Observação: O termo homossexualidade é o o indexador da matéria. Manteremos homossexualismo caso tenha aparecido nos textos encaminhados e, também, por ser corrente. O que importa, na realidade, é o chamamento realizado pelas mães, por duas mulheres extraordinárias que vivem no sertão, por um filho que se encontra com a família. Aí sim! Tudo se minimiza frente ao conjunto humano que aflora nos textos.
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ALMEIDA, Luiz Sávio de. Um pequeno bilhete sobre a necessidade de se poder amar como o coração escolhe. Tribuna Independente, Contexto, Maceió, 01 Jan. 2012.
CABRAL, Graça. A redescoberta do amor e de um filho. Tribuna Independente, Contexto, Maceió, 01 Jan. 2012.
MOYAÉS, Ângela. A redescoberta do amor e de uma filha. Tribuna Independente, Contexto, Maceió, 01 Jan. 2012.
NASCIMENTO, Edvaldo. Entrevista. Conversa da militante Ana, casada com a Piu, lá no extremo Oeste das Alagoas. Tribuna Independente, Contexto, Maceió, 01 Jan. 2012.
VETTORAZZO, Gabriel. A redescoberta do amor e de uma família. Tribuna Independente, Contexto, Maceió, 01 Jan. 2012.
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Um pequeno bilhete sobre a necessidade de
se poder amar como o coração escolhe
Sávio de Almeida
Contexto terminou o
ano de 2011 pedindo paz, diminuição da violência e enfocou, especialmente, o
que passam os rueiros. Deseja começar o
ano de 2012 na defesa radical de algo extremamente simples: todos temos o
sagrado direito de amar como somos, de
amar a partir de como nos definimos e nos encontramos no meio deste mundo,
vasto mundo, no dizer do poeta.
Contexto carrega hoje,
o admirável depoimento de uma mãe e de um filho. Ela, uma querida amiga, que ensina a grandeza da relação entre
respeito e amor. É a Graça Cabral e seus anos de nossa amizade carinhosa. Ele, seu filho Gabriel, dá-nos a abertura de sua vida para ajudar a tantos
que se amargam pelos cantos, vítimas da
perseguição, do preconceito, da incapacidade dos pais em amar... Traz também, o
depoimento de uma mãe sobre a descoberta de sua filha, lá nos lados de Brasília.
Contexto apresenta, inclusive, a fala de uma valente mulher dos sertões das
Alagoas, nas bandas do Delmiro Gouveia. Ana. E ela casou com Piu e são felizes
e muito. Para que as contribuições chegassem, foi preciso a parceria de Mônica
Carvalho de Almeida em Maceió, articulando Graça e Ângela. E de Edvaldo Nascimento em Delmiro
Gouveia, ambos nossos recentes parceiros.
Contexto duvida que a homomofobia
diminua, caso não despenque o reinado do preconceito dentro dos lares a que chamo de filhosfóbicos, aqueles que expulsam, que aturam por não ter saída, que fazem
filhos padecerem, os que viram as costas e humilham muito mais do que qualquer
outra humilhação pode causar. Pais de fobia, são ilustrações curiosas da
maldade ou da incapacidade de ser bom.
Pai de homossexual, vós
estais aí e eles estão aqui; vosso tempo é um, vosso espaço não é o dele. É
tudo um lugar a ser escolhido no mundo. Estais a pensar que a diferença vos
persegue? A diferença vos aproxima. Deixai vosso filho saber do seu próprio caminho,
com o amor, a paciência e a bondade que
tens em vosso peito sensato.
Abrandai vosso coração
no que for malicioso, pois deveis
construir a beleza da harmonia;
fortificai vosso filho com vosso amor; protegei vosso filho com vossa coragem contra
toda e qualquer iniquidade; levantai vosso
braço pois se ama lutando; procurai
o universo de vosso amor nos olhos de vossa criança; deixai que vosso filho vos
sinta, pois veio do vosso corpo e da
vossa alma para ser livre e testemunhar a própria liberdade.
Contexto
espera que está luz esteja acesa como vosso propósito deste ano.
A redescoberta do amor e de um filho
Graça Cabral
Eu sempre admirei seu jeito de ser,
seu gosto apurado pelas artes, pela boa música e isso sempre lhe rendeu
críticas e discriminação nos lugares por onde ele circulava. Um amigo meu, daqui
de Maceió, chegou a me dizer um dia: “Você precisa colocar seu filho pra jogar
futebol, lutar Karatê”. Eu achei aquele comentário extremamente preconceituoso
e machista. Meu filho tinha que fazer o que fosse de seu agrado e não o que a
nossa sociedade de machos espera de um menino. Como me orgulho de ter criado meu
filho e minha filha desse jeito, com respeito pelo que elas admiravam!
Meu filho foi crescendo e se
isolando cada vez mais. Eu sentindo a sua tristeza e a sua solidão. Aquilo me
consumiu por muito tempo. Via um adolescente lindo, inteligente, sem amigos e infeliz.
Eu sabia o motivo exato de sua infelicidade. Sabia que a sua orientação sexual
era diferente da que a sociedade e a igreja impõem. Mas, achava que ele é que
tinha que descobrir e aceitar isso.
Um dia recebi uma carta sua, a
qual, ele também enviou pra sua irmã e seu pai. Ao lê-la, ao contrário de
muitas mães que conheço, senti um alivio enorme e uma emoção muito grande, pois
sabia que daquele momento em diante, meu filho poderia ser feliz. E não foi
diferente. Ele tinha a família do lado dele, e sem o rejeitar. A nossa relação
mudou completamente, a relação dele com a irmã, também e com o mundo. Claro que
não é fácil você imaginar que um filho seu poderá ser vítima de preconceitos e
de discriminação ou alvo de chacotas por parte da sociedade em que vive. O meu
filho é uma pessoa linda, generosa, criativa, inteligente. Um filho
maravilhoso. Sempre conto com ele pra tudo na minha vida. Só me dá alegria.
Tenho orgulho de ser sua mãe.
Comecei a ter contato com uma mãe, a Angela Moysés, que é
a facilitadora do GPH – Grupo de Pais de Homossexuais, em Brasília. Decidi que
eu queria contribuir com a causa LGBT, lutando contra a homofobia. Daí até
chegar à campanha “Mães da Igualdade”, muita coisa aconteceu. A princípio,
tentamos formar um grupo de mães de homossexuais. Este grupo cresceu e virou um
grupo de mães e de filhas. A proposta seria um grupo independente de combate a
homofobia. Depois virou um grupo de estudos. Enfim, somos pessoas que buscam
dar um basta a essa doença terrível que é a homofobia e que culmina nos crimes
de ódio. Abrimos a 2ª Marcha Nacional de Combate a Homofobia, em Brasília.
Alagoas hoje é o primeiro estado que mais mata por
homofobia. As famílias devem se unir e ficar ao lado de suas filhas lésbicas e
de seus filhos gays. Ninguém faz “opção” de ser discriminado. É necessário que
a sociedade acorde e respeite as pessoas que se relacionam afetivamente com
pessoas do mesmo sexo. É necessário dar voz à essas mães que clamam por
justiça, pelo fim da violência e pela igualdade de direitos.
Tudo que mais quero é que meu filho seja feliz com a
pessoa que ele escolheu. Assim como quero o mesmo pra minha filha heterossexual
que também amo do mesmo jeito.
A redescoberta do amor e
de uma
família
Gabriel Vettorazzo, o
filho da Graça Cabral
Meu nome é
Gabriel Cabral de Miranda Vettorazzo, tenho 27 anos, sou brasileiro, gerente de
uma empresa de construção civil, formado pela UNB em Administração, moreno,
homossexual, cabelos enrolados, olhos castanhos e estou noivo.
Faz quatro
anos que eu “saí do armário”, hoje acho que demorei um pouco, mas cada um tem o
seu tempo. Não gosto muito dessa expressão, acho muito minimalista pra o que
esse processo representou na minha vida, mas é a que usam e eu não pensei em
uma melhor, então...
“Sair do
armário” foi uma das coisas mais importantes e corajosas que eu fiz e que,
provavelmente, vou ter feito em toda a minha vida. Acho um pouco difícil que
quem nunca passou pelo processo possa dimensionar o tanto que isso mexe com as
pessoas.
Lembro-me
que pensava que depois de contar pra minha família “agora sim eu posso viver”,
antes era uma inércia, eu sabia o que esperavam de mim e seguia o modelo que
foi preparado, mas no fundo eu sabia que o momento de sair do armário
chegaria...
Então, me
esforçava pra ser o melhor em tudo que eu fazia, pra quem sabe assim minha
“saída do armário” ser ofuscada pelo que eu havia conquistado. Papo furado,
hoje eu aprendi que tenho que ser bom pra me satisfazer, porque sair do armário
na nossa sociedade ainda ofusca qualquer que seja a sua conquista.
Lembro que
meu pai me tratava como se eu fosse de uma fragilidade que ele não havia
enxergado antes. Ainda, no olhar das pessoas que eu via a mudança, algumas
amigas se afastaram, algumas se aproximaram e muitos novos surgiram. A minha relação com a minha família e com a
vida mudou completamente, porque as minhas falas e os meus gestos não vinham
cheios de cuidado em preencher a imagem do bom primogênito heterossexual e
propagador do nome da família. Quanto mais eu encenava o “bom primogênito
heterossexual” mais eu me distanciava deles.
“Sair do
armário” me aproximou deles, porque o meu maior segredo já não era mais
segredo, era possível compartilhar a minha vida com eles, era possível viver,
me apaixonar e também quebrar a cara.
Para o meu
pai foi difícil e ainda é, ele muda no tempo dele, antes eu tinha uma pressa
pra que ele me aceitasse, até que me falaram “você levou tanto tempo pra se
aceitar porque ele tem que entender tudo isso tão rápido”, depois dessa acalmei
um pouco meu coração, sei que ele me ama, mas dói um pouco essa dificuldade.
Com a minha irmã foi numa boa, ela ficou brava porque eu não contei antes e eu
até acabei namorando um amigo dela na época.
Minha mãe é
fora do comum em relação ao assunto! Ela vai desde casamenteira à ativista da
causa. Ela muitas vezes comemora as conquistas da causa LGBTTT mais do que eu,
às vezes fico meio frustrado achando que falta tanto. Pude contar com ela em
todos os momentos, nos bons e nos maus, ela sempre foi compreensiva, conversava,
aconselhava do mesmo jeito que fazia antes, não teve frescura e até falou de
sexo.
E o mais
importante foi que ela não quis só ensinar, quis aprender sobre o assunto
também. É preciso estudar sobre tema para falar e para entender o que está
passando dentro da cabeça do seu filho. A única mudança que eu senti da parte
dela foi a preocupação com a violência, porém essa é minha preocupação diária,
não me escondo e sei que isso pode me deixar mais exposto.
Em resumo,
saí do armário, passei alguns apertos, mas que também podemos chamar de ajustes
na minha vida, já que sair do armário não é um conto de fadas. Hoje tenho um
trabalho que me agrada, estou com um namorado-noivo maravilhoso, tenho muitos
amigos e minha relação com a minha família melhorou, mas ainda passa por
ajustes... e qual não passa né?!
A redescoberta do amor e de uma filha
Ângela Moysés
Tenho
2 filhas, uma com 24 anos e outra com 21. Descobri a homossexualidade da mais
velha há 8 anos, quando ela estava com 16 e com um comportamento diferente:
estava triste, nervosa, arredia. Quando eu perguntava o que estava acontecendo,
ela me dizia: “Nada, mãe, estou apenas estressada, muita coisa pra fazer...”.
Ela
realmente estava estudando muito, 1º ano do Ensino Médio de manhã, curso de
Inglês à tarde, cursinho à noite, era compreensível que estivesse cansada e
nervosa. Pedi-lhe que parasse alguma coisa, que não exigisse tanto de si mesma,
mas não adiantou. Ela continuou se “atropelando” (hoje sei o porquê) e ficando
cada vez mais nervosa e depressiva.
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Ângela Moysés e Thaís |
Uma
noite, após pegá-la no cursinho, sentamos para lanchar e eu lhe disse que não
levantaríamos da mesa enquanto ela não me contasse o que realmente estava
acontecendo com ela. Ela começou a chorar e falou que achava que era diferente,
que gostava de meninas e não de meninos. Fiquei muito chocada, não esperava a
“novidade”, nunca me passou pela cabeça que ela pudesse ser lésbica. No momento
da revelação choramos muito, eu a abracei e me coloquei ao lado dela, reafirmei
meu imenso amor por ela, e me senti péssima por não ter desconfiado de nada
antes e ajudado minha filha nesse conflito que ela estava vivendo sozinha desde
os 12 anos.
Sofri
muito pensando na discriminação e no preconceito que ela iria sofrer ao longo
da vida, mas decidi que estaria ao lado dela nessa luta, apoiando-a e lutando
por respeito. Para nossa grata surpresa meu marido recebeu a noticia com muita
naturalidade, e também se colocou ao lado da filha. Lemos muito sobre a
homossexualidade, pesquisamos, aprendemos, pois apesar de nunca termos sido
preconceituosos, pouco sabíamos sobre o assunto.
Ela
optou por viver de maneira aberta, quis que contássemos aos familiares e
amigos, e nós concordamos e contamos para todos. Não gostaríamos que nossa
filha tivesse que viver escondida, viver uma vida de mentiras, não, ela iria
trilhar o seu caminho verdadeiro, sem disfarces. Essa é a opção dela e a nossa também. Não há
vergonha, não há culpa, não há doença. Para nós a homossexualidade é uma condição
natural, uma característica individual dela assim como a cor dos olhos, dos
cabelos, da pele. Assim como a heterossexualidade da nossa outra filha.
Alguns
pais e mães tendem a se esquecer de todas as qualidades de seus filhos/as
quando os descobrem homossexuais, não os reconhecem mais. Para mim foi
exatamente o contrário, eu descobri minha filha por inteiro quando ela me
contou, e passei a admirá-la ainda mais por suas atitudes, sua postura.
Hoje
nossa relação familiar é muito melhor do que antes, é verdadeira, conversamos
abertamente sobre tudo. Passamos por vários problemas relacionados à homofobia,
agressões, ameaças de morte à nossa filha, delegacia, advogados, mas em todos
os momentos estivemos juntos, mostrando a nossa cara e dizendo: “sim, ela é lésbica,
nós a amamos e vamos brigar pelos direitos dela”.
Ainda
não é fácil para a sociedade aceitar um/a homossexual vivendo sua orientação
sexual abertamente. Não, para muitos os homossexuais devem ficar confinados em
guetos, o assunto não pode vir à tona num almoço de família, e eles não podem
dar bandeira. Eu não penso assim.
A conversa da militante
Ana, casada
com Piu, lá no extremo Oeste das
Alagoas
Eu sou Ana Lúcia de Moura Bernardino, há mais de 6 anos trabalhando
com o movimento homossexual em Delmiro Gouveia. Começamos com um grupo pequeno.
Já estamos na sexta parada da diversidade sexual do Alto Sertão. Há um número muito grande de homossexuais em
Delmiro Gouveia e precisam de ajuda. O
grupo existe por isso em Delmiro.
Eu
venho de longe na militância
Venho do PC do B, vem dentro de partidos políticos, e depois
fui para o PSB. Atuei muito tempo no
Movimento Sem Terra. Trabalhei muito dentro de movimentos. Meninos e
meninas de rua em Maceió...
A
vida pessoal
Nunca fui casada mais sou mãe de dois filhos; tenho um
biológico e dois adotivos.
O biológico é André Luís de Moura. Já sou vó. Ele já tem 23
anos. Tenho uma netinha, a Mariana, de 4 aninhos. Tenho Naiara, 18 para 19 anos e Andréa
Eduarda com 9 anos. A Andréa Eduarda eu peguei já tinha 9 meses de vida quando
eu peguei para criar, eu e minha companheira; e a Naiara tinha 9 anos.
O
início de seu relacionamento com Piu
Piu era muito nova. Já era lésbica. Eu também
tinha vivido alguns relacionamentos. O último meu foi com Gilvânia. Foram 7 anos. A gente
terminou e conheci Piu; da era
adolescente. A gente se conheceu por acaso em barzinho e foi se relacionando,
vendo que existiam afinidades até que a gente decidiu morar junta. Já tem 16
anos que a gente está junta, que a gente formou uma família de verdade, porque
a gente estruturou a nossa casa, criamos nossas filhas dando a elas o que melhor a gente pode dar. É
um relacionamento estável, bom, com
acertos e erros, como qualquer relacionamento, mas há uma cumplicidade muito
grande. E a gente pensa e vai conversar e conseguimos construir esse lar e
mostrar que uma família não só se ela for heterossexual, se tiver papai e mamãe.
A
formação de uma família
As pessoas me perguntam muito a
reação de meu filho, de André, em relação a viver com outra mulher porque ele
acompanhou isso de pequeno. As pessoas questionavam muito que ele seria
homossexual. Eu era homossexual, então meu filho também seria. E eu sempre deixei
muito aberto para o André. “Olhe, André, existem 4 coisas que uma mãe não
escolhe para um filho e um filho não escolhe para a mãe: a opção sexual,
futebol, religião, profissão. Isso são
coisas que é você que vai determinar,
como mainha vai determinar para a dela”. E ele encarou numa boa. Até
hoje, meu filho é o maior parceiro. No
meu casamento, foi ele quem entrou comigo. Respeita a minha companheira. A
relação é muito boa. A gente conseguiu formar uma relação boa entre meu filho,
minha neta, minha nora, minhas filhas e construir de fato uma família. 16 anos
que a gente batalha junta, e somos
felizes.
O velho preconceito
Na época que a gente
tornou isso público, foi difícil para muita gente, inclusive para a mãe, para a
família da minha companheira, que não tinha uma preparação, que ainda tinham
muitos preconceitos arraigados e, assim,
ainda não aceitavam com facilidade. Achavam que por mais que a gente tivesse
uma relação, deveria ser fechada, uma relação que a sociedade não soubesse que a gente vivia junta como
marido e mulher.
Até hoje, muita gente às vezes se choca e dizem assim:
“É sua irmã? É sua amiga?” E eu sempre faço questão de dizer: “Não, é minha
companheira!”. E ela também. “Companheira como?” “Minha mulher, minha
companheira”. Eu e Piu, a gente conseguiu assim, durante esses anos, quebrar um
tabu em relação a: “Quem é o homem das duas? Você é o homem? Ela é o homem?”
Inclusive todo mundo esperava no meu casamento, a Piu de terno. Esperava que Piu entrasse de
terno e eu de vestido de noiva.
O sucesso foi justamente quando
todo mundo viu Piu vestida de noiva. Eram duas noivas e não um noivo e uma
noiva. E a gente vê que isso vem de
anos. É uma história, uma concepção de que a mulher lésbica, uma reproduz o
papel de homem e a outra o papel da mulher. E havia cenas muito engraçada, com a minha companheira quando as pessoas iam
chamar Piu diziam: “Ele ou ela?” E eu e Piu sempre fazíamos questão de dizer:
“ela, não é ele, é ela”. Nós somos duas mulheres que se amam, e não um homem e
uma mulher. E isso foi chocante, assim,
o vestido...
As pessoas diziam assim: “Piu
tirou seu brilho, Ana”. Porque realmente chamou atenção. As pessoas não estavam
tão acostumadas a ver Piu tão feminina, mas eu acho que é isso, a gente tem que
quebrar esse tabu e a sociedade, graças a Deus, que Delmiro está um passo a
frente. A sociedade ainda existe muita
máscara. Existe aquela sociedade hipócrita que diz que nos aceita, mas na
verdade não engole, tem medo. Acho que é medo de se misturar, mas a grande
maioria e, por incrível que pareça, eu acho que a sociedade mais pobre
realmente, aquela com menos... Que eu não esperava, com menos cultura, é a
sociedade que realmente nos aceita. É a sociedade que nos dá apoio. É a
sociedade que nos parabeniza pela nossa união, pelo nosso casamento, pela
convivência.
As coisas mudam
Então Delmiro evoluiu muito. Delmiro, quando
nós começamos era muito mais difícil e hoje há uma facilidade em se aceitar. E
eu acredito também que é pela questão do respeito que a gente impõe, porque eu
sempre digo assim: “Se você não se respeita, se você não dá respeito, você não
vai ter esse respeito de torna”. Eu acho que se as pessoas aprenderem a
respeitar, elas também vão ser respeitadas.
Agora, há lugares, como Paulo
Afonso, a gente viu que uma homofobia internalizada muito grande...
Externalizada, nem é internalizada porque eles demonstram mesmo que não
aceitam, mas que eu acho que a luta é isso. É você dizer: “Estouou aqui, vim
para essa relação, tenho meu direito de vivenciar essa relação. Eu não estou
para chocar e sim porque ser feliz com a minha companheira e, então, viver a vida, erguer a cabeça e partir para
frente”. Eu vejo dessa forma. Então são 16 anos de convivência e de luta,
principalmente contra o preconceito.
O
trabalho com homossexuais
O GLAD foi criado em
2004. Partiu de uma conversa minha com uma ex-companheira. Ela tinha saído para
arrumar emprego numa casa de família aqui em Delmiro como babá, e a mulher rejeitou de uma forma humilhante,
dizendo que achava que ela poderia bulir com as filhas dela, aliciar as filhas
dela. Isso me chocou. Eu já trabalhava. Era uma pessoa que tinha meu trabalho
fixo, e me chocou a ideia de que outras mulheres poderiam sofrer e estavam
sofrendo as mesmas conseqüências: não trabalhar, não estudar, não participar de nada pelo fato da
sua orientação sexual. A gente sentou com um grupo de pessoas, também gay e que
também tinham sofrido algum tipo de preconceito, e resolvemos fundar um grupo
em Delmiro Gouveia que fosse para rua falar sobre esse preconceito.
E foi aí que a gente conheceu em Maceió o Marcelo
Nascimento, que nos orientou, de forma que a gente consegui formar esse grupo.
Em 2006, surgiu a ideia de fazer a primeira parada da diversidade em Delmiro
Gouveia. Confesso que a gente tinha medo.... Eu lembro que os meninos diziam:
“Mas Ana atrás do trio não vai uma pessoa, porque quando o pessoal ver que é uma parada de gay, ninguém chega
perto”. E eu dizia: “Mas vai estar eu lá, sozinha, com a bandeira do arco-íris e gritando”. Aí
os meninos diziam: “Não vai não, estou com medo”. E a gente passou uma pressão
de medo, de susto de como é que seria aceito.
A
parada gay do Delmiro
E eu lembro que a primeira parada que eu subi no trio,
chorei, porque quando olhei para baixo que vi tantas pessoas dando apoio,
confesso que foi uma emoção muito grande. E daí, o grupo foi se consolidando,
vendo que o movimento gay não se resumia apenas a fazer uma parada, mas sim
também a realizar seminários, a discutir a questão da prevenção, a discutir a
questão de direitos. Em 2007, a gente fez a segunda parada. Eu acho que o
momento que marca a parada de fato é 2008, porque a gente atingiu um público
inesperado. Caravanas de outros lugares começaram a se dirigir para Delmiro
Gouveia.
E a parada de Delmiro Gouveia começou a ser falada não por
nós, mas pela imprensa de todo o Estado, que era a melhor do Estado de Alagoa.
Até hoje Delmiro continua com o nome de melhor parada e assim não a gente, mas
segundo o próprio movimento de Maceió, a parada de Delmiro supera Maceió em
organização, em preocupação com as questões sociais.
A gente tem tentado, de 2008 para
cá, dar um caráter mais político a parada. A gente, agora em 2010, levou três
artistas caracterizados com pinturas, como que tinham levado porrada, pancada, para mostrar a questão da homofobia,
do preconceito contra os gays. Então a gente tem tentado dar a essa parada um
caráter de manifestação. Esse ano, a
parada de Delmiro pretende usar muito mais palavras de ordem, muito mais grito
de ordem, falar mais sobre esse preconceito. A gente sabe que homossexuais
continuam sendo assassinados.
Recentemente, não tem um mês, não
tem um mês, uma companheira nossa, colega da gente aqui de Delmiro Gouveia foi
assassinada ali na feira de Piranhas com facadas. Faleceu. Era uma lésbica,
inclusive conviveu comigo em minha casa. Passou um tempo com a gente em casa,
mas aí ela foi assassinada na feira de Piranhas. Então a gente vê que esses
crimes, eles continuam acontecendo. O crime contra a lésbica, contra o gay, ele
continua. Contra travesti, essa é muito mais perseguida porque ela dá mesmo a
cara à tapa, é muito mais agredida.
Retornando ao casamento
A parada em Delmiro Gouveia, o GLAD, tem essa
preocupação de manifestação. Um momento
em que a gente está ali dizendo que temos direito e que temos que exercer esse
direito. O meu casamento depois de 16 anos foi uma forma também de dizer que
esse é um direito da gente. O direito de a gente formalizar nossa união. As
pessoas têm que entender que a união
estável entre casais homossexuais não é uma coisa assim tão simples, não é:
“Ah, eu vou viver com você hoje e amanhã vira oba-oba vou me casar”. “Ah fulano
vai se casar”. Há todo um processo jurídico para que você realize uma cerimônia
homossexual.
Você tem que dar entrada na vara
de família; você tem que ir ao fórum; você tem que pedir um parecer jurídico à
juíza para que você consiga esse parecer; você tem que comprovar que você tem
anos de existência, de relação estável, que vocês vivem juntas há um
determinado tempo; vocês têm que ter ou conta conjunta ou contrato de aluguel;
testemunhos de amigos. Quer dizer, há todo um aparato para que essa cerimônia
se realize. E que eu acho que isso é muito importante que haja.
Pensando
no futuro
Hoje o número de sócios do GLAD chega a uns 160, mas
participar das atividades mesmo, eu acho que hoje a gente tem 25 pessoas que
estão na luta, que quando a gente diz assim: “Vai ter uma capacitação, vamos
participar. Vamos fazer hoje uma atividade”. Então a gente tem em torno de 25
pessoas dispostas a darem o sangue na hora que realmente precisa. Quer dizer,
recentemente a gente ganhou aí um terreno. Vamos entrar agora na luta da
construção da nossa associação de sede própria. Já temos a infraestrutura da
sede e vai ser muito melhor com essa sede, porque a gente vai poder começar um
trabalho mesmo como a gente sonha fazer.
Um trabalho onde a gente tenha psicólogos dentro do GLAD,
onde a gente tenha advogados. Porque, veja bem, não adianta você ter um
trabalho e você não ter essa estrutura, esse recurso humano. Eu estou com uma
gama de jovens gays em Delmiro Gouveia; absurdo o número de jovens gays que tem
em Delmiro Gouveia. E estão todos aí, perdidos, desorientados, precisando de um
apoio psicológico para se entenderem. A gente vê enquanto grupo o que é
preciso... Precisamos de um advogado no grupo por quê? Acontecem casos de que?
De homofobia, de discriminação...
As travestis nossas participam de capacitações em Salvador,
Aracaju, em vários outros estados. Eu, enquanto lésbica, tenho me capacitado a
nível nacional e levando os outros. Eles têm que estar capacitados e aptos.
Então é isso. A gente tem essa preocupação em capacitar e formar novas
lideranças. Ana Moura não vai existir para sempre e eu acho que o caminho certo
é esse: é a formação de novas lideranças dentro do GLAD, que continuem esse
trabalho e que esse trabalho se torne cada dia mais respeitado.
O GLAD hoje, graças a Deus, é respeitado a nível nacional. A
gente tem um respeito a nível nacional dentro da ABGLT, dentro da ABL e dentro da
LBL; dentro de todas as associações nacionais, a gente tem se destacado e tem
mostrado que a gente quer realmente fazer um trabalho sério em Delmiro Gouveia.
A surpresa na nacional é que nós somos uma cidadezinha lá no sertão, mas que
tem mostrado trabalho. O pessoal de Maceió, principalmente nos setores
públicos, na área de direitos humanos, na área de prevenção, admira nosso
trabalho, respeitam o nosso trabalho. A gente conseguiu esse patamar, inclusive
causando inveja em outras ONGs, sabe?
E faço questão de quando vou para os eventos... Vou até com
chapeuzinho de couro e dizer: “Sou nordestina sim, sou sertaneja sim”. É muito
importante e eu tenho muito orgulho quando eu vou para um evento fora, em
Curitiba, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e que eu vou para uma tribuna falar
sobre o nosso trabalho e digo: “Sou sertaneja sim, sou do sertão, sou de terra
de cabra macho sim, mas também sou mulher macho, sou mulher de luta, sou mulher
guerreira”. E eu acho que é muito importante. Eu acho que é justamente esse
sangue sertanejo que me dá força para lutar, que me diz: “Sou capaz de vencer”.
A gente sabe que
realmente o sertão predomina o machismo. A gente sabe que não é fácil. Ter um
trabalho desses aqui no sertão não é fácil. E eu diria assim... Eu tenho muito
orgulho de ser sertaneja e muito orgulho de fazer esse trabalho aqui no sertão
de Alagoas. Eu já fui convidada, não só por um movimento, não só por um, eu fui
convidada por movimento em Maceió, fui convidada por movimento fora do estado
de Alagoas, para ir embora, me arrumavam um emprego, para eu ir embora
trabalhar o movimento social em outros estados. E eu disse não, do sertão eu
não saio
.
É lá que eu quero
realmente fazer o meu trabalho. Eu sou do sertão, vou morrer no sertão e quero
continuar o meu trabalho no sertão, porque eu me sinto Ana Moura dentro do
sertão. Eu não quero ser Ana Moura fora do sertão. Eu acho que é muito
importante e realmente dá uma certa ênfase de ser esse trabalho no sertão. A
gente viu na conferência agora em Santana do Ipanema, (onde se falava que o
sertão vem tendo um trabalho de conscientização, de combate a homofobia e o
quanto é importante que esse trabalho esteja vindo do sertão para a capital,
então eu acho que é muito importante isso.