domingo, 6 de maio de 2012

[Política: Esquerda: Programa] Golbery Lessa. Um programa político para a esquerda alagoana.




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LESSA, Golbery. Um programa político para a esquerda alagoana. Tribuna Independente. Maceió, 18 mar. 2012. Contexto
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Um pequeno bilhete sobre rumos em Alagoas


Esta é uma reflexão sobre os caminhos da esquerda em Alagoas, produzida por Golbery Lessa, contendo pontos evidentemente controversos. Não importa discordar ou concordar: importa discutir o que o texto carrega  como polêmica. É preciso que apareçam  outros documentos deste tipo; Alagoas precisa urgentemente entrar na berlinda.   Vamos ler e   discutir à exaustão, sem perder a noção de que o tempo passa e que a vida é e sempre foi urgente.

Sávio de Almeida


Um programa político para a esquerda alagoana

 

Golbery Lessa

 






A atual esquerda de Alagoas não tem um programa político para o estado. A injustiça e a infâmia campeiam, a miséria atinge metade da população, o capitalismo está paralisado numa etapa primitiva há cinquenta anos, o Estado de Direito é residual, mas a esquerda da terra de Graciliano, única corrente local capaz de impulsionar o progresso humano, não demonstra consciência de quais são suas tarefas táticas e estratégicas. Para ultrapassar a atmosfera econômica, social e política asfixiante em que vivemos neste pedaço do Brasil comprimido entre os rios São Francisco e Persinunga, é imperativo refletir sobre as causas desse descompasso entre pensamento e realidade.  
Há uma evidente contradição na esquerda local (composta pelos intelectuais críticos, os movimentos sociais e os partidos políticos marxistas) entre sua boa capacidade de refletir sobre o Brasil e o mundo e sua grande dificuldade de pensar a formação social alagoana, onde se encontra o pedaço do capitalismo planetário contra o qual lhe é dado lutar imediatamente. Vários militantes do movimento estudantil, por exemplo, expressando a situação geral da esquerda, são capazes de dissertar com rigor sobre a crise estrutural do capitalismo e o Programa de Transição de Trótski, mas têm poucas informações sobre a superexploração dos trabalhadores nas usinas de açúcar ou relativas às estruturas fundiárias das três mesorregiões do estado.




Após a publicação de O Capital, de Karl Marx, o entendimento do capitalismo de uma formação social particular, por exemplo, de Alagoas, passou a ser mais difícil do que a compreensão das leis gerais do capitalismo. Parece um paradoxo, mas é a verdade. Para repetir ad infinitum o que está escrito em O Capital, basta ter lido o livro com cuidado e método. Já para aplicar a teoria do pensador alemão aos casos particulares é preciso capacidade de percepção do complexo relacionamento entre singularidades e universalidades, o que demanda domínio do método dialético e criatividade teórica. De modo análogo, a publicação da teoria de István Mészáros sobre as especificidades da atual crise do capital, que seria, no seu entendimento, uma crise estrutural e não apenas cíclica, explica muito da quadra histórica do sistema, mas não explica, nem poderia fazê-lo devido ao alto grau de abstração que precisa comportar, como este fenômeno se expressa em cada estado brasileiro.
A esquerda alagoana sofisticou-se nos últimos vinte anos como em nenhum outro momento de sua história devido à expansão do ensino superior e o avanço dos meios eletrônicos de comunicação, tendo absorvido o essencial da tradição científica universal. Cumpriu, portanto, uma etapa cognitiva necessária para uma corrente ideológica obrigada a intervir com lucidez na realidade. Contudo, ainda necessita sair do altíssimo grau de abstração no qual se encontra e desvelar os objetos particulares que estão ao seu redor, sob pena de perecer enquanto corrente política relevante. Encontra-se envolta em um internacionalismo alienado da realidade local, uma espécie de “cosmopolitismo abstrato.”
É sempre mais cômodo e, ao mesmo tempo, inútil enfrentar o capitalismo sem ponto de apoio algum na realidade empírica mais próxima. De fato, só através do enfrentamento de suas manifestações particulares e regionalmente delimitadas pode-se combater o capitalismo como um todo. O internacionalismo não deve ser a negação das lutas nacionais e locais, mas o resultado da articulação dessas lutas. A revolução mundial não ocorrerá em águas internacionais, onde inexistem fronteiras e, também, relações humanas; acontecerá em territórios habitados por povos diferentes que articularão suas lutas.
O mais irônico é que, em seu presente estágio, a hoje erudita esquerda alagoana, quando alfinetada pelas demandas da realidade estadual, acaba efetivando, tacitamente, a transposição da análise do sistema capitalista como um todo para iluminar sua ação na realidade local, repetindo o que mais critica na antiga esquerda mecanicista e dualista. Do ponto de vista político, o resultado é trágico, como foi no passado.  
Vejamos quais são as duas teses básicas da esquerda caeté-palmarina.
Deduz das ideias de crise estrutural (final) ou crise cíclica profunda do capitalismo (mas isso nunca é explicitado oralmente ou por meio de textos, o que já é indício da dificuldade de sustentar a dedução) que não seria coerente propor qualquer reforma econômica, cultural ou política para o capitalismo alagoano; se o capitalismo, como sistema global, é irreformável e incontrolável, o capitalismo em Alagoas seria igualmente irreformável e incontrolável; ou seja, não seria teoricamente sustentável um momento democrático e reformista num programa da esquerda alagoana para o estado, mesmo que esse momento fosse parte de um processo de revolução permanente, como propôs Trótsky ara os países periféricos.


Deduz da ideia de que o Estado de Direito democrático é a melhor forma de administrar os conflitos numa sociedade capitalista e legitimar a ordem regida pelo capital a noção de que a esquerda deveria essencialmente denunciar e contornar esse Estado, atuando o máximo possível “por fora” das instituições políticas clássicas, como os parlamentos e os partidos políticos, mesmo os partidos revolucionários. Diante de uma realidade alagoana na qual há uma enorme carência de organização política da classe trabalhadora em partidos de esquerda, o Estado Direito democrático é residual e a luta por direitos formais tem o condão de levar a massa velozmente a questionar o capitalismo, a nossa esquerda manda dizer que o Estado de Direito democrático é um engodo, está historicamente ultrapassado e deve ser abandonado à própria sorte.
É evidente a falta de mediações geográficas, econômicas e políticas decisivas nas duas teses expostas acima. Mesmo que se admita uma crise estrutural, final, do capitalismo, disso não se pode deduzir que essa tendência essencial se realizaria de maneira idêntica em todos os países e sem contratendências de alguma magnitude, como Marx demonstrou em O Capital.  Do fato de que o sistema como um todo, num grau bem alto de abstração, seja irreformável e esteja impossibilitado de retomar um crescimento duradouro, não se pode deduzir legitimamente que inexista espaço para várias reformas pontuais, mas significativas, em países e regiões, efetivadas pela pressão das massas populares e tendentes a minorar as dores sociais do parto da nova ordem que está em germe dentro da antiga. Nesse sentido, o caso do avanço da reforma agrária em Alagoas é eloquente (hoje existem 60 mil alagoanos vivendo em assentamentos que juntos possuem 200 mil hectares de terra, o que representa a metade da área da cana-de-açúcar e metade de sua força de trabalho agrícola). Ficassem os sem-terra parados, embasbacados diante da tese da crise estrutural do sistema, teriam morrido às margens do latifúndio. 
Aceitas as acima referidas teses da esquerda local, torna-se inviável qualquer programa político para Alagoas que não seja a propaganda das impossibilidades e a defesa imediata da revolução socialista num único estado da Federação, o que é um absurdo tão evidente que ninguém tem coragem de explicitar. Atua-se como se fosse possível saber de antemão exatamente o quanto as políticas públicas poderiam avançar ou retroagir nos embates efetivos entre as forças populares e o capital. A reforma agrária seria impraticável, a melhoria da educação seria impossível, os hospitais nunca poderão melhorar, enfim, a política se transforma num vale de lágrimas, dada a impossibilidade de propostas concretas imediatas. O programa máximo socialista passa a ser gritado a propósito de tudo e espera-se que o trabalhador, num passe de mágica, pule as reivindicações reformistas e transforme-se num revolucionário. Critica-se o neoliberalismo, defende-se a escola pública, mas com a ressalva de que ela é, de fato, uma quimera sob a presente crise final do sistema.
Enfim, unem-se o fatalismo econômico antidialético e o voluntarismo político.
Um programa para a esquerda alagoana que supere as dicotomias criticadas pressupõe a conceituação da realidade que esta corrente política pretende modificar e, portanto, implica na definição do tipo particular de capitalismo vigente no estado de Alagoas. Realizada essa primeira tarefa reflexiva, tornar-se possível identificar os entraves para o progresso econômico, político e cultural e definir as modificações que a esquerda deve propor para induzir esta formação social a alcançar novos patamares de desenvolvimento humano. 

O capitalismo alagoano tem a mesma natureza geral dos capitalismos brasileiro e nordestino, entretanto também apresenta características singulares, peculiaridades que são encontradas apenas no estado, bem como diferenças entre os vários momentos históricos de sua trajetória. Entender a formação social alagoana é, pois, o mesmo que identificar essas peculiaridades e compreender a sua relação com as características que Alagoas compartilha com o Nordeste e com o Brasil.
Não se trata de perceber o capitalismo local inserido em um tipo particular distinto do brasileiro (frequentemente denominado colonial, hiper-tardio, prussiano, periférico, dependente, entre outras adjetivações), o que nos obrigaria a providenciar um adjetivo que o definisse; trata-se de usar a teoria sobre a particularidade do capitalismo no país para entender de maneira concreta o caso alagoano, produzindo assim um conhecimento mais acurado e útil por ser enriquecido pela identificação de mais mediações existentes entre as esferas nacional, regional e estadual.
O pensamento social brasileiro moderno, que começa com Aureliano C. Tavares Bastos e Joaquim Nabuco, passa por Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque, e chega a Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, entre outros, decifrou o enigma Brasil. Sabemos que o país tem um capitalismo não-clássico, repleto de gargalos que o impedem de avançar para uma forma mais positiva e democrática deste sistema social. O impasse surgiu porque o Brasil formou-se como colônia e não superou os empecilhos internos advindos desse fato por meio de uma revolução burguesa, como ocorrera nos EUA, na Inglaterra e na França.
Segundo a vanguarda do pensamento social brasileiro, entre os principais impasses do Brasil moderno estão: 1) o caráter lento e concentrador da modernização da agricultura; 2) a dependência da indústria em relação a fornecedores externos de tecnológica; 3) a restrição estrutural do mercado interno causada pelos baixos salários e o crescimento retardatário da produtividade; 4) as altas taxas de juros tornadas possíveis por taxas de lucro muito elevadas em relação à média mundial, provenientes da superexploração dos trabalhadores; 5) os impactos negativos do caráter não-clássico do capitalismo no universo político, que se caracteriza pela fragilidade do Estado de Direito democrático e o predomínio de práticas patrimonialistas; e 6) a fragilidade e corrupção das instituições republicanas, como o Parlamento, o Judiciário e os partidos, e as dificuldades postas pela elite social para a participação política constante das massas populares.
A partir da segunda metade do século XIX, esses e outros graves problemas do capitalismo nacional passaram a ser mais agudos no Nordeste brasileiro do que no Sul e no Sudeste. A formação social paulista, por exemplo, por ter o seu desenvolvimento menos embargado do que a alagoana, pelo menos a partir da segunda metade do século XIX, aprofunda progressivamente, durante a virada do século XIX para o século XX, as suas etapas de industrialização. Começou produzindo bens de consumo corrente, passou para a fabricação de bens duráveis e chegou até a constituição de uma indústria de bens de capital, última etapa na efetivação do chamado capitalismo industrial. Entretanto, é importante sublinhar que esse processo paulista foi constituído nos moldes precários e com a lentidão típica do capitalismo colonial. 


No caso alagoano, nas primeiras cinco décadas do século XX, chegou-se a cumprir parte do primeiro momento do desenvolvimento industrial, processo que foi capitaneado pela indústria têxtil. Entretanto, a partir da decadência da indústria de fiação e tecelagem, que ocorreu no final dos anos 1950, o capitalismo local sofreu uma séria involução. O estado não avançou mais no sentido de cumprir a primeira etapa do desenvolvimento capitalista, ou seja, de produzir a maior parte dos bens de consumo corrente que o seu mercado interno adquire. Com a derrocada da indústria têxtil, a economia do estado passou a produzir apenas açúcar, álcool, mandioca, leite, fumo, coco e, a partir dos anos 1980, elementos químicos derivado do sal-gema. Os milhares de produtos que os consumidores locais necessitam são importados de outros estados ou do exterior. A parte dinâmica da economia voltou-se para fora, para a exportação.
A paralisia histórica do capitalismo de Alagoas a partir do final dos anos 1950 não foi, evidentemente, absoluta. Ocorreram modernizações na economia estadual, no entanto, foram processos muito conservadores, que não avançaram de maneira significativa no sentido de completar sequer a etapa inicial do desenvolvimento capitalista e, muito menos, de superar outras fases. As modernizações tenderam a reforçar os mesmos setores econômicos, as mesmas relações de produção atrasadas, o mesmo arcabouço político oligárquico e a garantir a prevalência da exportação sobre o mercado interno. A agroindústria canavieira passou a ser nessa fase a parte mais dinâmica desses processos, que também ocorreram na fumicultura e na produção de leite.
A agroindústria canavieira no Brasil, não apenas em Alagoas, tem singularidades que a tornam particularmente atrasada em relação a outros setores econômicos de dimensão análoga de capital. Não se trata, necessária ou principalmente, de um atraso tecnológico, mas em essência de um retardamento estrutural, de uma impossibilidade de mover-se pela lógica capitalista mais avançada e coerente com os momentos mais contemporâneos do sistema. Apesar de incorporar substanciais desenvolvimentos tecnológicos, e mesmo a vanguarda da tecnologia da área em alguns momentos, e fazer outras mudanças para adequar-se às conjunturas, apresenta uma situação financeira mais instável e uma relação mais predatória com o meio ambiente, as instituições estatais, a infra-estrutura pública e a força de trabalho. 
Isso não significa que a agroindústria canavieira no país e em Alagoas seja inca-paz de alcançar a taxa média de lucro da economia e mesmo de ultrapassá-la em determinadas conjunturas, denota apenas que obtém essa taxa a custos sociais, ambientais e políticos acima da média de outros setores de mesma estatura econômica. Esta contradição ocorre devido à existência dos fenômenos da entressafra na produção de cana e, portanto, de açúcar e de álcool, e da união entre canaviais e indústria sob o mesmo capital, o que provoca uma grande diminuição da velocidade de rotação do capital das usinas e destilarias, já que implica numa paralisia econômica de cerca de seis meses.
As degradações sociais, ambientais e políticas aludidas patrocinadas pela agroindústria da cana são uma via para compensar os efeitos na taxa de lucro da lenta rotação de capital por meio de um enorme aumento, muito além da média do sistema, da exploração dos homens, da natureza e dos fundos públicos. Isso explica a natureza enigmática da agroindústria canavieira no Brasil e em Alagoas, que aparece simultaneamente como moderna e arcaica.
A partir do começo da involução capitalista apontada acima, o setor canavieiro alagoano, o mais estruturalmente atrasado da indústria local, passou a ter o predomínio econômico sobre mais de cinquenta municípios e a hegemonia política no Legislativo e no Executivo estaduais; enquanto isso, desapareceram setores poderosos (como as fábricas têxteis e a burguesia comercial de Jaraguá) que lhe serviam de contrapeso e amorteciam seu impacto negativo sobre o desenvolvimento capitalista e a esfera pública.
 Por uma série de singularidades econômicas e geopolíticas, mesmo representando apenas algo entre 15 e 20% do PIB, o setor canavieiro tem conseguido uma vigorosa hegemonia política, que se expressa como um domínio oligárquico sobre a máquina pública os outros setores da classe dominante, o Sertão, o Agreste e a capital, retardando o desenvolvimento capitalista por sua má influência econômica e pela degenerescência que causa nas instituições públicas que poderiam elaborar e efetivar um programa político de superação dos entraves para o progresso econômico e social.
Resumo do diagnóstico: o capitalismo periférico e dependente alagoano sofreu uma séria involução a partir da década de 1960, destruindo a etapa de desenvolvimento que estava em vias de completar, dando margem ao predomínio econômico e à hegemonia política oligárquica de um segmento da classe dominante, o setor canavieiro, que é organizado no estado e no país de modo a ser intrinsecamente retardatário e retardador do desenvolvimento capitalista do seu entorno; este setor, mesmo sem representar a maior parte do PIB, domina por causas geopolíticas a máquina pública, submete os outros setores burgueses, subordina a capital ao interior, e inviabiliza qualquer projeto de modernização do estado que aponte para a complementação das etapas clássicas do capitalismo, mesmo nos conservadores padrões brasileiros.
Qual deveria ser a essência de um programa de esquerda para a Alagoas contemporânea para romper as barreira ao desenvolvimento identificadas no diagnóstico acima? Deveria propor a revolução armada imediata e o estabelecimento do socialismo num único estado da Federação? Isso seria, evidentemente, uma espécie de cúmulo do stalinismo, que advogava, como se sabe, a viabilidade do socialismo num único país. Quais seriam as alternativas? É isso que discutiremos na segunda e última parte deste artigo.


[RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA: MACUMBA NAS ALAGOAS] Luiz Sávio de Almeaida.. Meu velho diário e a macumba nas Alagoas.








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ALMEIDA, Luiz Sávio de. Meu velho diário e a macumba nas Alagoas. Tribuna Independente. Maceió, 04 mar. 2012. Contexto.
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Meu velho diário e a macumba nas Alagoas (II)



Um pequeno bilhete sobre macumba nas Alagoas

 

 É uma pequena notícia de um tempo e do que restou dele em meu arquivo. O que e poderia dizer? Teria sido um tempo de perseguição e também de afirmação? Como é que a história vai se acumulando nos terreiros e como vai sendo a forma deles lidarem com o rastreamento do passado? Eu gostaria muito de saber como esta ideia de tempo é vista e compreendida pelos terreiros; penso, no mais que li, que, normalmente, o tempo é abstraído por um corte epistemológico que ancora o terreiro e nisso futuro e passado vão embora. Será que isso faz sentido? Bom, tá aí mais uma parte de um mero depoimento em cima de velhas anotações. As fotos foram tiradas na Festa de Iemanjá e são de nossa autoria.
Saravá que eu vou de banda!

Sávio de Almeida

 

Meu velho diário e a macumba nas Alagoas (II)

Luiz Sávio de Almeida


Um pouco sobre intelectuais 

 

 



A área da chamada ciência social demorou a ficar clara em Alagoas; e, em grande parte, isso somente aconteceu quando a Universidade ingressou na pós-graduação. Somente a partir daí, é que Alagoas vai conhecer a especialização de antropólogos, sociólogos e outras categorias, inclusive beneficiando-se de alguns profissionais que vinham de outros Estados e passam a incorporar a produção e discussão à nossa. Anteriormente, o intelectual provinciano espelhava-se no beletrismo e tendia à universidade enciclopédica. Na área social, destacavam-se o historiador e o folclorista. A história de um era a história do outro, o folclore de um era o folclore de outro.  A diferença estava simplesmente em ser bom ou não, mas a produção girava em torno do mesmo eixo.
História e folclore eram tudo e a síntese de tudo. Não estou minimizando o que foi produzido, estou somente pondo na mesa o fato de que tínhamos dois modos de saber da sociedade e o tom monocórdico de tratamento.   uma possibilidade de diferenciação em trabalhos de Sant’Ana e colocações relativas sobre método, aqui e ali, feitas  com um gosto naive, como se nota em  passagens de Theo Brandão. Nisso, dois outros nomes obrigatoriamente devem ser contemplados: Félix Lima Júnior e Abelardo Duarte. O forte do Félix era a percepção do cotidiano, a construção da crônica, o almofadinha e a priminha urbana, com o negro indo para o escaninho dos tipos populares e sempre tratados com afabilidade.  O forte de Abelardo Duarte era a tentativa de chegar às raízes. Essa diferenciação que ele vive dentro do conjunto é acompanhada pelo trato do negro, não importa o viés assumido.
Parece-nos imprudente afirmar que inexistiu produção sobre o negro; o que sempre existiu foi o negro na condição de uma temática periférica ou subordinada e não tratado como um sujeito político. Na verdade, contudo, a religião passou de raspão nesse conjunto. Continuidade do preconceito? Jamais se poderia seguramente afirmar tal coisa, mas jamais poderíamos deixar de considerar dois pontos básicos: em primeiro lugar, existem as opções pessoais de eleição de campos de investigação e, em segundo, a sociedade continuava escondendo o mundo religioso negro, até mesmo pelo fato de que a gente da macumba estava a viver submersa, a não ter presença marcante na sociedade civil por onde uma representatividade política se poderia fazer. A “ciência” não a pretendia descobrir, encontrar. O chamado Quebra já havia indicado a sua colocação no universo da barbárie. 






Sant’Ana em diversas situações trabalha o negro, mas preferencialmente na sua condição de escravo, situado portanto na ordem econômica da produção. Theo Brandão vê negro, mas especialmente no contexto do folguedo, dos contos: era o negro-folclore. Abelardo Duarte está bem mais próximo da questão religiosa, ele de fato, ensaia passos, mas sempre a arquitetura dos textos funda-se na perspectiva do folclore, fazendo parte da montagem de um campo científico próprio. O que seria folclore? No fundo, a ausência da especialização e a herança histórica do açúcar e que junto à história davam conta da sociedade e da cultura.
Talvez, como é de praxe, eu esteja sendo absolutamente simplista. Entendo que nenhum dos grandes folcloristas de Alagoas daquela época seria capaz de discutir, teoricamente, o campo, e ele, o campo, era uma imposição. Não é que não tivessem suficiência pessoal, mas havia uma severa falta de formação específica; então, a coleta era ótima e o trato ficava limitado, pois o marco teórico não era aprofundado; da geração da Escola de Viçosa, três eram médicos; Theo, José Maria e o Pimentel. Isso não implica em que existisse um mau trabalho; pelo contrário, Alagoa se representava muito bem no ambiente nacional do folclorismo, mas faltava-lhe a base antropológica e fundamentação historiográfica.
Via de regra e ressalvadas as exceções, os historiadores estavam presos ao heróico para a construção de uma história do exemplar, enquanto os folcloristas pagavam o preço de suas origens intelectuais e sociais, devendo ainda ser levado em conta que havia regra para validar o intelectual provinciano; ele deveria parecer com os demais, repetir a ordem emanada de um espelho posto em duas grandes instituições de notáveis, espécies de templo onde cabiam as sumidades – ditas “assumidades” no linguajar coloquial das Alagoas –, dentre os não muitos afeitos ao trato da inteligentzia.

As doenças do folclorismo





Uma velha anotação que realizei, informa sobre uma conversa que tive com o Theo Brandão na casa dele. Estava havendo um encontro e fui convidado para falar: a temática era algo como o Ciclo do Gado. Telefonei para o Theo, vi que estava disponível. Para testar se ele estava com tempo para perder comigo, eu sempre me anunciava no telefone como Pedro II. Se ele respondesse que era o Marechal Deodoro, iríamos conversar e eu sempre lucrava com isso. Eu disse que não sabia nada sobre ciclo e nem era vaqueiro para entender de boi; começamos a rir e a conversa foi derivando para o que me interessava.
Aí, o Theo Brandão foi audacioso: “Sabe de uma coisa, não fale sobre esse negócio não. Fale sobre nossa conversa”. Alinhamos o que passamos a chamar, talvez por influência dele que era médico, as cinco doenças do folclorista, coisa que parece havia sido tocada por um folclorista americano, do qual não recordo o nome, gente da UCLA. Dito e feito. Dei o recado com a empáfia afrontosa da juventude calçada pela autoridade do “mestre”. Nas doenças estavam o memorialismo e as atitudes de classe. A velha anotação me trouxe saudade, mas vou continuar lendo e comentando o que está no meu Diário sobre o assunto, em uma anotação sobre o que seria o folclorismo nas Alagoas.
O grande modelo do folclorista era dado pela escola de Viçosa, expressão que segundo me consta foi criada pelo Manoel Diégues Júnior em tom de brincadeira, mas que deve ser explorada em profundidade. Manoel Diégues Júnior nunca abandonou Alagoas, apesar de ter mudado daqui, como saíram Aurélio Buarque de Holanda, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, Humberto Bastos... Uma vez, em jantar na casa do Diégues no Rio de Janeiro, perguntei a razão de ele ter ido para o sul e a resposta foi óbvia: oportunidade, não teria condições de viver em Maceió.
Anotei que a idéia do Doutor Diégues não era a existência de uma Escola de Viçosa, no sentido usual que o termo carrega acadêmico; era a de que os folcloristas se escolarizavam na Viçosa. Nada a ver com a educação formal; é uma imagem que leva à ideia de organicidade, escola como referência ao orgânico. Nunca conversei com o Doutor Diégues sobre isso e arrependo-me. Mas foi assim, que o assunto foi parar no meu Diário: o que se encontrava em evidência era a circunstância de Viçosa e que ela havia permitido a safra representada pelo Theo, pelo Zé Aloísio Vilela, pelo Doutor José Maria de Mello, continuadores de uma geração anterior de intelectuais, brutalmente confrontada por Otávio Brandão e possivelmente oriunda de Alfredo Brandão.
Jamais os componentes da Escola poderiam fugir do fato de serem Mello, Vilela e Brandão que plantou costados na mata. O lastro da Baixa Funda e outros estavam presentes e eles, os folcloristas, não escondiam essa vinculação açucareira e nem tinham razão para esconder. O Theo e o Doutor José Maria de Mello se urbanizariam, mas manteriam a ideia de uma raiz no rural da mata; Zé Aloísio continuaria agarrado nas canas da Boa Sorte (não sei se inventei o nome). O lastro do Doutor José Maria continuava como se pode ver nos seus trabalhos literários e sobre folclore. Era um homem afável, comedido, sério, desviado de uma carreira mais numerosa em livros pela atividade política, engenho e sua medicina. Era aparentado e amigo do meu pai. Certa feita, eu estava no Instituto Histórico e ele conversou um bom  tempo sobre este relacionamento.
Nessa circunstância, ser folclorista era bem mais do que trabalhar o que se considerava dentro da área do folclore; era uma indicação que remetia à mata, ao açúcar, á Baixa Funda, Boa Sorte...  Eram espelhos, a gente olhava para eles como verdadeiros exemplos e não posso esquecer o terno branco de linho que o Doutor José Maria gostava de usar, engomado, passado, vinco nas calças, tudo emoldurando um sorriso simpático. Além do mais, todos eles eram acolhedores, não se furtavam à rapaziada, apesar de gente da Academia Alagoana de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Gente consagrada, de alto prestígio social e cultural.
Como se fosse um passe de mágica e por serem espelho, Boa Sorte e associados arrastavam a todos nós que não tínhamos outra opção para estudar Alagoas: folclore. Não posso deixar de dizer sobre minha expectativa, quando pelas mãos do Theo fui ser membro da Comissão Alagoana de Folclore, coisa ainda do tempo do Doutor Renato de Almeida e do Vicente Salles, gente do Pará que havia ancorado na Comissão Nacional de Folclore e com quem passei a manter contato constante, época em que conheci e papeava com o Edson Carneiro, eu ainda molecote, menino que não havia tirado o cheiro da urina.
Então, a circunstância de Viçosa invadia o anseio da molecoreba que via e podia conviver com os grandes. No meu caso, ainda havia o peso da herança dos Almeidas da Capela; meus pais a não deixarem de lado as origens rurais na cabeça do filho. Então, pra mim, foi um encontro pessoal, o mergulho no folclore. Theo andou lendo Redfield e começou a falar de comunidade folk e coisas afins. Falava de Chã Preta e esse foi meu primeiro destino: mergulhar em Chã Preta, lá pelos lados do Cavaleiro, subida bem após a Baixa Funda quando ainda havia ladeira a considerar, carro bambeando na lama a quase derrapar para o precipício. Chã Preta era a continuidade de Viçosa e de lá surgia um extraordinário Professor Pedro Texeira, costados na Medina, filho de Seu Al e que se considerava um homem folk. Andei muito na Medina e por toda Chã Preta, acompanhado às vezes pelo Netinho, chafurdando no engenho do Benedito, conversando com os povos daquelas bandas. Devo imensamente ao Theo e ao Professor Pedro Texeira.
Essas coisas lidas no velho Diário (todos os dias continuo a escrita, vício que aprendi com o meu pai) falam um pouco do que era o universo intelectual nas Alagoas do meu tempo de menino e, se a gente pensar direitinho, tudo interferia no campo dos estudos das religiões afro-brasileiras.
Pelo que deve ser notado, o folclore era uma espécie de terra sem fronteira, possivelmente, pelo fato de que nascia no vácuo de uma tradição antropológica nas Alagoas. Apesar dessa abertura, ele envolvia o seleto que se lastreava, dentre outros pontos, nas origens do próprio estudo do folclore no Brasil, tradição de Silvio Romero, João Ribeiro e outros pais fundadores. Pelo que entendo, o folclore é anterior à antropologia no Brasil. Por outro lado, em razão derivada em grande parte das ligações históricas, tinha-se a procura pelas origens das manifestações (como eram chamadas) folclóricas, dando-se o comparativismo e privilegiando-se Portugal e o que nele se fazia naquilo que era chamado, à época, de etnografia do além-mar e necessariamente bisonha. Acredito que ao folclore se incorporava basicamente o senso ibérico.






O mais importante, contudo, é que privilegiava o quadro agrário, que transparece na existência de uma Escola de Viçosa. Aí, pontos devem ser considerados, já que estamos falando de macumba. Em primeiro lugar, convém lembrar que a macumba era vista no urbano e não no rural. É claro que era difundida no território, mas as referências eram sempre urbanas, pelo menos, conforme anotei; em segundo lugar, havia um sacrário onde estava a religiosidade católica apostólica romana e tudo passava a girar em torno dela, usando-se a interessante expressão: catolicismo de folk. Nesse contexto da religiosidade, jamais poderia ser construído uma religião afro-brasileira-folk. Semelhante ao isolamento policialesco havia o isolamento teórico, a não constituição de um campo, matéria tão a gosto dos intelectuais rigorosos e ciosos, aos quais invejo pela tanta ciência que conseguem.
Aprisionado pelo preconceito, perseguido e desamparado de campo de investigação, somente poderia acontecer o que se deu. Theo reclamava negligenciamento; nas minhas velhas anotações está escrito impossibilidade. Somente quando Maceió adquire o quadro urbano de hoje, quando, inclusive, aparece o negro como movimento, é que se pode pensar em modificações. A quebra do círculo passa pela Marilu de Gusmão, embora episódico. Do século passado, há material na literatura de Pedro Nolasco Maciel; em nosso século é no contexto do período em que se escuta a queixa do Theo, que ai aparece um texto chamado “Tambores de Ponta Grossa” (citado de cabeça e, portanto passível de equívoco) de Lindalvo Lins e não conheço algo mais, embora, seguramente, deva existir.
Voltando ao início, não tenho qualquer intenção de chegar a conclusões. Penso, apenas, que dei uma contribuição e que ela poder ser instigante com a relação ao tema. Há um grande espectro que se abre sobre o assunto, indo da construção da sociedade ao campo científico. No entanto, muito deve ser pesquisado. Acredito que as anotações velhas e amareladas tenham contribuído com alguma coisa. Continuamos sabendo de nossa posição: o cerco ao afro-brasileiro era global.

Os registros da Federação

 



É necessário esclarecer o universo: estamos diante de associados de uma organização chamada Federação dos Cultos Afro-Brasileiros de Alagoas. Nada pode garantir, embora a hipótese caiba, sobre estarmos diante de uma amostra efetivamente representativa do conjunto dos cultos nos finais da década de sessenta do século XX. Gostaria que durante toda a leitura desta parte do meu Diário, esse fato estivesse evidente. No entanto, desejo afirmar que os dados sugerem um quadro possivelmente colado às características do conjunto; devem ter algum nível de representatividade.
 Então, o texto do Diário, suas anotações, deve ser entendido como abertura de pistas, informações sugestivas sobre o universo a partir do que se pode observar em cima de uma simples listagem de endereços. Recordo-me que fui ajudado, na coleta dos endereços, por dois estudantes de medicina: Terezinha e Júlio. Agradecido agora, como deveria ter agradecido antes, caso eu realmente tivesse estudado o assunto. A listagem era preparatória para que eu fosse visitar e entrevistar os diversos centros. Não foi possível.

A geografia urbana dos cultos

 



Lins (com quem convivi) que era jornalista penso que do Jornal de Alagoas, percorreu inúmeros terreiros de Maceió. Sabia que eles funcionavam nos mais diversos bairros da cidade, mas frisava a concentração na Ponta Grossa.  De fato, dizia-se que na sexta-feira, os sons dos toques tomavam conta do bairro. Na realidade, conforme anotei, em diversas ruas da Ponta Grossa se tinha os terreiros em culto, mas eles se universalizavam pelas áreas pobres da cidade. Não se escondiam e nem podiam; o traçado urbano os enfiava no meio das casas. A Ponta Grossa, o Prado, o Vergel do Lago englobavam cerca de 31% (n=185) dos casos, formando o que poderia ser considerado como o complexo Sul do Xangô em Maceió.
Essa concentração ocupava uma imensa área da cidade, mas os bairros de maior densidade xangozeira eram Ponta Grossa, Ponta da Terra, Prado, Bebedouro, Jacintinho e Vergel do Lago. A porção norte era xangozeiramente menor. Eles se destacam, o que deve decorrer, em parte, do tamanho e da densidade de ocupação. O fato é que se poderia ouvir toque por todos aos cantos, nos dias normais, nos dias de festa, nas Salvas de Exu que sempre eram ditas perigosas. Uma boa Salva de Exu é impressionante e hoje, no peso da Umbanda, a Pomba Gira, seu Zé Pilintra, Tranca Rua dão as cartas.
Aliás, tenho amizade com o Zé Pilintra e com o Tranca Rua, mas tenho, também, amizade com o nagô do Tiriri, parebetile de nanan, Exu Tiriri! É a amizade com os homens.  Anotei a participação em duas dessas salvas, onde baixavam os mais diversos Exús atrás de cabeças, dando preocupação aos Pais e Mães de Santo - expressões nem sempre bem recebidas pelos Ialorixás e Babolorixás -, além de abrirem margem para a possibilidade de uma intervenção policial pela cachaça que um Zé Pilintra entorna. Um deles quis se engraçar comigo, certa feita, cheio de cana, mas eu saí de banda que não sou besta e soube reconduzir a conversa, levando as baforadas de um charuto na cara. Foi o Tranca Rua, depois um bom amigo quando viu que eu não reagia, mas não esfriava.
 Parece-nos possível afirmar que a Federação espalhava a sua atuação e que apesar de estar sediada na Ponta Grossa, conseguia atuar em toda a cidade de Maceió, além de ter alguns poucos inscritos em outros Municípios. O número de entidades do interior era estatisticamente insignificante.
Fora um único no Jacintinho, justamente o Ijexá do Celestino, eu frequentava a porção Norte, talvez pelo fato de que a maioria dos amigos morava naquela parte da cidade, talvez pela concentração, talvez por ser o local da sede da Federação ou por conta da junção em todo ou em parte desses elementos. Pelo Diário, a minha intenção era familiarizar-me com uma área central dos cultos, esperando que ali estivesse refletindo o geral da cidade. Demorava-me mais no terreiro do Luiz Marinho, pois objetivava conhecer um núcleo a chamar-se Nagô em maior profundidade, para sair comparando e perguntando. São anotações dessas perguntas e dessas comparações que se encontram perdidas. Luiz Marinho achava que eu era Filho de Santo do terreiro dele e eu nunca contradisse. Jogou os búzios e me deu Xangô de frente (Eiô, Cabecinha).
Tabela  1: Distribuição dos terreiros pelos Bairros de Maceió

Bairro
Absoluto
%
Alto do Céu
4
2
Alto do Feitosa
2
1
Areais
1
1
Bebedouro
19
10
Bom Parto
2
1
Bomba
1
1
Coréia
8
4
Cruz das Almas
1
1
Farol
8
4
Feitosa
1
1
Fernão Velho
3
2
Garça Torta
1
1
Jacintinho
17
9
Jaraguá
6
3
Jatiúca
3
2
Levada
1
1
Mutange
1
1
Não consta
1
1
Pinheiro
2
1
Poço
4
2
Ponta da Terra
22
12
Ponta Grossa
23
12
Prado
21
11
Reginaldo
4
2
Riacho Doce
3
2
Tabuleiro do Pinto
1
1
Tabuleiro dos Marins
9
5
Tabuleiro Novo
1
1
Trapiche da Barra
4
2
Vergel do Lago
13
7
Total
187
100


O nome do Informante foi estragado pelo tempo, não dá mais para ler: Fulano, diz que o nome certo seria Zelador”. Há uma interrogação. “Zelar?”. O argumento básico era que Santo não tinha Pai ou Mãe e mesmo se tivesse, eles se julgariam imperfeitos para ocuparem a posição. Estava anotado, também, que tudo poderia derivar do costume associado à carga densa em significado que as palavras Mãe e Pai continham.  Ainda estava anotado:  “Parece que Pai de Santo é uma expressão mais propriamente de fora da seita do que de dentro. É verdade que dentro da seita se fala em meu Pai e minha Mãe, mas não me lembro de, internamente, ter registrado Pai de Santo, Mãe de Santo. Aliás, a palavra Santo é católica em natureza. Isto significa, quem sabe, uma remessa a um sagrado, uma relação mais atemporal, abstrata. Existe, também, a possibilidade de pensar sobre uma redução à estrutura familiar: a inauguração de uma nova família, novos laços de parentesco, o parentesco pelo sagrado”.  Bom, foi o que encontrei anotado no Diário.