domingo, 15 de janeiro de 2012

[CRONICA] Luiz Sávio de Almeida. Arengas com Gildo Marçal Brandão (I). A memória e o umbigo







Os começos de nossa amizade



Gildo, a minha cabeça ficou devendo à fantástica contadora de causos, que era a minha mãe, Maria José de Almeida. Talvez, o causo  tenha sido a forma encontrada para carregar a família, matar a saudade e, ao mesmo tempo, nos lembrar de nossas origens na beira do Rio Paraíba, nas bandas de Cajueiro, Atalaia e especialmente da Capela estudada pelo primo Wenceslau de Almeida com sua historiografia ligada ao local. 

Então, em minha geografia particular, eu nunca saí da Capela. Você, seu Gildo Marçal Brandão, dizia que eu via o mundo pelo meu umbigo e que ele, o mundo, para mim, começava na Capela. Era a sua forma de me agastar, dizendo  do meu paroquialismo radical, coisa de irmão futucando a cabeça do outro. Além do mais, afirmava que nunca tive coragem de sair do útero materno e, portanto,  jamais  eu deixaria Maceió.   Durma-se com um barulho deste!

Por isso tudo, quando o furor intelectual atingia ao máximo,  você me acusava de fundar a República Popular Livre e Independente das Alagoas. Claro que o pau rolava e uma vez, você espatifou um coco na calçada na praia, devidamente infernizado pelo calor do sol e da discussão. No entanto, terminada a brincadeira,  você  admitia candidamente que tinha uma canela enterrada em Mata Grande, com eira e beira sertaneja e duvido que tudo não passasse pela cabeça de Dona Eva e de Seu Brandão.

Esse negócio do telúrico é fogo.  Eu vivi para cima e para baixo e nunca me desamarrei de Alagoas. Penso que isto se encontra ligado ao fato de Alagoas sempre ter viajado comigo na crônica da tradição familiar. Foi da tradição que derivou a ideia de passar a vida estudando e discutindo isto aqui. Alguma coisa aderiu,  grudou. 

Além de  minha mãe, meu pai gostava de, também, estar com essa conversa. Por ele vinha o Zé de Almeida, meu tio, seu Manezinho e eram histórias que saíam do São Francisco e batiam na mata. Não tive muita conversa agrestina ou sertaneja. Somos gente da mata, anfíbios, misturados com as traíras e jundiás do Paraíba, do Paraibinha com suas ingazeiras e por isso talvez eu dê a vida por um ingá caixão, aquela doçura peculiar que somente é divina na beira de um rio. E você quer que eu saia daqui ou desmonte o mundo dando-lhe outro centro que não seja a Capela? E o ingá?

Hoje, com ou sem razão, seu Gildo, eu acho que a terra da gente é o lugar que a gente inventa, acredita nele e vive. Ele é real, pleno de memória. Para mim, a memória é aquilo que  nos vincula diretamente à história que se evoca, como se pasasse pela consciência de um tempo.   Claro que com ela ajudamos a fundar um local. Vou parar por aqui Gildo, sei que vai complicar e vai dar meia-hora de lenga-lenga.

Claro,  Gildo, que há umbigo!   Tanto é que você no  complicado de metropolitano, no meio dos seus imensos afazeres de Anpocs e USP,  babava quando eu saía daqui e ía  conversar potoca na sua casa em São Paulo.  Você precisava dos amigos daí,  mas me disse que iria construir um edifício e chamar Denis e  a mim para morarmos nele, juntando as Alagoas-mundo e o São Paulo-dos-seus. 
O que é que eu sei fazer, a não ser conversar potoca, miolo de pote? Me deixa na Capela! E você provocava, pois chegava, ao me ver calado, batia no meu ombro e falava: "Vai Luiz Sávio, diz!".  Podíamos brigar à vontade, pois  sabíamos da vida um do outro, amizade de uns 40 anos sem nunca falhar. Nossas mulheres terminaram sendo íntimas, nossos filhos também.  É incrível como nossas famílias se entrelaçaram.  Há uma raíz para isto tudo? O  Bar do Chopp,  o galeto avagabundado da Toca, o Cabeça de Touro. Você fundou raíz em São Paulo, eu não tenho dúvida. A sua amizade pelo pessoal que você sabe,  era imensa, sua admiração, seu carinho, seu reconhecimento. Não tenho dúvida, mas fundar jamais poderia significar que esquecesse os velhos fundamentos.  Viu que os nossos  são de bares? Não se agaste, que tou brincando.
Vamos voltar para o umbigo. Veja seu Gildo Marçal, onde você desejou que ficassem as suas cinzas? Barra de São Miguel. Na verdade, toda vez que eu olho nosso mar, eu vejo um pouco de você. Acredite, o senhor me honra muito ao considerar-me um dos fundadores  da República Popular Livre e Independente das Alagoas, o lugar que você  mesmo decidiu para ficar com suas cinzas. Existe ou não existe umbigo?
Eu tenho uma saudade imensa, seu cara. Vamos tomar sorvete.  Você paga?