sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

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Note-se a Chã de bebedouro ocupada


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Casario de Bebedouro

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Jacarecica


Riacho Doce




[HISTÓRIA E ÍNDIO] Clarice Novaes da Mot, A MEDICINA INDÍGENA NA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA



 
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MOTA, Clarice Novaes da. A MEDICINA INDÍGENA NA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA. O Jornal, Maceió, out. 2008. Espaço.
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Umas poucas palavras!   

Luiz Sávio de Almeida        

                 Este trabalho da Professora  Dra. Clarice Novaes da Mota  lida com um dos temas de sua especialidade e, pela qual, tem reconhecimento nacional. Clarice é professora de Antropologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), sendo brilhante estudiosa dos índios Kariri-Xocó e Xocó, os primeiros de Porto Real do Colégio em Alagoas e os segundos em ilha sanfranciscana pertencente ao território de Sergipe.

                 Recentemente, ela publicou na Coleção Índios do |Nordeste ( EDUFAL) o livro Os Filhos de Jurema na Floresta dos Espíritos: ritual e cura entre dois grupos indígenas do Nordeste brasileiro e que é considerado referência de alto nível sobre o campo de investigação.

                 O exame que realiza da questão, em texto que foi apresentado na última reunião Nordeste da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, traz suas reflexões sobre o tema da medicina em seu viés étnico, a sua construção que ressalta o universo cultural, a qualificação dos significados.

O que Clarice faz!


Clarice Novaes da Mota é doutora em antropologia social pela University of Texas at Austin, 1987,e pós-doutora em Etnobotânica Médica pela University of Califórnia at Berkeley, 1991.  Tem atuado e pesquisado em comunidades indígenas brasileiras desde 1977, quando trabalhou como assistente de pesquisa da Dra. Carmem Junqueira, da PUC de São Paulo, em área indígena no norte do estado de São Paulo.  Trabalhou no Museu do Índio, do Rio de Janeiro, de 1980 a 1981, realizando pesquisa sobre relações inter-étnicas entre índios Akwe-Xavante da Reserva de São Marcos em Mato Grosso.  Foi presidente da ONG "Nação de Jurema", em Sergipe, cujo objetivo era educar a sociedade regional sobre a cultura das nações indígenas de Sergipe e Alagoas.  Tem vários artigos publicados no Brasil e no exterior, tendo publicado "Jurema´s Children in the Forest of Spirits: ritual and healing among two Brazilian indigenous communities", in 1997, em Londres, cuja tradução foi publicada em 2007 pela EDUFAL com o título: "Os filhos de jurema na floresta dos espíritos: ritual e cura entre dois grupos indígenas do Nordeste brasileiro".  O último número da revista Ciência e Cultura da SBPC, traz o tema "Cultura Indígena", numa coletânea de artigos acadêmicos coordenados por ela, que também assina o artigo: "Ser indígena no Brasil contemporâneo: novos rumos para um velho dilema".  Atualmente é professora adjunta de antropologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas.


A MEDICINA INDÍGENA NA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

Profa. Clarice Novaes da Mota, ICS/UFAL

O conceito de “medicina indígena”  é com certeza amplo demais, pois engloba todas as variedades de medicinas praticadas por grupos indígenas pelo mundo.  Embora alguns autores tendam a generalizar esta terminologia, abrindo espaço para conceitos globais e globalizantes, gostaria de colocar que, sendo o planeta terra populado por uma variedade imensa de povos, cada um com suas peculiaridades culturais, quero partir do ponto de vista que há mais diferenças do que semelhanças, muito embora tenhamos que, para falar de um espectro da vida social tão básico como a prática de cura das doenças humanas, devemos partir do ponto de vista das semelhanças.

Há quem diga que “A medicina dos indígenas é um milagre, uma magia”. (Medicina Indígena: da Magia à Cura, 23 de outubro, 2008 (http:/ boasaude.com.br). Com isto adentramos no campo das chamadas “medicinas alternativas” e mais uma vez no dúbio caminho da “cura pela fé”.  Não estamos aqui trabalhando da perspectiva de uma ciência social positivista, modelada pelas ciências físicas, preocupada com fenômenos sociais observáveis e, portanto buscando ordem, previsibilidade e controle. Há que se ter uma perspectiva crítica dos fenômenos sociais, que focalize sobre as relações sociais e a forma de comunicação engendrada pela cultura onde a doença se manifesta e onde se interpreta os sintomas a partir de percepções e representações simbólicas dos mesmos, através dos signos lingüísticos transmitidos pela comunicação social entre os atores sociais que vivem o drama e a trama do binômio saúde-doença. 

                                                                                                       memoriavivakx.blogspot.com
Antigo Toré  Kariri-Xocó

               Além disto, temos que nos perguntar quais são as relações entre saúde e experiência religiosa.  Para tanto, vejamos primeiramente o que queremos dizer com “experiência religiosa”.  Êxtase?  Misticismo?  Fé’? Se usarmos uma abordagem hermenêutica, temos que reconhecer que a habilidade mediada pela linguagem de compartilhar significados uns com os outros é uma característica fundamental do mundo social e, portanto que não pode haver compreensão independente de interpretação.  Desta forma, usando o paradigma hermeneuta, aplicado à compreensão de experiências de doença, teremos que examinar a multiplicidade de significados culturalmente construídos e compreendidos por aqueles que usam termos sobre doença e saúde para comunicar muitos aspectos de suas experiências vividas. Para entender uma “medicina” praticada por indígenas temos que compreender a construção social dos mesmos que envolve os fenômenos relacionados com a cura de doenças que são igualmente socialmente construídas e compreendidas. 
 
               Em termos globais, a medicina indígena é uma prática mágica? A relação entre religião e saúde é antiga, tanto do ponto de vista dos significados antropológicos de compreensão mágico-religiosa do que é saúde e doença como do ponto de vista do entrelaçamento das instituições dedicadas à saúde, por terem sido maciçamente               religiosas na Idade Média e início da Idade Moderna.      No entanto, se olharmos o fenômeno do ponto de vista da cultura ocidental, dominadora e homogeneizante, diremos que a prática médica dos indígenas em geral se baseia não no paradigma positivista da doença como uma coleção de sintomas e nem sua medicina como um grupo de medidas aplicadas para fazer com que tais sintomas desapareçam. Precisamos olhar além da sintomatologia e oferecer uma interpretação cultural sobre doença e cura, para podermos perceber adequadamente, ou seja, criticamente, de que forma se processa o roteiro da cura entre a maioria dos grupos indígenas do mundo.  Então poderemos oferecer alguma perspectiva esclarecedora sobre os elementos de “magia” nesses processos. O que emerge terá que dar conta do que é a natureza da realidade em outras culturas, qual é o entendimento sobre o corpo físico e sua relação com outros elementos da natureza e o que o corpo doente oferece como compreensão sobre as noções de equilíbrio, normalidade e harmonia dentro de um determinado contexto social.                                                                
                                                              memoriavivakx.blogspot.com

Pajé Francisquinho

               
               A maioria dos estudos sobre medicina indígena aponta para a presença de um xamã, ou especialista de cura que também é um líder religioso.  Geralmente, o Xamã é o líder espiritual, o intermediário entre os homens e os espíritos, que empreende uma viagem ao chamado mundo sobrenatural para assegurar a cura de seus pacientes.  Em extraordinário trabalho, o antropólogo Lévi-Strauss compara o trabalho do xamã indígena com o de um psicanalista ocidental.  Tanto um quanto outro manipula uma mitologia socialmente compreendida e cujo significado não necessariamente corresponde a uma realidade objetiva, pois isto não tem importância.  O que importa é que existe uma comunicação entre paciente e curador já que a pessoa doente, assim como o xamã, acredita na mitologia sendo utilizada no processo da cura, pois ambos são membros de uma sociedade que acredita.  Explica o autor que:
 
               ... a relação entre micróbio e doença é exterior ao espírito do paciente, é uma relação de causa e efeito: ao passo que a relação entre monstro e doença é interior a esse mesmo espírito, consciente ou inconsciente: é uma relação de símbolo à coisa simbolizada, ou para empregar o vocabulário dos lingüistas, de significante a significado.  (Lévi-Strauss, 2003:228)
 
                               É o significado que é mutuamente compreensível e que está sendo habilmente manipulado pelo xamã para produzir um efeito impactante sobre o espírito do paciente.  Explicando mais cabalmente a comparação entre um curador ocidental (o psicanalista) e um indígena, Lévi-Strauss coloca que:
 
                Neste sentido, a cura xamanística se situa a meio-caminho entre nossa medicina orgânica e terapêuticas psicológicas como a psicanálise.  Sua originalidade provém de que ela aplica a uma perturbação orgânica um método bem próximo dessas últimas.  Como é isto possível?  Uma comparação mais particularizada entre xamanismo e psicanálise permitirá precisar este ponto.
(...)          Em ambos os casos, propõe-se conduzir à consciência conflitos e resistências até então conservados inconscientes... Em ambos os casos também, os conflitos e as resistências se dissolvem, não por causa do conhecimento,...mas porque este conhecimento torna possível uma experiência específica, no curso da qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem ao seu desenlace.  Esta experiência vivida recebe na psicanálise o nome de abreação.” (idem, 2229)
 
O xamã, portanto, é visto como um predecessor do psicanalista, sendo que este último poderá entender melhor o mecanismo de sua eficácia  se confrontar o seu método com o do xamã

OUTROS ELEMENTOS DE CURA: A FARMÁCIA INDGENA

Já é lugar comum imputarem o uso de plantas medicinais aos indígenas e demais moradores da região rural do nosso país.  A idéia em geral é de que também este uso de espécies botânicas se daria devido a uma crença em magia, como se os produtos da natureza não tivessem em si a capacidade de efetivar mudanças no corpo físico dos humanos e outros animais.  Esta premissa não é verdadeira. Nos últimos anos tem havido uma evolução da produção de conhecimento científico relevante sobre plantas medicinais, em especial da flora sul-americana. Está comprovado cientificamente que várias espécies botânicas têm princípios químicos ativos com poder de aliviar sintomas e curar estados mórbidos e que, portanto, não é preciso existir uma crença especial no poder das plantas para que se dê a cura.  São na verdade os princípios ativos existentes na natureza que formam a base para os princípios farmacêuticos encontrados nos remédios industrializados, por um processo de transformação das substancias ativas em fármacos e medicamentos da farmácia “oficial’. O conhecimento das matérias-primas vegetais de importância terapêutica é o objetivo central da Farmacognosia, uma disciplina que integra conhecimentos das mais diversas áreas. É sabido, portanto, que “As plantas são uma fonte importante de produtos naturais biologicamente ativos, muitos do quais se constituem em modelos para a síntese de um grande número de fármacos.” (Simões et all. 1999:12)

O Brasil é o país com a maior diversidade genética vegetal do mundo, contando com mais de 55.00 espécies catalogadas (Dias, 1996) de um total estimado entre 350 e 550.000. (Simões, 1999).  Mas, “apesar do aumento de estudos nessa área, os dados disponíveis revelam que apenas 15 a 17% das plantas foram estudadas quanto ao seu potencial medicinal (Soejarto, 1996).  No Brasil, o uso de plantas medicinais pela indústria farmacêutica nacional e portanto pela população em geral não é novidade, pois se estima que 25% dos US8 bilhões de faturamento em 1996, da nossa indústria farmacêutica tenham sido originados de medicamentos derivados de plantas.  No entanto, apenas 8% das espécies vegetais da flora brasileira foram estudadas em busca de compostos bioativos. Desses poucos, 1.100 espécies vegetais foram avaliadas em suas propriedades medicinais e destas 590 foram registradas no Ministério da Saúde para comercialização.(Simões, 2000)

O uso de plantas medicinais pelos indígenas é, portanto um fator de estabilidade para suas práticas de saúde, não podendo ser pensado apenas como parte de um “ritual litúrgico”, ou como aspecto puramente religioso, mas sim como prática terapêutica baseada em conhecimento científico acumulado pelas populações indígenas a partir de sua experiência ao longo de gerações.  

A autora de um livro sobre plantas medicinais introduz a questão do uso das mesmas com a seguinte afirmação: “durante muito tempo, a medicina foi uma prática religiosa exercida pelos sacerdotes, que receberam dos deuses saber e poder para cumprir a função divina de curar” (Duniau, 2003: XIV).  Precisamos rever precisamente este tipo de pré-conceito sobre a medicina indígena e seus remédios.  É certo que o pajé, ou líder religioso de grupos indígenas brasileiros, tem uma atividade bastante relacionada com a cura de males físicos e de que há um amplo repertório de “plantas mágicas” ou “plantas de poder” sendo utilizadas no contexto da prática médica nativa. Por outro lado, os grupos em contato permanente com a sociedade nacional já aceitam a “medicina oficial” ou “científica” como parte de seu repertório, assim como as plantas por eles usadas já são conhecidas e aceitas pela comunidade científica como tendo propriedades terapêuticas. Ou seja, entre estas sociedades já inseridas no contexto da sociedade nacional estão sendo introduzidos novos modelos de atendimento à saúde.  Com a introdução dessas práticas médicas ocidentais, a relação entre provedores de saúde e clientes mudou substancialmente, assim como o uso de produtos farmacêuticos sintéticos.

  Claro está, no entanto, que as mudanças impostas pela modernização não eliminaram o uso de recursos terapêuticos tradicionais.  O entendimento sobre a experiência da doença e os conceitos de saúde e bem-estar foi modificado, mas as práticas médicas herdadas pela história oral e a práxis desses povos não desapareceram, assim como não desapareceu a experiência eu o doente tem do processo, enquanto “corpo de dor”.  O que vemos na atualidade são contextos médicos plurais dentro das aldeias, onde saberes e práticas se entrelaçam e se suportam mutuamente, geralmente sem maiores contradições.  Zonas de imprecisão são criadas por tal situação e através delas as várias contradições provenientes das maneiras diversas de conhecer e entender o mundo permeiam a práxis terapêutica de forma sucessiva.  Não sempre existe uma forma conciliadora entre estas diferentes experiências culturais, mas ainda assim elas co-existem “apesar dos pesares” e sempre que as práticas tradicionais continuam sendo afirmadas e respeitadas. 

 É certo que uma das características encontradas na maioria das práticas médicas tradicionais indígenas encontra-se nos chamados rituais de cura, momentos em que os provedores tradicionais de saúde – pajés, rezadeiras, curandeiros – utilizam conhecimento anterior, manipulando plantas, animais e instrumentos que os ajudam no processo de restabelecimento do bem-estar do paciente e que transforma a experiência traumatizante da doença em algo compreensível e, portanto manipulável pelo doente.  Ao compreender o “espírito da doença” segundo postulados antigos, a pessoa percebe a cura também da mesma forma, sem, necessariamente deixar de optar pela chamada cura moderna.

Em pesquisa recente, entre os Kariri-Xocó de Alagoas e os Xocó de Sergipe, levantei dados sobre 152 espécies de plantas consideradas terapêuticas usadas por estes dois grupos. Várias destas espécies são de amplo conhecimento pela sociedade nacional e largamente usadas pelas comunidades sertanejas dos dois estados.  Destas, pelo menos 12 foram estudadas cientificamente e consideradas como tendo propriedades terapêuticas.  Portanto, saem da categoria de plantas mágicas para a de medicamentos. Há algumas plantas chamadas de “poder” por caírem na categoria de plantas cujo preparo e uso, além de ser tradicional e secreto, induz estados alterados de consciência.  A principal beberagem é conhecida como “jurema”, é preparada das cascas e raízes do arbusto também conhecido como jurema preta (Mimosa hostilis ou tenuiflora), assim como da jurema branca (Mimosa verrucosa).
 
 Vários trabalhos acadêmicos foram  publicados sobre a discussão que os usos da jurema, ou das juremas, fomenta/m (Grünewald, da Mota, Reesink, etc.). Mas esta é uma discussão que não cabe abarcar aqui, devido à extensão da mesma.  È importante destacá-la, pois se trata de um uso que envolve várias outras sociedades, além da indígena, dentro e fora das fronteiras nacionais, apontando a importância que o saber indígena tem em geral para o mundo.  Há outras plantas que não são consideradas “mágicas” e que foram amplamente apropriadas pelo mundo ocidental, principalmente os “curares (bloqueadores neuromusculares, causando, inicialmente, debilidade muscular e, em seguida, flacidez dos músculos)”, anestésico poderoso que saiu das lanças dos indígenas amazônicos para as seringas de anestesia dos principais hospitais do mundo.  

A medicina indígena, portanto, não pode ser descartada como mera superstição, ou “crendices populares”, sem nenhum valor.  Pelo contrário, há muito que se aprender nas comunidades tradicionais, aquelas que não estão restritas a uma visão utilitarista e mercantilista do tempo, mas que se abriram, há séculos, para uma compreensão mais profunda e humanizante do que é capaz a mente humana e o valor da natureza, em toda sua riqueza, para a vida e sobrevivência dos seres humanos.
 
 
 
 
BIBLIOGRAFIA
 

da Mota, C.N. e de Albuquerque, U.P. As muitas faces da jurema: de espécie botânica à divindade afro-indígena. Recife: Bagaço, 2002.

Dias, B.F.S. A implementação da convenção sobre diversidade biológica no Brasil: desafios e oportunidades. Campinas: André Tosello, 1996
 
Duniau, M-C M., Plantas medicinais, da Magia à Ciência. Rio de Janeiro: Brasport, 2003: XIV
 
Grünewald, R.A. ‘Sujeitos da jurema e o resgate da ciência do índio`” IN Labate, B.C. e Goulart, S.L. (orgs.) O uso ritual das plantas de poder, Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.
 
Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”, IN Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003:228)
 
 
Reesink, E. “Raízes históricas: a Jurema, enteógeno e ritual na história dos povos indígenas no Nordeste” IN da Mota, C.N. e de Albuquerque, U.P. As muitas faces da jurema: de espécie botânica à divindade afro-indígena. Recife: Bagaço, 2002.
 
Simões, C.M. O. et alli, Farmacognosia: da planta ao medicamento, 2ª edição. Porto Alegre/Florianópolis: Ed. Universidade/UFRGS/ Ed. Da UFSC, 2000.
 
Página da internet: Medicina Indígena: da Magia à Cura, 23 de outubro, 2008 (http:/ boasaude.com.br)
 
 
 

[HISTÓRIA E RELIGIÃO] Janecléia Pereira Rogério.Maceió: religião afro e a festa de Iemanjá





Umas poucas palavras

Luiz Sávio de Almeida

            A temática do negro em Alagoas tem um recente perfil de estudos  e ele  começou a ser  esboçado, efetivamente, na medida em que surgiu o movimento negro. Inclusive deve ser considerado que  o  NEAB da UFAL jogou papel importante, sobretetudo depois que deixou sua fase intelectualizada do tempo do João Azevedo, fascinado pela documentação sobre os Palmares, indo encontrar-se mais diretamente com o movimento negro.
Não é possível falar que exista uma historiografia em Alagoas ou  uma ciência social sobre o negro  e que chegue perto do razoável em termos de volume, embora se tenha diversos textos de categoria; no entanto, eles são dispersos, sem produzirem a possibilidade de uma visão abrangente sobre a condição negra alagoana, tanto em termos de passado quanto em termos de presente.   Pouco foi produzido quando se olha para o passado e pouco se tem quando se olha para o presente. É preciso que novos valores surjam, que a temática negra seja vista como central para o entendimento desta coisa chamada Alagoas, não importando a base teórica e ideológica que informe os trabalhos.  Talvez seja possível pensar numa renovação semelhante à que aconteceu com os estudos sobre índios em Alagoas. Quando penso em negro em Alagoas e olho para o passado, o marco que se apresenta é o nome de Abelardo Duarte com sua chamada sobre a religião e aquilo que considerava como  folclore negro.
            É dentro do espírito de renovação de temática e de ampliação de produção, que aparecem os nomes, por exemplo, de Ulisses Rafael, Bruno César Cavalcanti e Rachel Rocha. É excelente somar Jane e seu mestrado em Antropologia - começou sua vida no  Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas  -  em face de  sua vontade,  capacidade de trabalho e busca de formação teórica.  Jane demonstra-se uma jovem e dedicada pesquisadora em busca de consolidação de um rumo de pesquisa e tomara que sempre prevaleça a condição da vida negra em suas preocupações.
            Nesta oportunidade, Espaço entra na Festa de Iemanjá e eu mesmo entro com meu orixá de frente que é Xangô (Cabecinha!). Estamos lá. Jane coloca um painel interessante, que passa pelas vissicitudes do quebra de 1912, demonstra a distribuição espacial densa dos cultos e trata especificamente sobre Iemanjá e sua festa, que na verdade, acompanho desde priscas eras, desde os tempos em que se procurou dar ênfase às comemorações na chamada orla, esvaziando, quem sabe,  o distante que era a sereia do Major.
            Vale a pena ler seu material criterioso e despreconceituoso, discutindo autores, demonstrando o tamanho dos cultos, dando elementos da história para entrar nas suas anotações inteligentes sobre a Festa, uma espécie de demonstração da amplitude territorial dos terreiros, demonstrando-os capazes de refazerem o espaço religioso tanto para fora (a festa) como para dentro (o baixo).  Aliás os terreiros podem ter uma amplitude incalculável. Por exemplo, agora, eles tomaram as páginas desta edição e  fez de uma forma a deixar-lhe   a dimensão religiosa que os orixás requerem. É assim que os terreiros  estão em Espaço e é assim que estão no próprio texto da Jane.

            Saravá! Que eu vou de banda!


 
Janecléia Pereira Rogério é bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas. É mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco e professora de ensino religioso da rede estadual de Educação, onde leciona a disciplina na Escola Estadual Dr. Miguel Guedes Nogueira. É também pesquisadora/colaboradora do Laboratório da Cidade e do Contemporâneo (LACC) do Instituto de Ciências Sociais da UFAL.


Maceió: religião afro e a festa de Iemanjá

Janecléia Pereira Rogério


A religião afro-brasileira em Alagoas: O quebra em 1912
             
Há quase cinco anos, o Laboratório da Cidade e do Contemporâneo – LAAC/UFAL vem produzindo pesquisas que buscam compreender como as manifestações culturais e religiosas negras representam seus símbolos no espaço alagoano. Dois artigos foram publicados sobre o tema: Maceió, cidade negra – diversidade e distribuição espacial de manifestações, bens e serviços afro-brasileiros (2007) e Mapeando o Xangô – notas sobre mobilidade espacial e dinâmica simbólica nos terreiros afro-brasileiros em Maceió (no prelo), cujo objetivo é o de tentar descrever os lugares onde são realizadas essas manifestações e como seus espaços vêm se modificando ao longo do tempo. O Laboratório  conta com a orientação dos professores Bruno César Cavalcanti e Rachel Rocha de Almeida Barros.
            Datam pelo menos de 1905, em Maceió, algumas matérias jornalísticas sobre as religiões afro-brasileiras, então denominadas de “Xangô”, que podem ser lidas como verdadeiras campanhas contra toda uma história religiosa negra que se desenvolveu no Brasil.  Os termos mais usados pelos jornais da época para se referirem aos cultos eram “feitiçaria” ou “bruxaria”,  que são, ainda,  usados pela população (e alguns grupos religiosos evangélicos) com sentido preconceituoso e  pejorativo.
            A partir daqueles jornais é possível perceber, também,  que os cultos afro-brasileiros no início do século XX eram postos em relação com a política local. È possível verificar que se dava o crescimento de uma camada média, e  de grupos sociais mais populares, reforçando o esboço de facções políticas na cidade, quando se formará a Liga dos Republicanos Combatentes em Homenagem a Miguel Omena que se aliará, em 1912, a grupo político oposicionista com a intenção de derrubar Euclides Malta, acarretando perseguições às casas de cultos na cidade de Maceió, e chegando a várias cidades do estado.
            A história da repressão aos cultos afro-brasileiros mostra que intervenções intimidatórias foram comuns em várias partes do território nacional, como fechamento de terreiros, espancamentos e prisões de líderes religiosos, que compõem um capítulo da história dessas práticas religiosas no Brasil. Em Maceió -  quando cotejamos  a nossa história com a de outros estados a partir da  bibliografia que consultamos -, essas ações repressivas parecem ter tido um caráter especial, mais violento e exterminatório, naquele ano de 1912.
            É  desta forma que pode ser lido o episódio conhecido, ainda, como o “quebra-quebra” dos terreiros de Maceió, ou, simplesmente, “operação Xangô”, que ocorreu em 1912. Neste caso, não se tratou apenas de algumas casas de culto que foram fechadas, ou de alguns pais e mães-de-santo que foram perseguidos, mas de uma intervenção que nos parece ter sido contra todos os templos religiosos afro-brasileiros da cidade, na medida em que relacionamos número de terreiros e população, apesar de não se poder ter  um critério de resultados precisos. Trata-se de um  quebra realizado por uma parcela da população que  investiu contra os terreiros, arrancando dos pejis as imagens das divindades, os paramentos sagrados e jogando os objetos em praça pública, onde parte foi queimada.
            Nos dias que sucederam a esse episódio, foram presenciadas cenas de perseguições, de humilhações públicas e de espancamentos. Depois, parece que ocorreu uma dispersão de líderes religiosos para outros estados com o objetivo de escaparem dessa fúria de repressão. Uma das conseqüências desse episódio foi o afloramento do que foi chamado de “xangô rezado baixo”, modalidade de resistência política de uma prática religiosa que se desejava silenciar, sendo  parte, portanto, do complexo de formulação estratégica de um grupo sob forte impacto de dominação, segundo observa o professor Sávio. Este sentido foi por ele registrado em Maceió, depoimento de um babalorixá nagô, ainda na década de sessenta do século XX, portanto vários anos após o registro do Gonçalves Fernandes, segundo consta de anotações de pesquisa do professor que, inclusive, chama a atenção para   ter-se o cuidado de não se transformar o episódio em mera situação da política branca, onde as Salvações de Hermes da Fonseca, transformadas no ritmo da Soberania alagoana,  assumam o contexto do processo político minimizando-se o negro pelo privilegiamento da política branca.
Antes do quebra, e segundo os relatos do historiador Félix Lima Jr., os batuques em Maceió eram ouvidos em vários bairros na primeira década do século XX. Batuque, ainda segundo o professor Sávio em entrevista que realizamos, poderia estar equivalendo  à fala pública negra, e tinha no texto do Félix Lima Júnior  sabor político semelhante ao que estava nas diversas posturas municipais do século XIX. Batucou: cadeia! Diz ainda, que variou a forma de expressão pública do culto aos orixás, haja vista, inclusive, o que ocorria no complexo escravocrata da senzala que jámais permitiria uma organização religiosa em evidência de batuque.  Diz Sávio, que o rezado baixo ou forçar á reserva pública era a tradição frente ao incisivo domínio católico, por exemplo, nos engenhos onde estava concentrada a massa escrava. Neste caso, rezado baixo passaria por  não deixar evidente uma forma pública religiosa.
Abelardo Duarte que reuniu peças sobreviventes da destruição - e que foram expostas como documentação da barbárie e depois lançadas num depósito da Perseverança e Auxílio dos Empregados do Comércio, onde durante décadas permaneceram esquecidas - observou que boa parte delas não foi feita em Maceió, afirmando a existência de contatos das casas de culto da cidade com candomblés da Bahia e com centros da África – intercâmbios de peças e de informações que transitavam de um lado a outro dos dois continentes. Era o negro em evidência: religião, no caso, encontrava as Salvações e chegar ao negro equivale a ver o quebra -  como Sávio comenta -  por baixo.
Gonçalves Fernandes (1941), no seu livro O Sincretismo Religioso no Brasil, menciona, em Alagoas, o “xangô rezado baixo”. Diz o autor que após a perseguição e destruição de terreiros em Maceió,as cerimônias se passam num tom de reza ciciada”, acabando-se os terreiros, os toques, as danças. Comenta o professor Sávio na entrevista mencionada, que foi uma má leitura realizada pelo autor. A ação em jogo não era  ciciar, mas operacionalizar uma forma política e que terreiros, toques, danças não se acabaram: recolheram-se entrando em trânsito, para irem se recompondo.   
É importante deixar claro que não há evidências de pesquisas empíricas nos terreiros da cidade de Maceió, mas uma simples visita do autor, em 1939, a um terreiro da cidade. Foi com base nessa experiência que ele  ajudou a divulgar a expressão “xangô rezado baixo”, e que é reforçada por Luiz Sávio de Almeida, Douglas Apprato e Ulisses Rafael, apesar do professor Sávio considerar que Fernandes realizou uma leitura insuficiente e sem discutirr o fundamento estratégico da questão. É um termo não muito conhecido atualmente entre os adeptos do culto no estado.
            Hoje observamos que mesmo com toda repressão vivenciada, essas referências não desapareceram da memória e da vida da população. É importante lembrar que, em face do quebra, o problema da história da religiosidade afro-brasileira em Alagoas, especialmente em Maceió, adquiriu caráter particular. De modo geral, Maceió reconstruiu seus terreiros a partir de circunstâncias específicas, vendo-se como uma cultura perseguida e “controlada”, mas afirmando-se como expressão religiosa. Neste contexto, as expressões religiosas afro-brasileiras mudaram suas práticas e seus fundamentos para adaptarem-se às novas condições sociais. A expressão do culto cresceu, o que se pode comparar cotejando o sentido do batuque que comentamos e o extraordinário titulo de um livro: Os Tambores Ponta Grossa, de ... Os antropólogos Bruno César e Rachel Rocha sempre têm dado destaque ao episódio ocorrido em Maceió e à associação de suas conseqüências com outros aspectos culturais das populações negras.

 Distribuição espacial

Tentar classificar, quantificar e localizar as casas de Xangô em Maceió foi/é um trabalho difícil e escorregadio. Cada dado colhido está passível de mudanças futuras. A cada dia, semana, mês uma nova casa  é aberta, fechada, ou tem seu endereço modificado.
            O mapeamento por nós realizado em 2007 (LACC) demonstra que o Xangô em Alagoas, especialmente em Maceió, é religião demograficamente expressiva (ver mapa). Com base nos dados cadastrais colhidos nas três federações pesquisadas na cidade Maceió, e através de idas sistemáticas à orla marítima da cidade no dia de homenagem a Iemanjá, localizamos 2.125 (dois mil cento e vinte e cinco) terreiros no Estado, dos quais existiriam 466 (quatrocentos e sessenta e seis), em Maceió podendo esse número ser bem maior. Segundo os próprios diretores das federações existem mais terreiros não cadastrados do que cadastrados.



    O Xangô reflete em seu culto grande parte dos anseios, perspectivas,  contradições e conflitos da sociedade. E as ritualidades dos festejos do dia 8 de dezembro -, quando se comemora, em Maceió, o dia de Iemanjá -, reflete esse cenário pois  as “obrigações” realizadas nesse dia têm caráter tão religioso quanto o realizado dentro de um terreiro. O mundo vivido pelos adeptos do Xangô está envolto no sagrado e no profano. Suas experiências cotidianas são como experiências religiosas. Eliade (1995) já dizia que o homem se divide em dois modos de ser no mundo: o sagrado e o profano. E a praia, no dia de homenagem a Iemanjá se configura nesses dois mundos.

A mãe de todos os Orixás
É para dentro dessa experiência religiosa na vida dos adeptos que direcionamos  a imagem de Iemanjá, orixá que nos cultos afro-brasileiros tornou-se modelo feminino por excelência no panteão. Iemanjá associa vários atributos diferenciados que geram uma imagem complexa de mãe, virgem, sereia, santa, mulher, guia e senhora da cabeça e vida de seus filhos, transformando-a numa entidade essencialmente maternal, feminina e quase assexuada.

A saída das oferendas

            Para Ramos (s/d:246) a “mãe inacessível, porém, transmuda-se na protetora, que acode aos aflitos, resolve dúvidas e problemas de vida, consola os desgraçados, como está no culto materno de todas as religiões”. Segundo o autor, o “primeiro elemento insciente da atração materna está nos seus atributos de beleza, a exigir do apaixonado todo um adereço de bourdoir: sabonetes, frascos de perfumes, fitas, pentes, etc. E os cânticos são lânguidos e doces, evocando-lhe a beleza interdita e fatal, a beleza inacessível aos seus filhos”.
            Segundo Segato (2000:51 e 55), em alguns terreiros de Recife, “Iemanjá é vista como um pouco menos feminina porque é a mãe dos orixás e é, por isso mesmo, mais velha e mais inibida. Apesar de seus gestos meigos, ela mostra menos interesse em dar-se ou prestar atenção nos outros. Ela é, em geral, mais distante, e sua meiguice é interpretada, simplesmente, como ‘boas maneiras’ ou ‘polidez’ no trato”, e que, “nada senão obediência e respeito” lhe são oferecidos. Mas, como boa parte do país, em Maceió, pode falar que a imagem de Iemanjá segue o padrão de mãe, protetora, bondosa, e detentora de um grande poder e respeito.

A montagem do espaço do sagrado

           Iemanjá é a mais popular das divindades afro-brasileiras do país hoje. Seu culto expandiu-se enormemente no Brasil, não só nos terreiros ditos tradicionais, mas também nos grupos mais aculturados, como a Umbanda. Associada às águas. é cultuada pelos pescadores e pela população em geral. Talvez o mito de origem de Iemanjá explique um pouco a importância dessa divindade para a religião afro-brasileira. Segundo Pierre Verger, na África, Iemanjá era associada ao mar, sendo ela filha de Olokum, deus (Benin) ou deusas (Ifé) do mar.
            Conta um dos mitos que Iemanjá era filha de Olokum, deus (Benin) ou deusa (Ifé) do mar. Em Ifé casou-se com Olofin, tendo com ele dez filhos, todos orixás. Cansada de viver em Ifé fugiu em direção do “entardecer-da-terra”; chegando lá, casa-se com Okerê. Como ele a maltratava, ela resolve fugir. Enfurecido, Okerê manda um exército atrás dela. Como estava sendo alcançada, Iemanjá transforma-se num rio para correr mais depressa. Tentando impedir sua fuga, Okerê transformou-se numa montanha, barrando sua passagem. Vendo bloqueado seu caminho, ela pede ajuda a Xangô, o mais poderosos de seus filhos. O orixá do fogo junta várias nuvens e, com um raio, provoca uma grande chuva, que enche o rio, e com outro raio parte a montanha em duas e Iemanjá foge para o mar. E segundo as lendas, é por isso que seus filhos lhe fazem oferenda para lhe acalmar e agradar.
            Considerada a mãe de todos os orixás e a deusa dos mares e oceanos, Iemanjá rege a maternidade e a fecundidade. Gosta muito de flores, sendo costume oferecer-lhe rosas brancas abertas, que são jogadas ao mar como forma de agradecimento. Usa um adé com franjas de miçangas que lhe cobre o rosto. É o orixá que preside a formação da individualidade.

O momento sagrado

            Nossa pesquisa empírica e relatos sobre a homenagem à Iemanjá pelos adeptos da religião demonstram que os horários e locais onde são realizadas as entregas das oferendas vêm se modificando a cada ano. Segundo alguns filhos-de-santo de Maceió era “comum” os terreiros da capital irem à orla marítima realizar suas oferendas, mas o desrespeito da população às tradições religiosas afro-brasileiras, a sujeira da praia e os furtos aos objetos sagrados (flores, dinheiro, perfume, sabonete...) fizeram com que os terreiros da capital realizem suas oferendas durante a madrugada do dia 8 de dezembro, ou em praias distantes. Por ser mais tranqüilo.
            Mas ainda observamos um grande número de pessoas vestidas com roupas-de-santo e formando seu “terreiro” para reverenciar Iemanjá e os outros orixás, pois mesmo sendo um dia para Iemanjá todas as outras divindades são prestigiadas na gira. Percebe-se também, durante todo o dia 8, atitude de devoção de não adeptos, com entrega de rosas ao mar, em troca de proteção. Para quem oferta o momento da entrega da oferenda é sagrado, da mesma forma que é sagrado o espaço.
            Não existe uma data precisa de quando se deu início às festividades em homenagem à Iemanjá nas praias de Maceió. Mas é em busca de seus devotos que há cinco anos consecutivos e sempre no dia 8 de dezembro vamos às praias da orla marítima da cidade, especialmente à praia de Pajuçara, local de maior concentração das homenagens a essa divindade, para realizarmos registros fotográficos, filmagens, pequenas entrevistas e observações sobre o ritual, e assim, compreender um pouco esse universo religioso no estado.
            Os ônibus chegam cheios de adeptos que vêm do interior do Estado. Na maioria das vezes, as mulheres já vêm com seus vestidos cheios de anáguas, calças compridas, colares, lenços ou coroas em suas cabeças, etc. E os homens com calças compridas, blusas com mangas compridas, gorro e colares. Tudo nas cores de Iemanjá, podendo ser também na cor do seu orixá de cabeça, ou branco, no caso da Umbanda. Chegam prontos para começar o toque (ritual religioso com os cânticos e atabaques), que é realizado ali mesmo, antes da oferta no mar.
            Como se estivessem no terreiro forma-se, no caso da Umbanda a gira, que é aberta com os toques dos atabaques e os cânticos em homenagem não só a Iemanjá, mas a outras divindades. O calor denso aumenta gradativamente com o surgir da tarde, cresce a movimentação intensa da multidão aglutinada em toda extensão da praia e se misturam ao ritmo dos atabaques parecendo contribuir para as incorporações. Dentro de algumas barcas, além dos presentes, como perfumes, sabonetes, arranjos de flores, frutas, etc, é possível observar pequenas imagens de Nossa Senhora.
            As obrigações para Iemanjá têm início dias antes da festa. O primeiro momento é a escolha dos produtos ofertados, como velas, perfumes, sabonetes, pentes, bonecas, frutas, flores, bebidas, fogos, etc., seguido pela montagem da barca, que em alguns casos vai para o mar com os presentes, e em outros voltam junto com as imagens. Tudo e todos os envolvidos devem estar purificados. Cada filho de santo oferece o que pode, como alguns adeptos mesmo relatam, é ela uma divindade que pouco cobra de seus filhos, mas é muito exigente em suas obrigações, e com, o que lhe é prometido.
            É um dia onde todos se dedicam exclusivamente à sua homenagem. Nada pode sair errado, pois não é uma simples homenagem a uma divindade, mas um ato de respeito e honra à mãe de todos. Enquanto não se aproxima o momento de levar as oferendas ao mar, as incorporações acontecem ao som dos atabaques, das palmas, dos cânticos; e do girar sincronizado e insistente, que faz com que o rodopiar fique cada vez mais rápido.
            Próximo da hora de levar as oferendas ao mar, várias filhas de santo continuam dominadas pelo orixá das águas salgadas. Muitas vezes essa incorporação dura até a divindade ver as jangadas voltarem do mar com seus filhos. Muitas filhas ainda incorporadas cantam, realizam curas, muitas delas rolam na areia da praia, próximo ao mar. É o momento onde todos, adeptos ou não, trazem oferendas, escrevem seus pedidos, ou silenciosamente os anunciam para Iemanjá.
            Geralmente, o ritual, na praia segue um mesmo padrão: um jangadeiro é contratado para levar a oferenda até longe da margem. Quem leva as oferendas são os filhos de Iemanjá. Ainda em transe, algumas filhas cantam para a Rainha do Mar. As oferendas vão sendo levadas até o mar, até os jangadeiros voltarem. Para muitos é a festa mais bonita. É o momento onde são reveladas crenças, visões de mundo e de sociedade, estando as relações sociais inseridas no sobrenatural. Durante todo o dia, os olhares voltam-se completamente para o mar, contemplando sua “força”. A mesma força necessária para se enfrentar os desafios da vida cotidiana.
            O valor simbólico religioso da praia, nas oferendas para Iemanjá, se faz presente na liturgia da oferenda e no ato da entrega; em seguida, esta passa a ser um espaço não sagrado. Para o religioso, a praia tem duplo simbolismo, o de pertencimento religioso e o da presença da divindade no lugar. Antes da entrega da oferenda temos um espaço que não é religioso, mas espaço de lazer. No momento da entrega da oferenda, o espaço deixa de ser profano, isto é, perde seu caráter de uso cotidiano e adquire qualidades de lugar religioso. Findando o ato da oferenda, o lugar religioso volta a ser um espaço profano.


REFERÊNCIAS


CAVALCANTI, Bruno César & BARROS, Rachel Rocha de Almeida Maceió, cidade negra – diversidade e distribuição espacial de manifestações, bens e serviços afro-brasileiros. In Bruno C. Cavalcanti, Rachel Rocha de A. Barros e Clara Suassuna Fernandes (orgs.) Afroatitudes. Maceió: NEAB/Edufal, 2007, pp. 63-74.
______________ & ROGÉRIO, Janecléia Pereira. Mapeando o Xangô – notas sobre mobilidade espacial e dinâmica simbólica nos terreiros afro-brasileiros em Maceió. In Bruno C. Cavalcanti, Rachel Rocha de A. Barros e Clara Suassuna Fernandes (orgs.) Kulé-Kulé. Maceió: NEAB/Edufal, (no prelo).
DUARTE, Abelardo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Maceió, 1952, vol. XXVI.
_________ Catalogo Ilustrado da Coleção Perseverança. Maceió: Departamento de Assuntos Culturais - SENEC, 1974.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
FERNANDES, Gonçalves. O Sincretismo Religioso no Brasil. Curitiba/São Paulo/Rio de Janeiro: Guairá, 1941.
MOTTA, Roberto. Tempo e Milênio nas Religiões Afro-brasileiras in XXXIV Encontro Anual da ANPOCS. Petrópolis, 2000
RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. 4° ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2001.
SEGATO, Rita Laura. “Inventando a natureza: Família, sexo e gênero no Xangô do Recife in Camdomblé: religião do corpo e da alma. Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
VERGER. Pierre. Lendas Africanas dos Orixás. Salvador. Corrupio, 1997.