto relevo foi tratado despreocupadamente. O próprio José Maria tomou a liberdade de convidar um furriel da Companhia de Metralhadoras que parece não ter comparecido; foram quatro a cinco cabos, um dos quais se retirou tão logo ouviu as primeiras conversas de Oséas.

 Os diversos depoimentos dão praticamente a mesma versão do que se desenvolve nos fundos do quartel, na praia. Oséas fez os convites e discorreu sobre o que seria e sobre o que resultaria a formação do Exército. Um dos que não se filiaram foi o Cabo José Ribeiro Cavalcante, que disse ter-se retirado da reunião. É verdade que é bem pouco aquilo que chega ao inquérito, como se aquelas informações bastassem para incriminar e gerar uma severa punição. No entanto, muito mais deveria estar em andamento e – aqui e ali – essas situações são sugeridas no corpo do inquérito.

Na verdade, fica sempre em suspenso o que poderia ser considerado como o movimento. O que ele de fato significava? O que propunha?  Qual o seu tamanho? Onde efetivamente penetrava? Não se tem condições de saber. O Relatório apenas sumaria as informações coletadas. O fato básico é que se conspirava e que existiam ligações e ramificações. Falava-se a bem dizer abstratamente, no corpo do inquérito, de um Exército idealizado, aqui e ali, em termos de tamanho, mencionava-se a existência de um sistema de contatos no que se dava ênfase ao Recife; e mesmo fabulações interessantes quanto à pessoal de tropa a ser fornecido em Alagoas.

O inquérito é vago, como se o Major que o conduziu tomasse por prova o que simplesmente era alegado; de prova, apenas a juntada de carta de Macário de Almeida que havia sido apreendida no quartel. Basicamente se atingia, no campo civil, a Esdras Gueiros, transformado no grande articulador pelo fato de haver menção às reuniões em sua residência, da mesma forma como Sebastião da Hora e Hildebrando Falcão foram incluídos em função de mero depoimento. Uma delas teria dito ter ouvido do Zé Maria,  que Gueiros e Hildebrando dispunham de 300 homens. Sebastião da Hora foi também mencionado, sendo dito que ele iria ao quartel em busca de armamento, quando se desse o movimento. Sempre o testemunho é tomado como certeza. É interessante notar, que o relatório, pelo pouco que implica quanto a Sebastião da Hora, leva a que se fale sobre investigações no meio civil.

Hildebrando é considerado altamente implicado na montagem do levante, a partir, também dos testemunhos. Falcão era considerado como aliciador da oficialidade. Diz o relatório: “É conhecida em Maceió a sua atuação como membro da Aliança Nacional Libertadora. Foi um forte elemento no preparo da intentona e sempre procurou captar a simpatia dos oficiais do batalhão para tal fim, chegando mesmo a oferecer um almoço à oficialidade, ao qual só compareceram dois oficiais, um por delicadeza e por ignorar as suas segundas intenções, e o outro [...] porque naturalmente já tinha relações partidárias com ele.” Leal é posto na mesma categoria.

O fato é que serão enquadrados na Lei nº 38 de 4 de abril de 1935 que definia  os crimes contra a ordem pública e social. Estavam enquadrados nos artigos 1º e 49º: o primeiro mencionado trata de mudança na natureza do sistema e o segundo dispõe sobre os considerados cabeças. A acusação era formalizada: a institucionalização de um sistema comunista.  Tudo estava sendo feito por inspiração de Prestes agindo no comando do Exército Libertador. Como não se poderia ter diferente no ambiente militar, o comando de tudo estava nas mãos de um oficial que não foi identificado, segundo se falava. Cabos e Sargentos não teriam condições de sublevar uma tropa. Mas disse Zé Maria que boa parte dos soldados estava pronta para acompanhar o levante.

O inquérito

No fundo, como dissemos, o inquérito era juridicamente sem qualquer consistência. A Apelação nº 4.508–Alagoas comenta a apreciação que foi realizada pelo Juiz Federal: “Procedida a formação de culpa, em que foram observadas as formalidades legais, proferiu o Dr. Juiz Federal [...] longa sentença [...] em que estuda a situação de cada um dos denunciados, em face do processo, concluindo pela absolvição de todos.”

A Procuradoria da República concordou por absoluta falta de prova, com o que dizia respeito ao  Matta, Leite de Araújo, Manoel Leal, Sebastião da Hora, mantendo os demais, inclusive Esdras Gueiros e Hildebrando Falcão. Hildebrando e Esdras  estavam sob a mira policial. Gueiros teve testemunhas a seu favor. Uma taxativamente declarou que era sua inimiga e que não iria depor com relação a ele, mas diz que sua casa era muito freqüentada, embora não soubesse dizer sobre o que se tratava nas reuniões que aconteciam, lançando, portanto, uma dúvida. Gueiros morava vizinho à Chefatura da Polícia e a testemunha era agente policial.

Não havia qualquer base para acusação, por exemplo, a Gueiros, sobre o que lhe estava atribuído no inquérito. Hildebrando Falcão estava sendo procurado; testemunha – também agente policial –, diz que seus discursos na Assembléia eram subversivos e que ele era um comunista. Na verdade, nada indicava ter sido filiado ao Partido Comunista, embora fosse vigoroso nos seus pronunciamentos. É dito a seu favor que se afasta de A Notícia, por conta da infiltração comunista na redação e isso teria sido antes do chamado movimento. Um seu pronunciamento que merece a atenção policial foi quanto à expulsão de Geny Gleiser.  Contudo, o cerne da acusação eram cartas atribuídas a Falcão, lançadas no processo por ordem do Delegado Auxiliar. Uma delas era endereçada a Moura Carneiro sendo apenas uma cópia datilografada e sem ser assinada; aliás, nenhuma das cartas poderia ser considerada como efetivo documento processual, pelo fato de que não estavam assinadas. O Juiz dirá que havia ”inexistência material do delito”.

No dia 29 de janeiro de 1937 estavam decididas as sortes. Resultado do inquérito que fundamentou o processo: Josué Augusto Miranda e Oséas Pimentel de Almeida receberam seis anos e oito meses de prisão celular, na qualidade de cabeças; José Maria Cavalcante, Nildo Pereira de Lucena, Vicente Ribeiro Cavalcante pegaram cinco anos e quatro meses. Ficaram presos os cabos e os sargentos que infiltraram as idéias subversivas no 20º Batalhão de Caçadores. É de supor que o inquérito nem de longe foi capaz de demonstrar o que acontecia em Alagoas, mas induz a pensar o quanto de acompanhamento de informações foi realizado sobre a ANL e o clima que gerou para o que se poderia chamar, à época, a grande composição da esquerda alagoana que vai mergulhar e ressurgir no pós-guerra como atuação aberta.

As velhas anotações que realizei


Um pouco sobre Esdras Gueiros

É interessante anotar, que Esdras da Silva Gueiros era natural de Natal, Rio Grande do Norte, e filho de pastor evangélico. Nasceu em 1904 e desde seus 18 anos havia se formado em odontologia. Oséas Cardoso fez seu elogio em sessão da Câmara Federal no ano de 1986, aliás, mesmo ano de falecimento de Esdras, quando já era Ministro do Tribunal Federal de Recursos nomeado por Castelo Branco. Formou-se em direito no Recife no ano de 1938 e ingressou na política, elegendo-se Deputado Estadual pela UDN, 1947/1951.  

Na homenagem que lhe foi prestada pelo Tribunal, o Ministro José Dantas disse: ‘Muito propósito daquela bem sucedida clínica dentária de Maceió, outro registro de merecida crença [rasura] em proveitosa aprendizagem política para o que viria a ser sua atividade na Assembléia Legislativa de Pernambuco. Com efeito, o dentista Esdras envolvera-se nos labirintos políticos das violentas Alagoas de então em corajosas escaramuças difusas no caldo de cultura que enredaria o Estado Novo; no ardor da idade, demonstrara bravura,  a modo de participação na chamada trincheira do Hotel Bela Vista, num cerrado tiroteio com feridos e ambos os lados contendores [...]”. A ele, Graciliano Ramos fez menção no famoso “Memórias de Cárcere”.

Um resumo

Basicamente, tudo termina no dia 20 de novembro; às sete horas da manha, a oficialidade do 20º é chamada para uma reunião e o Major Andrade Farias comunica, pedindo absoluto sigilo, que havia um trabalho conspirativo desenvolvido na tropa. O comando chega a cogitar da prisão dos envolvidos, mas prefere deixar acontecer a reunião na praia, com a finalidade de coletar mais dados. O plano seria a) acontecer assalto inicial às reservas de armamento das diversas unidades do Batalhão; b) distribuição de material e armamento; c) prisão dos oficiais que não aderissem; c) os mesmos passos se dariam na polícia militar; e) a sede do governo e as repartições seriam tomadas, conforme narrou José Maria, expondo de modo semelhante a um articulista que se assinará Um Observador Militar, matéria publicada na Gazeta de Alagoas em dezembro de 1935.

No dia 21, o mesmo da abertura do inquérito, o comando havia mandado celebrar missa de 7º dia, pelo falecimento de Aguinaldo Valente de Menezes.  O Batalhão havia recebido permissão para comparecer à solenidade religiosa. Arma-se a prisão dos conspiradores e a primeira foi a do cabeça Josué Miranda – que não estava na missa –, e ele foi conduzido para a Enfermaria do quartel, ficando incomunicável. O Observador Militar escreve: “[...] chamei um sub-tenente de minha inteira confiança e soldado ativo e disciplinado, e fomos nós dois buscá-lo em sua residência. Lá o encontramos; atendendo ao meu chamado notei logo a transformação no seu semblante, quando dei-lhe voz de prisão em nome do comandante. Apenas me perguntou qual o motivo de sua prisão, ao que retruquei que ele já devia saber [...]”. Aproximadamente meia hora após a chegada de Miranda, era feita a formatura, iniciando-se o inquérito.

Posteriormente, sabe-se que o movimento havia irrompido em Natal e o 20 BC ficou em prontidão rigorosa. Por acaso, seguindo a narrativa de Um Observador Militar, um telegrafista do 20º capta a seguinte mensagem vinda de Natal: “21º BC levantou-se agora”.  Depois, captaria outra: “As coisas estão pretas por aqui. É bala por desgraça. Você já disse alguma coisa à alguém?”. Maceió pergunta o que estaria acontecendo e recebe a seguinte resposta: “É um movimento comunista dos sargentos, cabos, soldados, e operários daqui. Adeus, por ordem superior estão suspensas as comunicações.”.

Possivelmente, ainda segundo Um Observador Militar, teria sido através da estação PTR2 do 20º Batalhão de Caçadores, que o Brasil tomaria conhecimento do levante em Natal. O comando comunica ao Chefe de Polícia de Alagoas e tenta comunicar-se com o rádio do Recife, não obtendo resposta. O contato foi feito via Great Western.


[HISTÓRIA: URBANIZAÇÃO: GROTAS] ALMEIDA, Luiz Sávio de; RODRIGUES, Viviane. Um bilhete sobre as grotas do Jacintinho






Esta matéria foi publicada no tablóide Contexto, Jornal Tribuna Independente, Maceió, 25 de setembro de 2011


Um bilhete sobre as grotas do Jacitinho


Luiz Sávio de Almeida 


Viviane Rodrigues



Viviane Rodrigues
           A evidência das grotas em Maceió decorre da ocupação desordenada de áreas  hoje consideradas de periferia, a partir do processo de urbanização que foi iniciado na década de sessenta do século passado. As causas desse processo são muito bem conhecidas e decorrem da ancoragem da pobreza tanto gerada urbanamente, como transferida do campo pelos impasses da estruturara fundiária e organização da produção agrária.

           
A periferia urbana de Maceió não pode ser considerada como algo homogêneo; ela mesma tem desníveis internos de renda muito fortes, como se pode verificar, inclusive, no Jacintinho. Para tanto, basta notar a diferença das construções que estão feitas nas vizinhanças da praça nova, a que chamam de Mirante. São residências que se assemelham às que se encontram edificadas na Pitanguinha, havendo, portanto, uma paisagem distante do grosso do Jacintinho, um bairro que se derivou, justamente, da opção pobre para residência.

            O Jacintinho – no que vamos chamar de sua parte chã –, não é homogêneo, sendo possível identificar diversas porções territoriais, cada uma com suas características próprias. Uma das divisões é vista nas partes do mercado e da feirinha, com um forte comércio, a estrutura de serviços que serve ao bairro e, inclusive, os prédios dos supermercados que são considerados grandes e que vivem ao lado dos chamados mercadinhos que vieram para substituir as antigas bodegas. 

           As bodegas foram lançadas para as ruas transversais, justamente as que levam às regiões mais pobres do bairro e, inclusive, tendem a manter a antiga imagem do balcão, o papel tosco,  a lingüiça pendurada, a venda da quarta de charque, o pão, o refrigerante que tem sua história representada no Guarina que parece vir da Paraíba. São estabelecimentos que ainda mantém a caderneta para pagamento no final do mês, a mãe mandando o menino ir buscar as precisões.

         Super, hipo e feirantes fazem um grande contexto de comércio que vara o bairro, sobretudo a partir do viaduto em direção ao Barro Duro; a feirinha, praticamente, faz a fronteira entre eles. Em direção do viaduto para o Canal 5, o comércio diminui de intensidade, ficando uma parte mais residencial. É nas proximidades do Canal 5, que fica a Grota da Bananeira, uma de tantas que fazem o lugar, devendo, desde logo ficar claro, que as grotas tendem a ser mais pobres do que a porção de cima e elas são hoje em dia, praticamente, vistas, especialmente na crônica policial, como destacadas do Jacintinho, como se estivesse sendo lançado um estigma sobre seus moradores, a maioria pessoas absolutamente dignas.

     Contexto traz hoje, duas figuras da grota, contando parcelas de vida; são entrevistas realizadas com o intuito de montar um grande painel da história do bairro e que os autores estão escrevendo para livro a ser publicado pelo Museu Cultura Periférica.


GROTA DA BANANEIRA

 a fala de Benilda Lima dos Santos



            Eu sou alagoana, nascida em Maceió, 1957. Nasci na maternidade Sampaio Marques. Morei na Rua João Ulisses Marques de traz  do cemitério São José até os meus nove anos. Minha madrasta morreu deixando três filhos para criar, foi quando meu pai tinha uma casinha ali descendo aquelas duas ladeiras do Jacintinho, antigamente a gente conhecia tudo ali como Aldeia do Índio, porque não era muito civilizado, só tinha Grota: Pau D’arco, da Bananeira, Reginaldo, fazíamos parte daquela região.

            Fui morar na Grota da Bananeira que o dono loteou o sítio e começou a vender os terrenos; meu pai foi o primeiro morador. Lá o povo dizia que inha uma mula sem cabeça. Eu tinha muito medo dele, era alto, magricelo, branco, com dois olhos enormes bem azuis, era esquisito. Ele me dava bananas, muitas frutas, lá tinha de tudo, chegava de supetão e dizia: Toma. Nunca o fitei nos olhos, tinha medo. Ele morreu com mais de cem anos.

            O sítio da Grota da Bananeira, era toda aquela região ali do canal 5, atravessando o que hoje é a Avenida Coronel Paranhos até o outro lado; descendo pela Rua Jardineira e pela Rua Belém, encontra-se o Reginaldo; subindo encontra o Centro Santo Antônio e as duas ladeiras que hoje são asfaltadas, antigamente não eram.

            Ali onde existe o Cepa Quilombo (Rua Santa Luzia) era uma lavanderia pública, onde nós lavamos roupas. Ali próximo ao Mirante, onde hoje existem as apresentações do folclore, era uma lavanderia pública. Tudo mundo lavava roupa porque não tinha água encanada. Nós descíamos a grota, a gente chamava de “escorrega lá vai um”, para comprar água perto do Buganvília e da Grota do Pau D´Arco. Tinha uma cacimba com água boa, o cara ali fez muito dinheiro. Também tinha a caixa d´agua, do Seu Manezinho, que abastecia o Jacintinho, quando quebrava uma peça íamos buscar no Riacho Reginaldo ou descíamos para o Rego do Sapo. 

          Poucas eram as casas que tinham energia, tinha várias casas que ainda usavam o candeeiro. Os sítios que foram surgindo como a Grota da Bananeira depois foi urbanizada. Tinha um matagal de jurubeba, palha do ouricuri e muita planta medicinal, onde tirávamos para fazer vassoura, onde hoje é o Conjunto José Peixoto. Surgiu em 1967, foi o primeiro conjunto.

            Em 1968 colocaram o primeiro ônibus do Jacintinho da empresa Santa Maria. A estrada era de barro, levantava um poeirão, no verão só Jesus tinha piedade, Santa Maria rodando e meu Deus do céu. Só tinha um ônibus, mas foi a alegria do povo do Jacintinho. Começamos a ter valor!

            No canal 5 era um campo que não tinha nada de civilização, era um campo de jogar. O time Palmeiras foi quem inaugurou ali. Antigamente a diversão que nós tínhamos na época, 1967, 68, 70, era esse time chamado Palmeiras pra todas as mocinhas da época ficar naquele campinho paquerando seus namorados, o meu como sou muito católica, religiosa, saiu do nichozinho de Santo Antônio, numa das quermesses. Conheci seu “bendito” Orlando aos 14 anos e tenho 40 anos de casamento.

       Não tínhamos igreja, era capelinha, depois com a vinda de padre Adriano e Silvestre (já morreu) foi que o Jacintinho começou a ter um valorzinho. Esses padres eram holandeses, chegaram ali na Vila Paroquial do Poço, na paróquia do Senhor do Bomfim, mas assessorava a capela de Santo Antônio. Não sabíamos o que era comunidade, nos ensinaram. Não sabíamos o que era uma festa, só tínhamos a Catedral, Igreja do Livramento, Nossa Senhora das Graças, mas ainda existia aquela separação entre a elite e os pés de chinelo. Os pés de chinelo não desciam para a elite, e a elite que era Catedral, Senhor do Bomfim, Paróquia de Nossa Senhora das Graças, de São José (Trapiche), não subiam para o Jacintinho. O Jacintinho era conhecido como Aldeia do Índio porque dizem os antigos que viveram índios ali, não alcancei essa época.

        Com os padres surgiu o projeto que hoje é a Igreja Nossa Senhora da Conceição, mas antigamente eles construíram como Santo Antônio. Para mim eles trouxeram para o Jacintinho a civilização e a esperança, as mocinhas da minha época aprenderam o significado de comunidade e a ter responsabilidade. Fundamos o grupo jovem da igreja: Eu, Marluce, Nadilma, Fernando, Joabson, Ademildes, Beto (falecido), Antônio (falecido). Nós tivemos um avanço muito grande como pessoa, como católicos, foi dali que a gente viu a presença mesmo da igreja, trouxeram umas irmãs, tudo era para essa igreja. Eles construíram a Igreja de Santo Antônio.  Em 1979 veio à construção do Centro Comunitário Santo Antônio e a transformação da igreja em paróquia.

            Em 1979 começaram os projetos de urbanização do Jacintinho. Para construir a pista foi necessário demolir a lavanderia pública e várias casas, cortaram barreiras para fazer a leste e oeste. Hoje temos uma avenida belíssima, e de um lado o Mirante e do outro as casas. Asfaltaram e construíram a Avenida Coronel Paranhos.
O Jacintinho não tinha essa violência, ah não ser em época de carnaval quando o bloco Caveira descia arrastando tudo e todas. Onde é a sede do CEPA Quilombo (rua Santa Luzia) e o Mirante Cultural (no Mirante Kátia Assunção) a gente conhecia como Engenho de Dentro. Lá tinha o bloco Caveira e a Escola de Samba Treze de Maio (tradicional) - do pai da Sônia, depois ficou com ela, agora com as irmãs. O que existia muito eram raparigas, raparigas tinha muito, porque se perdiam com os “dondoquinhos”. Tinha a sede do Palmeiras que era a famosa gandaia e no Triunfo ( no final da rua), antigas no tempo de gandaia. Gandaia mesmo agora falo como o Sávio de Almeida, não incesta o sururu, aprendi com ele a não ter papa na língua. Era o tempo da famosa gandaia de prostituição.

            A sede do Palmeiras ficava na travessa que dar para o Canal 5. O pai do Helcias (Coordenador pelo Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu – CEASB junto a Comunidade da Vila Emater II (antiga favela do lixão), o finado Biu, era sócio e abria a gandaia que era o divertimento das moças para dançar. Lá você não podia cortar cavalheiro; eu dançava lá porque ia com um amigo-irmão que dizia: “Você gosta tanto de dançar que vou te levar para a gandaia”, ai eu dizia: “Filho da peste, vai me levar para a gandaia!”. Um dia papai me pegou, levei uma pisa da “bouba” porque estava lá na gandaia dançando. Na rua Santa Luzia tinha a gandaia JK, o Forró do Carrero próximo a Rua Triunfo, a Real na Rua Floresta e  a Pioneira na avenida Coronel Paranhos.

            A feirinha surgiu já com a civilização, o bairro foi crescendo. Eles viram a necessidade das pessoas venderem as frutas que tiravam dos seus sítios naquela pista, depois se tornou um mercado. Hoje é um mercado. A gente comprava antes no mercado velho (Levada). A mudança principal da minha época foi quando lotearam o sítio e começou a se formar as ruas; cada um foi comprando seus lotes e fazendo suas casas, que não tinha casa própria ficou beneficiado porque era barato comprar os terrenos. A chegada do ônibus também foi muito importante. Vale ressaltar o surgimento do Canal 5 que tinha o programa da D. Fernanda que era voltado para a comunidade, escolhia meninas das escolas públicas para se apresentarem nele.
O fato mais triste para mim foi quando o Seu Calixto matou o Afrânio, responsável pela caixa d´agua, por ter ciúmes da filha. O Seu Calixto também “comeu” (estrupou) as três filhas. Esse fato não aconteceu na Grota da Bananeira, mas causou comoção a todos. Na Grota não houve nada tão triste que me marcasse. Naquele tempo não havia violência na grota, só sabão (as pessoas namoravam muito).

            O fato mais alegre foi construírem a Igreja de Santo Antônio. Não houve nada na grota tão feliz para falar. Era uma vida de dificuldade porque todos eram pobres, a maioria lavava roupa de ganho, trabalhavam em casa de família, mas era tranquilo.



 GROTA DA BANANEIRA
 a fala José dos Santos Eucalixto

            Meu nome é José dos Santos Eucalixto, tenho 68 anos e moro faz 37 anos na Grota da Bananeira. Nasci em São Luiz do Maranhão, morei até os meus oitos anos de idade. Minha mãe me teve de noite e no outro dia morreu, quando tinha oito anos meu pai botou a peste de uma mulher dentro de casa que batia na gente. Tudo o que a gente fazia, ela contava ao velho e a gente ia para o cacete, ai pensei: “Não é assim”. Fugi de casa por causa da madrasta, até a data de hoje. Cheguei a Alagoas debaixo de um caminhão, agora o motorista era um primo meu que vinha para Maceió. Tinha muito irmão aqui, mas não procurei ninguém porque iam querer me levar de volta e a surra seria dobrada.

            Fui trabalhar no Farol de jardineiro numa casa. Quando estava com 14 anos, a mulher morreu, fiquei sozinho de novo. Comprei uma casa na Pitanguinha, com 14 anos já tinha minha casa e uma mulher. A mulher foi embora e me deixou sozinho, arranjei outra, vendi a casa da Pitanguinha e fui morar no Pilar, mas ela adoeceu e perdeu o juízo. Passava uma semana boa e quatro meses doente, me separei e vim morar aqui.

            Cheguei aqui com 31 anos, só tinha três casas com a minha. Quando a gente chegou aqui só tinha capim, ai a primeira coisa que fiz foi um sítio de banana e de cana de açúcar, também tinha uma horta de tomate, cebola, pimentão.

            A gente pegava água perto do Buganvília tinha um cacimbão lá, onde passa o Reginaldo. Tinha o rapaz aqui, o Renato, quando não tinha a gente descia para o Riacho Reginaldo ou para a Mangabeira (Riacho do Sapo). A água a gente se juntou, fizemos um abaixo assinado e formos à Casal, que colocou água na primeira grota e de lá para cá ficou de resolver e até hoje não botou. A gente se juntou, compramos os canos e puxamos lá do cano mestre, mas pela Casal mesmo não tem, a obrigação era eles trazerem o cano até aqui.  Primeiro veio à luz, a gente se juntou fez um abaixo assinado e a CEAL veio. Antigamente era “gato”, gambiarra, a gente puxava lá de cima da pista.

            Quando chegava uma família,  eu dava um terreno se o cara fosse conhecido ou através de um que me pedia. As casas eram de taipas, aqui ainda tem muita assim. Quem tinha dinheiro para pagar pedreiro, pagava, quem não tinha a gente se juntava e construía a casa. A divisão das ruas a gente foi fazendo. A maioria do povo veio do interior;  trabalhavam de pedreiro e servente. 

            Quando vim para cá,  só passava dois ônibus por dia, quem tinha dinheiro ia de ônibus que não tinha ia a pé. Tinha gente que tinha medo de andar de ônibus porquê na ladeira de pedra aqui na Legião às vezes o ônibus descia de ré. Antigamente a gente batia tudo de pé, era melhor, a gente descia para ir tomar banho de rio de água doce por traz da Mapel, chamasse Rego do Sapo. Esse rego de água podre que agora passa por ai era água doce, hoje é que está uma carniça que não presta.

            A gente tinha que arrasta para o Pronto Socorro lá embaixo na Feirinha, ou para o que ficava por de tráz da Santa Casa, em último caso o do Trapiche. Agora a saúde está boa, porque tem posto por todo canto, aqui mesmo na Rua Jardineira tem um, na Feirinha tem outro, na Pista Nova, na Maravilha que era aonde a gente ia, mas agora está em reforma. No mercado tem outro bem antigo.

            Tiveram muitas mudanças aqui, a prefeitura calçou. Não tinha luz,  a CEAL botou, não tinha água a Casal botou. Para vista do que era hoje é bom. Aqui não tem associação de moradores, mas tem uma patota, os mais velhos, que quando a gente quer uma coisa faz um abaixo assinado: Eu, Seu Vicente, Ciço, outro Vicente, Carlos, Tânia, Reinaldo (hoje é que é o responsável por aqui).


            O fato mais alegre que aconteceu aqui era quando não existia bagunça. Todo vida foi bom aqui, não tem fato triste. Onde chego sei viver, respeito e considero todos. O lugar quem faz é você, não é ninguém.           A mudança maior que teve aqui foi vê essas casas todinhas de tijolo, antes era tudo de barro, a minha também era de taipa e agora estou construindo de tijolo.


[HISTÓRIA: MEMÓRIA: PENEDO: ALAGOAS] ALMEID, Luiz Sávio de. A Rua da Penha em Penedo: heróis e cinema







  Este texto foi publicado na coluna Espaço no dia  6 de fevereiro de 2011 , O Jornal, Maceió

[História e Memória]


A Rua da Penha em Penedo: heróis e cinema

Luiz Sávio de Almeida


Os livros de história

     Uma história do arco da velha  era diferente de Trancoso e  Carochinha. Era uma expressão que  
também se usava para introduzir  desconfiança quando ao que foi falado  ou indicar fantástico, antiguidade...  Alguns lançam a expressão  
no Velho Testamento, outros falam  
nas superstições medievais com as  
bruxas. Carocha para mim – e era  
assim chamada pelo pessoal da   
Bananeira de Baixo, o que leva para 
uns 150 anos mínimos – era aquela  
barata cascuda, grande, que aparecia 

e muito em tempo de inverno em  

Arapiraca. O povo chamava também  

de barata de coqueiro. Mas a  
palavra já teve significado na  
perseguição religiosa, sendo do 
tempo da inquisição uma mitra feita  
de papelão e posta nos feiticeiros,  
conforme o Dicionário de Folqman,  
publicado pelo Impressor do Santo  
Ofício em Lisboa, no antigo ano de  
1755. Diz Silva que esta carocha é  
derivada do inglês: caroack. No  
entanto, ele mesmo vai dar como  
sinônimo de barata (“uma espécie  
de inseto caseiro no Brasil”), havendo,  
também, o verbo encarochar.

     Esse Silva era nascido no Brasil e, em 1831, seu  dicionário tinha quatro edições. ssa carocha do Santo Ofício está no D. Quixote, na cabeça de Sancho. O bicho está em prosaico inseto em Camilo Castelo Branco em O que fazem mulheres. Por aí se pode ir e andar muito em relação à marca pública e teatral dos crimes da Inquisição. Mas, na Rua da Penha, carocha não tinha o senso da ignomínia, ia mesmo para o tempo da carocha, coisa velha. O encarochar da Rua da Penha era diferente.



    A Rua da Penha tinha história de Trancoso, da carochinha e do arco da velha, coisas que se misturavam à tradicional coleta ou à invenção dos contos populares, que remontavam tradições para a construção das nacionalidades européias. Eu tinha coleção daqueles livrinhos de história que a Companhia Melhoramentos editava, como o Gato de Botas, a Branca de Neve e toda aquela saraivada cultural de fadas, príncipes, reis e rainhas num carnaval de majestade sobre os sonhos infantis da Rua da Penha. Tenho todos guardados, encadernados, a capa azul, a fantasia européia.           Eu  tinha também livros da editora Del Vecchi, formato grande, os melhores contos de fada e Simbad, o marinheiro, além de Ali Babá e os Quarenta Ladrões.



     Trancoso era, na verdade, o senhor Gonçalo Fernandes Trancoso, que publicou uma coletânea de contos ditos morais, tendo sido editado o primeiro volume em 1585; o segundo, em 1589; e, finalmente, o terceiro apareceu após a sua morte e por iniciativa do seu filho. Tudo passou a ser história de Trancoso e a expressão contos de fadas parece que não pegou bem ou, então, a experiência histórica fez um recorte separando o que vinha da tradição ibérica e o que veio das coletas européias do romantismo.



Histórias em quadrinho

     Era, na verdade, o que eu lia; a miscelânea estrangeira que iria aparecer também nas revistas  em quadrinhos, substituindo o romantismo pelo americanismo das tiras. Dentre elas, a minha preferida era a Edições Maravilhosas. Recentemente  recebi um presentão pelos Correios: dois exemplares 
da Edição Maravilhosa, ambos Extra,  

sendo um de 1956 – Doidinho, de José Lins do 

Rêgo – e outro de 1957 intitulado A terra vai 

ficando ao longe, de autoria de uma mineira chamada 

Lasinha Luís Carlos. O primeiro foi adaptado  
e desenhado por André Le Blanc e o segundo 

 de responsabilidade de Ramón Llampayas,  

espanhol que trabalhou para a Ebal. Le Blanc era 
do Haiti e praticamente foi o criador da famosa boneca Emília, tendo sido ilustrador muito requisitado por Monteiro Lobato.



     
     Colecionava, com cuidado, a Edição Maravilhosa, bem como Tarzan que – segundo ouvi uma má língua dizer – é o american way of life na selva. Era um mercado que, sem dúvida, foi dominado pela Ebal, editora criada pelo Adolfo Aizen, que pode, na verdade, ser considerado o grande introdutor dos quadrinhos no Brasil. Ela funcionou de 1945 a 1995. Ajudou a 
cultuar O Capitão América, Super-homem, 

Fantasma, Mandrake, Batman e tantos outros, 

como, por exemplo, Namor, o príncipe submarino.


  

     Ao contrário de Clark Went, Namor vinha das profundezas do oceano, filho de uma Princesa da Atlântida com um marinheiro; ele, além de ser anfíbio, conseguia até voar. O romance entre a mãe de Namor – a Princesa Fen e o marinheiro – começa quando está sendo realizada uma exploração sobre uma cidade submersa. Lançam bombas que começam a destruir a cidade. O rei Thakorr manda sua filha, a Princesa Fen, com uma patrulha, verificar o que estava acontecendo na superfície. Ela decide ir sozinha, sobe, todos ficam impressionados com a beleza, ela decide demorar para poder melhor informar ao seu pai sobre aquele povo. Resultado é que engravida e vai nascer Namor. O fato é que ele vai acabar sendo um lutador contra o nazismo, ao mesmo tempo em que ia para a cama com a agente Betty Dean.



      Eu gostava do Fantasma, o espírito que anda, fazendo justiça, sobretudo, na selva e imortal para quem não sabia seus segredos de linhagem. Ele nasceu em 1936, criado e desenhado por Lee Falk. Sua vida era copiosamente documentada e os arquivos estavam na Caverna da Caveira. A única pessoa a saber desse segredo imenso era Guran, chefe dos pigmeus Bandar. Nem a namorada do Fantasma nem o Comandante da Patrulha da Selva sabiam de qualquer coisa mais aprofundada sobre o herói, que usava uma vestimenta  especial a proteger-lhe o rosto e também, para efeito de timbre, um anel com o símbolo da caveira. Ao sair da selva, cobria o uniforme usando um chapéu, calças e, sobretudo, transformando-se em Christopher Walker e, às vezes, viajando em companhia de Capeto, seu lobo de estimação.


     Ele andava em um cavalo chamado Herói, tinha um falcão e enrolou por anos a Diana Palmer, com quem terminou por casar gerando um futuro Fantasma, de quem nada se sabe, mas deve andar aí pela altura da Lagoa do Peleve. É uma bela sensação manusear o velho exemplar. É também de Lee Falk a criação de Mandrake, um mágico de capacidade extraordinária, com seu nome estando associado à mandrágora. Ele usava como ninguém a técnica de hipnose, sempre acompanhado pelo seu amigo Lotar, um príncipe africano. Mandrake apareceu primeiro em 1934 e também passou anos enrolando Narda.



     Gente sem qualquer imaginação andou me falando que Mandrake tinha um caso com Lotar e somente vai se decidir anos e anos após o amor à primeira vista que surgiu pela Narda. Casam em 1997 e foi prá lá de idosos. Acho que nem aproveitaram Xanadu. O mesmo malidicente veio me comentar que o Robim era caso do Batman. Jamais isso poderia passar pela minha cabeça em Penedo. O que de tão secreto havia na vida do trilionário Bruce Wayne para ter uma batcaverna, batcarro, batamor? Um batblue? Sei que ele ficou meio lelé depois do assassinato de seus pais; talvez, em inglês, funcionasse melhor a palavra peculiar ao invés de lelé. Ele adota Dick Grayson em 1940, menino filho de artistas de circo. Chato é que Dick parece ser um baita palavrão em inglês e nem me atrevo a traduzir. Bom, a coisa se complica pelo fato de o homem morcego se casar com a mulher gato, com quem vai ter uma filha. A gata morre. Como se pode verificar, era uma história solenemente complicada. O Capitão América era o próprio defensor da democracia na luta contra os nazistas. 
       
     Foi criado durante a guerra, sofreu diversas transformações e, na Rua da Penha, utilizava o seu escudo fantástico, com o qual fazia a sua guerra. Jamais os super poderiam estar fora do grande universo americano. O azul, o branco e o vermelho eram comuns e não eram as cores das Alagoas. Um outro tipo de Estados Unidos vinha com as aventuras de cowboy como se fossem lições sobre a formação histórica, a conquista e a formação do espaço através de um confronto permanente. 
  O quadrinho resolvia o mundo e nisso resolvia-se a Rua da Penha, uma determinada forma de inclusão em uma lógica radical de cadeias de poder. Nem se brincava nem se lia como se, angelicalmente, tudo fosse um em si, uma coisa resolvida em si mesma. Então, cada pedra de calçamento da Rua da Penha estava em um sistema de relação, embora a ideia de sistema não a resolva, e sim a lógica fundante da organização.
    
     Não causaria espanto que Batman, Superhomem, Fantasma e tantos outros andassem por aqui, em piruetas magistrais, com o super poder à disposição da supersalvação. Tudo então faria parte da ilusão de que andávamos em direção a uma parusia, devidamente protegidos pela santificação de iluminados? E quem poderia pensar que haveria uma mera e singela garantia humana?    Os anos da construção da guerra demandavam construção de heróis e a demonstração de que a civilização cristã ocidental, se não os tivesse, tinha inteligência para criar ou mesmo importar, como foi o caso de um deles, que veio de Kripton, e de Namor, que era dos atlantes.
    
     Ora, se não havia um culto aos super-heróis na Rua da Penha, pelo menos eles tinham admiração, respeito e apoio, pois vinham vestidos de  bem. Fundava-se uma mirabolante Távola Redonda e havia uma escondida busca pelo Santo Graal. Claro que é uma comparação rude e até meio deselegante, mas a salvação da terra estava nas mãos de uma ideologia que dispunha do cálice que coletou o sangue do martírio. Haveria um super-herói bobo? Não lembro. Todos sabiam da força que tinham e de como viver para mantê-la. Afonte da força era longe do humano e, assim, revestia a construção de uma espécie de nova mitologia sem atavios mais sofisticados.





   Eu gostava do Homem Borracha; seus poderes fascinavam, mas era mesmo ligado no Capitão Marvel, que, na realidade, era Billy Batson ou Guilherme Filho de Morcego, bom em inglês e péssimo em português. Ele depende de um mágico chamado Shazam, pois foi escolhido para guardar o bem. Basta ele gritar e logo se transformava de homem franzino e com problemas físicos em um Capitão Marvel, um paladino da justiça. Nesse passe de mágica, incorporava as mais excelentes qualidades que a história revelou, todas elas derivadas de um ser igualmente mágico. De Salomão, ele apanhava a riqueza da sabedoria; de Hércules, recebia a força; de Atlas, correspondia-lhe o vigor; Zeus era o poder; Aquiles, dava-lhe   coragem; e Mercúrio, a velocidade. Havia uma ponderação de excelências históricas: uma judia e o restante grego. Mantinha-se o complexo cultural das integrações gregas e judaicas?

    O cowboy jamais perdia, mas tudo não passava de uma resolução bem mais humana de conflito. Tudo se passava pelo farwest, uma espécie de sertão sendo edificado, onde aqui e ali, índios tombavam, estradas de ferro rompiam caminho, chineses se manietavam aos trilhos, xerifes corruptos bravejavam e tudo aquilo que fazia o mundo da conquista. A violência, a correria, a velocidade, tudo isso entusiasmava uma platéia, que se ligava totalmente e ficava frenética.  Olhe, o Coliseu devia ser daquela forma em termos de algazarra; nós nos comportávamos como se o ajuste do mocinho com o bandido fosse o ajuste de todos nós. O cinema literalmente caía quando o bandido se arrebentava. E ao soar o gongo, ao fim de tudo, todo mundo continuava enredado no meio de socos
e tiros.


A árvore dos enforcados



   
     Desse tipo de filme, o que mais marcou minha cabeça aparece depois e era com Gary Cooper. Foi A Árvore dos Enforcados, com Maria Schell.  A música era belíssima, a ação era densa, ia bem mais  longe do que as formas tradicionais  da construção do western, além, por  exemplo, de diversos filmes do John  
Wayne, na sua mania da bela 
América. The Hanging Tree foi de fato a sensação do último verso da  música, que,  numa tradução literária,   solta, dizia qualquer coisa como:  Cavalgando para seu sonho e destino.


     Acho bonita essa ligação entre sonho e destino. Os cowboys que pipocavam o  cinema eram de baixo custo, marcavam tipos, levavam aos fãs a algazarra de baixo custo, marcando mocinhos como Audie Murphy (um herói de guerra) e Roy Rogers, numa velha estrada que parece ter sido marcada pelo Tom Mix passando pelo Hopolong Cassidy. Gene Autry era outro arrumadinho, o cowboy cantor. Os mocinhos, alguns tiveram o doidelo junto, e um deles era o Gabby Hayes, extraindo gargalhada. Ele andava com Roy Rogers, Gene Autry, Bill Elliot, Randolph Scott, todos caras de primeira linha.

A Deusa de Joba e os Tambores de Fu Manchu






     Foi do cinema que veio a fixação 
da ideia da beleza feminina em mim. 

Jamais eu poderia dizer que foi uma 

paixão; nada mais importante do que 

os episódios das séries e ninguém 

perderia sem motivo real. É que se 

passaria a discutir, durante toda a 

semana, a solução que o artista daria 

para a situação em que se encontrava 
e era conhecida, na Rua da Penha, 
como o perigo do mocinho. Vi muitos 
seriados, mas o melhor de todos e, 
não me resta dúvida, foi a Deusa de 
Joba; depois aparece Os Tambores de 
Fu Man Chu.





     
     Hoje tenho ambos completos em casa e, vez em quando, dou uma belicorada. Boris Kaloff foi um Fu Manchu, Manchúria. O Dr. Fu Manchu vivia em uma série de romances escritos por um inglês chamado Sarsfield Ward. Os tambores de Fu Manchu foi um romance escrito em 1939 e arrepiou a meninada de Penedo. Logo em 1940, a Republic Pictures estava fazendo o seriado em 15 episódios, tamanho usual. Eram quase quatro meses de exibição e, com isso, o público não cansava, tendo de ser alimentado constantemente, o que obrigava e levava a uma alta produção. Jamais poderia haver um sábado penedense sem que houvesse um seriado.


      Os seriados começaram a ser produzidos na década de dez, do século passado, com as produções chegando perto de 1960. Apartir daí há uma severa concorrência da televisão, que muda o estilo de fazer os seriados e eles perdem uma característica que era essencial: uma comunidade
que os via. Aquela multidão de menino, de uma hora para outra, era uma unidade, embora volátil.    A frente do cinema ficava cheia de menino, uns vendendo e trocando estampas, revistas, pedaços de celulóide. 
       
      Um pedaço de filme valia dinheiro, mormente se era colorido, mormente se tinha uma cena do mocinho. Gente inventava que havia feito uma máquina de projeção com um despertador velho. Ouvi, mas o certo é que se tinha uma espécie de lente feita com lâmpada velha e cheia de água. Um mundo existia antes, e ele ia sumindo na medida em que se entrava no prédio do cinema. Cinema era um complexo de situações: o interno e o externo.
     Lá dentro, a algazarra, a gritaria, como se sumisse a massa comportada que estava fora. O baleiro e eu comprando chicletes que só Adams fabrica. E esse Seu Adams realmente existiu e começou a produzir em 1872, chegando ao Brasil em 1945, coisa também da guerra. Comprava também as caixinhas de passa de uva da Califórnia. Em Penedo consumi passa e heróis. Chicletes também.  

       Tinha vez que eu entrava mais cedo, ia para o camarote para jogar helicóptero, enquanto aviões poderiam estar cruzando os ares. Na verdade, ainda hoje gosto de jogar helicóptero. Deu chance, o bicho desce com as asas rodando e eu cometendo o engano público de sujar as ruas. A culpa é da Rua da Penha, que não me larga. Sou engenheiro aeronáutico de helicóptero de papel; é preciso ter uma certa prática para calcular a envergadura das pás, o corpo de sustentação embaixo. No cinema,  a altura e a ventilação eram poucas e o helicóptero logo caía, mas a sensação de ver aquilo rodando era impagável. Fui e continuo a ser um péssimo fabricante de avião.
     
       A Rua da Penha sabia muito sobre chicletes. Todo mundo sabia que era fabricado com a goma do sapoti e conheci alguns que colecionavam as caixinhas pelo número
que elas tinham nas abas de fechamento. Diziam também que, juntando uma determinada quantidade de caixas, a fábrica trocava por uma cadeira de rodas, dava a cadeira a alguém. Mas o mais importante é que circulava uma informação: era preciso ter cuidado para não engolir, pois grudava no estômago e a pessoa morria.

     Lá dentro do cinema, uma bagunça. A matinal ia começar, mais silêncio, todo mundo procurava acomodação e tudo seguia o ritual do jornal, do desenho, da propaganda dos futuros filmes e aí o mundo se remodelava e tudo se unia na repartição do momento, o que não significava uma verdadeira comunhão. Ninguém jamais, diante da demonstração de tal ordem de atomicidade, poderia conceber que se plasmava uma unidade.

    
      Fora a vida, somente o cinema era um grande 
fabricante de imagens em Penedo. E ele me deu a perfeição feminina justamente na figura de A Deusa de Joba, cujo nome era Valery Tremaine. Joba era uma cidade perdida  no meio da selva e Valery foi transformada em sua Deusa, controlada pelo Sacerdote, que era servido por uma tropa de homem morcego. Seu irmão Baru consegue fugir em busca de socorro e é encontrado no meio da selva pelo mocinho, que era Clyde Beat, na verdade, um grande artista americano: domador de leões. Por isso vai que existe cena com leão. A Deus de Joba passou a ser venerada por mim. Ela sempre aparecia com uma túnica branca, que lhe dava uma leveza e uma graça celestial. Era Elaine Shepard, artista que não teve qualquer projeção, mas chegou a ter presença de primeiro plano na área do jornalismo.