segunda-feira, 26 de março de 2012

[POLÍTICA: ESQUERDA ALAGOAS] LESSA, Golbery. Um programa político para a esquerda alagoana (I)









LESSA, Golbery. Um programa político para a esquerda alagoana (I). Tribuna Independente. Maceió, 18 mar. 2012. Contexto.


Um pequeno bilhete sobre rumos em Alagoas


Esta é uma reflexão sobre os caminhos da esquerda em Alagoas, produzida por Golbery Lessa, contendo pontos evidentemente controversos. Não importa discordar ou concordar: importa discutir o que o texto carrega  como polêmica. É preciso que apareçam  outros documentos deste tipo; Alagoas precisa urgentemente entrar na berlinda.   Vamos ler e   discutir à exaustão, sem perder a noção de que o tempo passa e que a vida é e sempre foi urgente.

Sávio de Almeida








Um programa político para a esquerda alagoana

Golbery Lessa


A atual esquerda de Alagoas não tem um programa político para o estado. A injustiça e a infâmia campeiam, a miséria atinge metade da população, o capitalismo está paralisado numa etapa primitiva há cinquenta anos, o Estado de Direito é residual, mas a esquerda da terra de Graciliano, única corrente local capaz de impulsionar o progresso humano, não demonstra consciência de quais são suas tarefas táticas e estratégicas. Para ultrapassar a atmosfera econômica, social e política asfixiante em que vivemos neste pedaço do Brasil comprimido entre os rios São Francisco e Persinunga, é imperativo refletir sobre as causas desse descompasso entre pensamento e realidade.  

Há uma evidente contradição na esquerda local (composta pelos intelectuais críticos, os movimentos sociais e os partidos políticos marxistas) entre sua boa capacidade de refletir sobre o Brasil e o mundo e sua grande dificuldade de pensar a formação social alagoana, onde se encontra o pedaço do capitalismo planetário contra o qual lhe é dado lutar imediatamente. Vários militantes do movimento estudantil, por exemplo, expressando a situação geral da esquerda, são capazes de dissertar com rigor sobre a crise estrutural do capitalismo e o Programa de Transição de Trótski, mas têm poucas informações sobre a superexploração dos trabalhadores nas usinas de açúcar ou relativas às estruturas fundiárias das três mesorregiões do estado.

Após a publicação de O Capital, de Karl Marx, o entendimento do capitalismo de uma formação social particular, por exemplo, de Alagoas, passou a ser mais difícil do que a compreensão das leis gerais do capitalismo. Parece um paradoxo, mas é a verdade. Para repetir ad infinitum o que está escrito em O Capital, basta ter lido o livro com cuidado e método. Já para aplicar a teoria do pensador alemão aos casos particulares é preciso capacidade de percepção do complexo relacionamento entre singularidades e universalidades, o que demanda domínio do método dialético e criatividade teórica. De modo análogo, a publicação da teoria de István Mészáros sobre as especificidades da atual crise do capital, que seria, no seu entendimento, uma crise estrutural e não apenas cíclica, explica muito da quadra histórica do sistema, mas não explica, nem poderia fazê-lo devido ao alto grau de abstração que precisa comportar, como este fenômeno se expressa em cada estado brasileiro.






A esquerda alagoana sofisticou-se nos últimos vinte anos como em nenhum outro momento de sua história devido à expansão do ensino superior e o avanço dos meios eletrônicos de comunicação, tendo absorvido o essencial da tradição científica universal. Cumpriu, portanto, uma etapa cognitiva necessária para uma corrente ideológica obrigada a intervir com lucidez na realidade. Contudo, ainda necessita sair do altíssimo grau de abstração no qual se encontra e desvelar os objetos particulares que estão ao seu redor, sob pena de perecer enquanto corrente política relevante. Encontra-se envolta em um internacionalismo alienado da realidade local, uma espécie de “cosmopolitismo abstrato.”

É sempre mais cômodo e, ao mesmo tempo, inútil enfrentar o capitalismo sem ponto de apoio algum na realidade empírica mais próxima. De fato, só através do enfrentamento de suas manifestações particulares e regionalmente delimitadas pode-se combater o capitalismo como um todo. O internacionalismo não deve ser a negação das lutas nacionais e locais, mas o resultado da articulação dessas lutas. A revolução mundial não ocorrerá em águas internacionais, onde inexistem fronteiras e, também, relações humanas; acontecerá em territórios habitados por povos diferentes que articularão suas lutas.

O mais irônico é que, em seu presente estágio, a hoje erudita esquerda alagoana, quando alfinetada pelas demandas da realidade estadual, acaba efetivando, tacitamente, a transposição da análise do sistema capitalista como um todo para iluminar sua ação na realidade local, repetindo o que mais critica na antiga esquerda mecanicista e dualista. Do ponto de vista político, o resultado é trágico, como foi no passado.  
Vejamos quais são as duas teses básicas da esquerda caeté-palmarina.



Deduz das ideias de crise estrutural (final) ou crise cíclica profunda do capitalismo (mas isso nunca é explicitado oralmente ou por meio de textos, o que já é indício da dificuldade de sustentar a dedução) que não seria coerente propor qualquer reforma econômica, cultural ou política para o capitalismo alagoano; se o capitalismo, como sistema global, é irreformável e incontrolável, o capitalismo em Alagoas seria igualmente irreformável e incontrolável; ou seja, não seria teoricamente sustentável um momento democrático e reformista num programa da esquerda alagoana para o estado, mesmo que esse momento fosse parte de um processo de revolução permanente, como propôs Trótsky ara os países periféricos.


Deduz da ideia de que o Estado de Direito democrático é a melhor forma de administrar os conflitos numa sociedade capitalista e legitimar a ordem regida pelo capital a noção de que a esquerda deveria essencialmente denunciar e contornar esse Estado, atuando o máximo possível “por fora” das instituições políticas clássicas, como os parlamentos e os partidos políticos, mesmo os partidos revolucionários. Diante de uma realidade alagoana na qual há uma enorme carência de organização política da classe trabalhadora em partidos de esquerda, o Estado Direito democrático é residual e a luta por direitos formais tem o condão de levar a massa velozmente a questionar o capitalismo, a nossa esquerda manda dizer que o Estado de Direito democrático é um engodo, está historicamente ultrapassado e deve ser abandonado à própria sorte.


É evidente a falta de mediações geográficas, econômicas e políticas decisivas nas duas teses expostas acima. Mesmo que se admita uma crise estrutural, final, do capitalismo, disso não se pode deduzir que essa tendência essencial se realizaria de maneira idêntica em todos os países e sem contratendências de alguma magnitude, como Marx demonstrou em O Capital.  Do fato de que o sistema como um todo, num grau bem alto de abstração, seja irreformável e esteja impossibilitado de retomar um crescimento duradouro, não se pode deduzir legitimamente que inexista espaço para várias reformas pontuais, mas significativas, em países e regiões, efetivadas pela pressão das massas populares e tendentes a minorar as dores sociais do parto da nova ordem que está em germe dentro da antiga. Nesse sentido, o caso do avanço da reforma agrária em Alagoas é eloquente (hoje existem 60 mil alagoanos vivendo em assentamentos que juntos possuem 200 mil hectares de terra, o que representa a metade da área da cana-de-açúcar e metade de sua força de trabalho agrícola). Ficassem os sem-terra parados, embasbacados diante da tese da crise estrutural do sistema, teriam morrido às margens do latifúndio. 


Aceitas as acima referidas teses da esquerda local, torna-se inviável qualquer programa político para Alagoas que não seja a propaganda das impossibilidades e a defesa imediata da revolução socialista num único estado da Federação, o que é um absurdo tão evidente que ninguém tem coragem de explicitar. Atua-se como se fosse possível saber de antemão exatamente o quanto as políticas públicas poderiam avançar ou retroagir nos embates efetivos entre as forças populares e o capital. A reforma agrária seria impraticável, a melhoria da educação seria impossível, os hospitais nunca poderão melhorar, enfim, a política se transforma num vale de lágrimas, dada a impossibilidade de propostas concretas imediatas. O programa máximo socialista passa a ser gritado a propósito de tudo e espera-se que o trabalhador, num passe de mágica, pule as reivindicações reformistas e transforme-se num revolucionário. Critica-se o neoliberalismo, defende-se a escola pública, mas com a ressalva de que ela é, de fato, uma quimera sob a presente crise final do sistema.
Enfim, unem-se o fatalismo econômico antidialético e o voluntarismo político.

Um programa para a esquerda alagoana que supere as dicotomias criticadas pressupõe a conceituação da realidade que esta corrente política pretende modificar e, portanto, implica na definição do tipo particular de capitalismo vigente no estado de Alagoas. Realizada essa primeira tarefa reflexiva, tornar-se possível identificar os entraves para o progresso econômico, político e cultural e definir as modificações que a esquerda deve propor para induzir esta formação social a alcançar novos patamares de desenvolvimento humano. 

O capitalismo alagoano tem a mesma natureza geral dos capitalismos brasileiro e nordestino, entretanto também apresenta características singulares, peculiaridades que são encontradas apenas no estado, bem como diferenças entre os vários momentos históricos de sua trajetória. Entender a formação social alagoana é, pois, o mesmo que identificar essas peculiaridades e compreender a sua relação com as características que Alagoas compartilha com o Nordeste e com o Brasil.

Não se trata de perceber o capitalismo local inserido em um tipo particular distinto do brasileiro (frequentemente denominado colonial, hiper-tardio, prussiano, periférico, dependente, entre outras adjetivações), o que nos obrigaria a providenciar um adjetivo que o definisse; trata-se de usar a teoria sobre a particularidade do capitalismo no país para entender de maneira concreta o caso alagoano, produzindo assim um conhecimento mais acurado e útil por ser enriquecido pela identificação de mais mediações existentes entre as esferas nacional, regional e estadual.

O pensamento social brasileiro moderno, que começa com Aureliano C. Tavares Bastos e Joaquim Nabuco, passa por Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque, e chega a Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, entre outros, decifrou o enigma Brasil. Sabemos que o país tem um capitalismo não-clássico, repleto de gargalos que o impedem de avançar para uma forma mais positiva e democrática deste sistema social. O impasse surgiu porque o Brasil formou-se como colônia e não superou os empecilhos internos advindos desse fato por meio de uma revolução burguesa, como ocorrera nos EUA, na Inglaterra e na França.

Segundo a vanguarda do pensamento social brasileiro, entre os principais impasses do Brasil moderno estão: 1) o caráter lento e concentrador da modernização da agricultura; 2) a dependência da indústria em relação a fornecedores externos de tecnológica; 3) a restrição estrutural do mercado interno causada pelos baixos salários e o crescimento retardatário da produtividade; 4) as altas taxas de juros tornadas possíveis por taxas de lucro muito elevadas em relação à média mundial, provenientes da superexploração dos trabalhadores; 5) os impactos negativos do caráter não-clássico do capitalismo no universo político, que se caracteriza pela fragilidade do Estado de Direito democrático e o predomínio de práticas patrimonialistas; e 6) a fragilidade e corrupção das instituições republicanas, como o Parlamento, o Judiciário e os partidos, e as dificuldades postas pela elite social para a participação política constante das massas populares.

A partir da segunda metade do século XIX, esses e outros graves problemas do capitalismo nacional passaram a ser mais agudos no Nordeste brasileiro do que no Sul e no Sudeste. A formação social paulista, por exemplo, por ter o seu desenvolvimento menos embargado do que a alagoana, pelo menos a partir da segunda metade do século XIX, aprofunda progressivamente, durante a virada do século XIX para o século XX, as suas etapas de industrialização. Começou produzindo bens de consumo corrente, passou para a fabricação de bens duráveis e chegou até a constituição de uma indústria de bens de capital, última etapa na efetivação do chamado capitalismo industrial. Entretanto, é importante sublinhar que esse processo paulista foi constituído nos moldes precários e com a lentidão típica do capitalismo colonial. 

No caso alagoano, nas primeiras cinco décadas do século XX, chegou-se a cumprir parte do primeiro momento do desenvolvimento industrial, processo que foi capitaneado pela indústria têxtil. Entretanto, a partir da decadência da indústria de fiação e tecelagem, que ocorreu no final dos anos 1950, o capitalismo local sofreu uma séria involução. O estado não avançou mais no sentido de cumprir a primeira etapa do desenvolvimento capitalista, ou seja, de produzir a maior parte dos bens de consumo corrente que o seu mercado interno adquire. Com a derrocada da indústria têxtil, a economia do estado passou a produzir apenas açúcar, álcool, mandioca, leite, fumo, coco e, a partir dos anos 1980, elementos químicos derivado do sal-gema. Os milhares de produtos que os consumidores locais necessitam são importados de outros estados ou do exterior. A parte dinâmica da economia voltou-se para fora, para a exportação.

A paralisia histórica do capitalismo de Alagoas a partir do final dos anos 1950 não foi, evidentemente, absoluta. Ocorreram modernizações na economia estadual, no entanto, foram processos muito conservadores, que não avançaram de maneira significativa no sentido de completar sequer a etapa inicial do desenvolvimento capitalista e, muito menos, de superar outras fases. As modernizações tenderam a reforçar os mesmos setores econômicos, as mesmas relações de produção atrasadas, o mesmo arcabouço político oligárquico e a garantir a prevalência da exportação sobre o mercado interno. A agroindústria canavieira passou a ser nessa fase a parte mais dinâmica desses processos, que também ocorreram na fumicultura e na produção de leite.

A agroindústria canavieira no Brasil, não apenas em Alagoas, tem singularidades que a tornam particularmente atrasada em relação a outros setores econômicos de dimensão análoga de capital. Não se trata, necessária ou principalmente, de um atraso tecnológico, mas em essência de um retardamento estrutural, de uma impossibilidade de mover-se pela lógica capitalista mais avançada e coerente com os momentos mais contemporâneos do sistema. Apesar de incorporar substanciais desenvolvimentos tecnológicos, e mesmo a vanguarda da tecnologia da área em alguns momentos, e fazer outras mudanças para adequar-se às conjunturas, apresenta uma situação financeira mais instável e uma relação mais predatória com o meio ambiente, as instituições estatais, a infra-estrutura pública e a força de trabalho. 

Isso não significa que a agroindústria canavieira no país e em Alagoas seja inca-paz de alcançar a taxa média de lucro da economia e mesmo de ultrapassá-la em determinadas conjunturas, denota apenas que obtém essa taxa a custos sociais, ambientais e políticos acima da média de outros setores de mesma estatura econômica. Esta contradição ocorre devido à existência dos fenômenos da entressafra na produção de cana e, portanto, de açúcar e de álcool, e da união entre canaviais e indústria sob o mesmo capital, o que provoca uma grande diminuição da velocidade de rotação do capital das usinas e destilarias, já que implica numa paralisia econômica de cerca de seis meses.

As degradações sociais, ambientais e políticas aludidas patrocinadas pela agroindústria da cana são uma via para compensar os efeitos na taxa de lucro da lenta rotação de capital por meio de um enorme aumento, muito além da média do sistema, da exploração dos homens, da natureza e dos fundos públicos. Isso explica a natureza enigmática da agroindústria canavieira no Brasil e em Alagoas, que aparece simultaneamente como moderna e arcaica.

A partir do começo da involução capitalista apontada acima, o setor canavieiro alagoano, o mais estruturalmente atrasado da indústria local, passou a ter o predomínio econômico sobre mais de cinquenta municípios e a hegemonia política no Legislativo e no Executivo estaduais; enquanto isso, desapareceram setores poderosos (como as fábricas têxteis e a burguesia comercial de Jaraguá) que lhe serviam de contrapeso e amorteciam seu impacto negativo sobre o desenvolvimento capitalista e a esfera pública.

 Por uma série de singularidades econômicas e geopolíticas, mesmo representando apenas algo entre 15 e 20% do PIB, o setor canavieiro tem conseguido uma vigorosa hegemonia política, que se expressa como um domínio oligárquico sobre a máquina pública os outros setores da classe dominante, o Sertão, o Agreste e a capital, retardando o desenvolvimento capitalista por sua má influência econômica e pela degenerescência que causa nas instituições públicas que poderiam elaborar e efetivar um programa político de superação dos entraves para o progresso econômico e social.

Resumo do diagnóstico: o capitalismo periférico e dependente alagoano sofreu uma séria involução a partir da década de 1960, destruindo a etapa de desenvolvimento que estava em vias de completar, dando margem ao predomínio econômico e à hegemonia política oligárquica de um segmento da classe dominante, o setor canavieiro, que é organizado no estado e no país de modo a ser intrinsecamente retardatário e retardador do desenvolvimento capitalista do seu entorno; este setor, mesmo sem representar a maior parte do PIB, domina por causas geopolíticas a máquina pública, submete os outros setores burgueses, subordina a capital ao interior, e inviabiliza qualquer projeto de modernização do estado que aponte para a complementação das etapas clássicas do capitalismo, mesmo nos conservadores padrões brasileiros.


Qual deveria ser a essência de um programa de esquerda para a Alagoas contemporânea para romper as barreira ao desenvolvimento identificadas no diagnóstico acima? Deveria propor a revolução armada imediata e o estabelecimento do socialismo num único estado da Federação? Isso seria, evidentemente, uma espécie de cúmulo do stalinismo, que advogava, como se sabe, a viabilidade do socialismo num único país. Quais seriam as alternativas? É isso que discutiremos na segunda e última parte deste artigo.