Este material foi publicado no tablóide Contexto, jornal Tribuna Independente, Maceió, 28/08/2011
Um bilhete sobre o homem do Olho
d’Água do
Amaro
Foi com
satisfação que conheci seu Totonho, na cata diuturna que faço da gente do povo.
É uma atividade que me traz o aconchego da vida. Ao conversar com ele,
vieram lembranças do meu pai e capelense Manoel de Almeida, do Tio
Júlio que vivia nas bandas da Palmeira
dos Índios e do meu sogro Propício Rocha Cavalcante – dos lados da Boca da Mata –, todos os três
com muitas histórias sobre carro de boi e por sinal, todos na paz de Deus. O
depoimento de Totonho é fundamental para entender-se a mudança e a conformação
do espaço no sertão.
Totonho no tempo do Exército e da guerra.
As recordações
de Totonho lançam luzes sobre a mudança social no sertão. A sua fala é
para ser lida em detalhe, com a cabeça compondo um espetáculo sobre a vida
sertaneja.
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Carro do boi no Olho d'Água do Amaro |
Totonho, carro
de boi e os sertões
Luiz Sávio de Almeida
O começo de uma viagem
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1 - A velha Chã Preta Divulgação |
Não é preciso dizer que o sertão molhado rivaliza com a ideia de terra da promissão. Sou mais acostumado com mata,
mas o verde dos canaviais às vezes torna
monótono o nosso encontro com a paisagem, embora a solidão da cor nunca
aconteça quando venta e tudo fica de um lado para o outro, ressaltado pelo
brilho das canas flechadas. O sertão quando chove, perde o amarronzado e ganha
em verde e, de uma hora para outra, o
que era áspero fica macio e doce. Alegoricamente, o verde sempre rebrota no
sertão, ilustrando a tarefa da esperança.
Os meus olhos não largam o horizonte quando estou sertanejo. E era assim
que eu estava na estrada; os olhos na procura das serras como o Serrote dos
Almeida, ponto que, em altura, rivaliza com a Serra do Cavaleiro na transição entre
Chã Preta e Correntes.
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2 - Lula Divulgação |
Eu não ando pelo sertão, sem que Luiz Gonzaga esteja comigo. Toda vez que
sinto a verdessência do sertão, entro na poética da esperança que está na letra
de A Volta da Asa Branca. Há um povo que espera a chuva, para ele mesmo,
para o gado e as plantas fartarem-se de
água. Nessas horas, sinto falta do Ivan Fernandes Lima; poderia estar conosco
na viagem e fizemos muitas juntos. Ele
sabia o nome de todas as árvores e de todas as serras. Viajar com o Ivan era
aprender muito sobre a geografia de Alagoas. Márcio Pinto, 2-com quem sempre viajo para aqueles mundos, sabe de muita
coisa, mas não é farto em nomes de serras; tenho aulas com ele sobre a vida e
sobre a economia e a política do sertão.
O pai dele sim conhecia aqueles mundos todos.
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3 - O centro de Santana do Ipanema http://www.adalagoas.com.br/licoesBibli |
Márcio tem sido companheiro de viagens pelo sertão, e estamos indo para
Santana em busca de um antigo carreiro e de uma antiga parteira. O asfalto parece um fitilho espichado, com
começo e sem fim, com a faixa amarela funcionando como se fosse pesponto. Parei
neste momento, numa churrascaria, onde estou fazendo estas anotações e
ordenando as informações sobre a viagem.
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4 - Santana: começos dos XX do XX Blog do Sérgio Campos |
Agora já estou em Santana. Impossível chegar à parteira; as chuvas atrapalharam o caminho, mas é hora de irmos ao Olho d’Água do Amaro, conhecer o velho carreiro. A paisagem não é estranha e estamos em uma chã, cerca de umas duas léguas de Santana. Como seria o povoado? No caminho, um carreiro vinha com fardos, sinal de que o carro de boi não perdeu seu lugar pelo sertão. Faltava o cachorro, o mais das vezes o melhor companheiro dos carreiros. O carro mudou o que vou chamar de carreto de longo curso, para ter o uso doméstico mormente nas pequenas propriedades, e continua na ativa, aqui e ali na raridade de rodas substituídas por pneus, espécies de carroças puxadas por boi, que vez em quando mas raramente, alguma pinta.
As interferências do tempo
Tudo isto, estava sendo modificado no correr do tempo das estradas. Hoje, um carro de boi dificilmente seria feito à mão e as madeiras nobres não estão mais sendo utilizadas, protegidas que são. Ninguém mais vive, propriamente, de fazer carro de boi, pois tudo se deve atualmente às pequenas marcenarias que, dentre outros misteres talvez bem mais lucrativos, fabricam o carro ou se destinam a concertá-lo. Cadê madeira de bom trato para o carro? Com toda a razão, as madeiras nobres são protegidas. Tomazela (1978) fala sobre a questão da madeira nobre quanto à região de Sorocaba. Sumiu também; não é um fato apenas do sertão das Alagoas.
Tudo isto, estava sendo modificado no correr do tempo das estradas. Hoje, um carro de boi dificilmente seria feito à mão e as madeiras nobres não estão mais sendo utilizadas, protegidas que são. Ninguém mais vive, propriamente, de fazer carro de boi, pois tudo se deve atualmente às pequenas marcenarias que, dentre outros misteres talvez bem mais lucrativos, fabricam o carro ou se destinam a concertá-lo. Cadê madeira de bom trato para o carro? Com toda a razão, as madeiras nobres são protegidas. Tomazela (1978) fala sobre a questão da madeira nobre quanto à região de Sorocaba. Sumiu também; não é um fato apenas do sertão das Alagoas.
Certa feita fomos, Márcio Pinto e eu, à procura de um homem indicado como
dos poucos, atualmente, a fazer carro de boi à mão. Pegamos a estrada em
direção ao Povoado de Santo Antônio, quebramos à esquerda e andamos a légua de
beiço. Ele nos recebeu com a família, mas estava variando, no começo de caduquice,
embora moço, regulando pelos 70. Fazia tempo que havia deixado de
trabalhar. O carro de boi estava parado,
na serventia apenas da casa: não mais fabricava. E pegamos a estrada e fomos em
direção à Canafístula dos Moreira, quando chegamos perto da Palmeira, naquela
meia volta que demos entre o passado e o presente. Desisti de carro de boi.
Fiquei desconfiado de que era chegar e não existir, como se os carros que eu
visse pelas fazendas estivessem sendo reproduzidos do nada: voltei murcho para
casa, apesar de ter desfrutado da força do agreste no rumo da Canafístula dos
Moreira.
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6 - Um tempo que ainda alcancei http://www.formaecor.com.br |
No entanto, engana-se quem pense que o carro de boi sumiu e tornou-se uma raridade. Ele mudou. Como disse, o longo curso havia acabado, mormente quando as grandes estradas rasparam o mundo e findando, inclusive, naquela região, com o papel do bento Rio São Francisco e, com ele, tragando o velho porto de Pão de Açúcar, aonde outrora chegou a existir copioso número de escravos de ganho, sinal da sua expressão como ligação entre o sertão e o mar. Era o carro de boi articulado à canoa de tolda. Ela realmente sumiu e o rio não a vê; dominava a paisagem com suas velas e seu porões fartos, uma espécie de FNM das águas do São Francisco.
Aquele acocho de leito
de rio no começo do Baixo São Francisco
levava ao alto sertão, à pedaços de agreste, talvez menos no empedrado em
direção à Piranhas, leito ainda hoje tido como perigoso, tanto que pouco mestre
lá de baixo, tem coragem de se aventurar para cima.
Acho mesmo que a canoa de tolda não se intimidou com o vapor que passou a
andar no São Francisco, e que vou representar pelo Comendador Peixoto que se
acha deitado no porto do Penedo, com seu lastro cheio de areia e voltado para o
lado da Passagem, todo comido, bronzes desaparecidos, mas imenso quando se
pensa no rio. Eram muitas no rio, mastros de oito metros expondo a vela imensa
aos ventos, aproveitando da mansidão da brisa às refregas.
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A belíssima canoa, hoje apenas pó no transporte revistacaninde.blogspot.com |
O rio era cheio,
existindo na década de 50 do século passado, umas cem canoas, numa das quais
viajei para as bandas do Piaçabuçu, a ver plantação de arroz com meu pai. A
maior de todas as canoas era a Canindé. Foi do
site mencionado, que tiramos a foto da tolda que publicamos nesta edição, tal
como se fosse amiga do carro de boi. Uma canoa desse porte pegava enorme
quantidade de fardos.
O passado está plantado
Foi por estar em busca de ver um
filme sobre o passado, que eu estava lá no Olho d’Água do Amaro. Quem sabe, os
carros – em grande parte - foram os
responsáveis por transformarem trilhas nas carroçáveis, na procura, inclusive,
da melhor chegada de um ponto a outro, montando as retas, dando as voltas das
curvas, vencendo o empinado da ladeira em pé, ou melhor, dizendo, das rampas
que tem estrada cheia de pinguruto e em que o ladeirame vadeia. O termo
carroçável tem tudo a ver com carro.
Existiam estradas estreitas com poucos tantos palmos craveiros,
necessitando constantemente concerto pelos, inclusive, sulcos deixados pelos
carros de boi, pedaços de vida, sulcos lembrados por Graça Aranha (2002) em
Canaã na paisagem que descreve. Ao falar do vale do Açu no Rio Grande do
Norte, Manoel Rodrigues de Melo (1979)
refere-se ao cortar da Várzea, às exigências que os carros impunham às estradas
e às relações de destino que carregavam. Por aqui, carro de boi onerava o custo
do açúcar, na região das lagoas, pelas voltas da década de trinta do século
XIX, sendo preferível o descer das águas do São Miguel, as águas-estradas que
tanto significaram para a economia agroexportadora.
Fazer estradas, modernizar corria correlato ao fato de que novos
transportes deveriam aparecer, e a notoriedade pública do carro de boi foi
sendo substituída pela sua vida doméstica, intra-cerca, intra-cercado. Ele se
arrasta, mas vai sendo integrado ao rumo da produção, no serviço de cargas em
pequenas distâncias, com um compasso de espera rotineiro nas propriedades
sertanejas. Talvez – mas nem tanto - o
carro de boi tenha sumido da zona da
mata, como sumiu um antigo transporte chamado, caso não haja engano, zorra. Eu vi uma única vez pelos lados
da Chã Preta. Era uma espécie de
plataforma que deslizava pelo chão, tracionada, mas sem roda. Existem
antiqüíssimos registros sobre a zorra,
mas não cabe ser comentados nesta pequena introdução ao que Totonho
pensa e argumenta.
O mundo e a Curva do U
As estradas retiraram o carro de boi da paisagem, no longo curso das
mercadorias; elas remarcaram o mundo das Alagoas, fincaram novos pontos,
partiram para a grande tirada de retas cortando os volteios, mas tentavam andar pelos velhos caminhos,
numa lógica onde, também, era ponderado o custo das desapropriações, dos
cortes, dos aterros. Nisto apagavam e acentuavam novos pontos. O velho Pau do
Descanso perdeu sentido nos caminhos de
São Miguel, mas por aqueles lados, a estrada introduziu um marco fantástico: a
Curva do U. Conheci uma senhora que me disse: “Meu fio, conheço pouco do mundo;
nunca fui pra lá da Curva do U”! Eu mesmo ficava esperando fascinado por ela,
para depois entrar em São Miguel, na parada que era dada no Bar do Manuí, tomar
um Guaraná Caçula, que a distância era grande, tornando perigoso um copão de
refrigerante.
A Curva do U sumiu e a estrada
verdadeira está escondida pelo asfalto. A Tia Júlia – irmã da Zezinha e da
Morena, todas três da Bananeira de Baixo
da Boca da Mata – quando vinha de São Miguel para Maceió, toda curva que
aparecia perguntava se era a do U!. Hoje, nem fiu. O Compadre Propício da Vitória
do Periperi conversava sobre a curva, o
perigo, a rampa, o tamanho. As estradas tinham pontos notáveis, parecendo que a
pressa aboliu a necessidade do Pau do Descanso, já não se escuta o caminhão
chorar na rampa, o esforço do Mark nas artes da primeira a puxar a carga.
Foi assim com o carro de boi, refeito pela tecnologia, pela velocidade,
pelo começo da construção mais enfática e densa de uma espécie de protótipo de
glocal. O carro de boi persiste como espécie de unidade de tempo, ligando-se ao
vagaroso, como se liga também ao bucólico da fantasia poética das recordações
saudosas. Há uma lógica maior, que muda a oportunidade para o carro de boi.
O trem e o boi
Tudo começa a se romper com a estrada de ferro, com a possibilidade do
vapor e, posteriormente, pela rede de estradas que refaz o entrelaçamento dos
locais no sertão. Isso vai encurtar o espaço para o carro de boi, mudando os hábitos, tudo sendo
refeito na base de muitos e muitos cavalos, desta feita a vapor e foi sendo
comum ver o caminhão, e ver a sopa (ainda alcancei) e depois o ônibus, o para
todos pingando gente por aqui e por ali. É interessante como Viotti, com razão, consegue estabelecer dois marcos em nossa
história: o carro de boi e a ferrovia.
A modernização quando acontece, afeta as redes de negócios,
especialmente quando a mudança mexe no tempo com as distâncias, pelo suceder de
velocidades pensadas em segundos. É como se estivéssemos a viver um rompimento
com o métrico das distâncias para pensarmos o tempo, como se ele suplantasse o
métrico em importância. O tempo que se leva é mais perguntado do que a
distância entre uma posição e outra no plano, os segundo mais habilitados para
informar do que os centímetros.
O som do carro de boi ficou menor; o seu sinal à distância. Ele se
anunciava como aquela espécie de cigarra navegante que foi sumindo, mas, quem
sabe, nem tudo aquilo que muda fora, muda com a mesma
velocidade dentro. Se a pessoa der um bordo pelas estradas sertanejas, será
impossível vê-los rodando pelo asfalto, mas quem sabe e com sorte, é possível
ver nas carroçáveis e as carroças – pegado a dica – bem que são concorrentes, pelo menor custo na
compra e na manutenção. Um eixo bem rodado e rodado com peso, não sendo de
madeira boa, num instante vai embora no
cantar do carro de boi.
O boi e a canga
E o boi vai aprendendo a obedecer ao
carreiro: a junta de coice, a junta da canga da frente, dando-se o sacrifício
de capar os bichos, cujos machinhos não funcionam e no que se evita muita
encrenca pelos caminhos. Mas isso não significa que o boi seja obrigatoriamente
dócil, existindo arengueiros e fazedores de confusão. A canga prende e
controla. O Padre Raphael Blateau na
edição de seu dicionário em 1712 assim anotava o significado da canga: “É um
pau grosso com faces, com o qual puxam os bois, para levarem o carro, com os
pescoços numa travessa, a que chamam Cangalhos”. Por extensão, cangalho seria
chamado no Brasil “os tristes negros, quando chegam de Angola doentes, e
esfaimados”. Era no cangalho, segundo o Reverendo, que se colocava a brocha
presa nos dentes.
Eram as chamadas brochas de boi, correia de couro torcida e tinha azelhas
nas pontas para serem amarradas à canga. Ficamos com a palavra cangalha, habilitante da vida rural
brasileira e de extrema importância na integração do tipo feita, por exemplo,
pelos tropeiros. A cangalha fica em cima
de uma esteira bem grossa feita com periperi para proteção ao lombo do animal,
extremada por dois cabeçotes que servem para fixação de apetrechos.
Meu Compadre Propício contava uma notável história e vale o devolteio
para contar. Uma ciganinha moça pediu para dar uma volta em cima de uma
cangalha na jumenta. A cigana velha deixou e ela foi serelepe; mas vai que a
jumenta se viu na frente de uma cobra e era popa para todo lado. A ciganinha
moça começou a rezar: “Valei-me Nossa Senhora”. A cigana velha vendo o
espetáculo gritava: “Reza minha filha! Reza, mas não esquece de segurar no
cabeçote da cangalha!”.
O carro de boi chegou e aliou aos poucos, mas a sua engenharia e a sua
mecânica são ibéricas e sem dúvida passa herança oriental. Ele se entranhou e
fez a colônia e boa parte do império; seria difícil pensar a colonização sem a
sua atividade de transporte levando, por exemplo, a cana do eito, a caixa do
açúcar para embarque, a família para as festas. As mudanças que vão
acontecendo, vão dando novos significados, novos usos, novos roteiros
cotidianos e quem rompe com o carro de boi é o motor. O carro foi modificando de uso, de posição nos laços
cotidianos e em alguns pontos, adotando uma indicação de raiz. Por exemplo, eles são proibidos de entrarem em Santana do
Ipanema. As rodas danificariam o asfalto e o andar lento poderia atrapalhar o
trânsito, mas existe uma festa em que o carro de boi é praticamente
entronizado, embora não mais rode pelas ruas da cidade. Ele não encontra a rua
de barro.
A conversa sensata de Totonho
Entrevista
Começando pelo começo
Tudo mudou depois que apareceu estrada, caminhão,
trator; hoje até para se plantar é na
máquina. Para colher, só feijão é que é na mão. De quarenta para trás, elas não existiam. Em 45 para cá abriu as
portas; aí chegou toda qualidade de maquinária. A máquina ficou no lugar da
enxada e a produção dobrou.
O arado hoje está pouco: muitos ainda usam, mas a
população que pode já tem seu tratorzinho para
recortar as terras e plantar. Hoje é quase só milho, feijão e milho.
Antes era mandioca, feijão, milho, algodão, de 45 para trás. O povo se segurou
nisso: criar gado, plantar milho para fazer silo, ração e daí por diante.
Quando apareceu de todo mundo criar mais gado, aumentou mais gado. Foi
encostando a mandioca lá para fora e algodão, porque de lá de fora vem tudo
para aqui, e daqui não chega mais em Santana, nem farinha feita daqui, nem
algodão dessa terra.
Para mim foram muitas as mudanças que aconteceram no
sertão, [...] todo mundo foi melhorando,
aumentou o criamento de gado, a plantação com trator fazia mais trabalho e mais
alguma coisa, o trabalhador tá muito caro e o feijão tá de graça, o milho tá
barato e a farinha não compensa plantar mais.
Desde que me entendo de gente, estou na agricultura. Agora minha renda de ter não foi da
agricultura; fui muito experiente, quando vim do Exército tinha uma
vacariazinha; aumentei, fiz uma fábrica de queijo, disso vivi muito tempo. Até
para me educar me facilitei, porque tinha uma rendazinha maior e pude ensinar
os meninos, pude ter minhas coisinhas mais tranquilo. Não preciso mais dizer
assim: “vou trabalhar na enxada bem cedo, para trabalhar até meio dia não”; ela
ficou encostada num canto que até esqueci.
Com essa renda
criei os filhos e hoje tenho alguma coisa. Antes tudo era na enxada. Quem me
levantou do chão foi Deus, mas uma roça de mandioca! Plantei quatro tarefas de
mandioca quando tinha dezoito; quando completei vinte anos fomos desmanchar e
deu novecentas e vinte cuias. Essa cuia
pesa sete quilos, repara quanto deu de
farinha. Eu comprei terra, comprei gado, comprei tudo e pude me levantar
ligeiro.
A terra valorizou muito de lá para cá. Antes era de graça, agora já tá meia cara.
Naquele tempo - era mil réis ainda -, acho que eram cinco mil réis, de graça.
Querem mil e duzentos cruzeiros por tarefa.
Porque teve produção, o povo pôde melhorar, arranjar mais coisa e o dinheiro cresceu. Quem
tirava leite de dez vacas, hoje tá tirando de trinta, quarenta e cresceu, não
foi? A renda do gado é pouca porque a ração é cara, mas ainda é o ramo que está
sustentando a pessoa do campo aqui nessa terra. Até o caminhão do meu menino - por
sinal faleceu que tá com três meses – com meu neto teve aqui com três mil e
seiscentos litros de leite, o caminhão passa carregado todo dia dessa região,
tem outro carro de outro vizinho pega também. Do que se está vivendo? Só do
leite.
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A igreja que Totonho construiu |
O leite e o queijo
Quando eu estava
com a fábrica de queijo ali, comecei a
botar o primeiro tijolo naquela igreja, mais a minha esposa que já faleceu. Em
1958 eu tinha a fábrica, de 60 para cá os meninos do caminhão passaram aqui na
porta comprando, aí pagava o leite no preço da fábrica, mas achava melhor
vender e receber o dinheiro do que fazer o queijo. Todo mundo foi viver do
leite.
Não tem muita
fabricação de queijo por aqui; havia na Batalha; aqui era pouco. Aqui na vizinhança fábrica de
queijo só tinha a minha. Depois que abri para vender o leite, todo mundo ficou
vendendo, fechou a fábrica e ficou só naquela região de Batalha.
O que era importante trabalhar na década de quarenta, já
disse: mandioca, feijão e milho; criação de animais soltos: ovelha, gado. A
roça era pequenininha, tudo era campo de se criar, todo mundo tinha sua vida
mais tranquila. Papai tinha umas trezentas cabeças de ovelha ali, tudo solta.
Eu mesmo passei a ter duzentas cabeças só minha.
O fim das ovelhas
As ovelhas se acabaram, porque passou a colônia a fazer
só roça e todo mundo teve que prender os
animais para ir viver de roça, aí o pequeno criador de ovelhas
acabou-se, e se não tinha terra foi um desmantelo para quem criava, mas quem
tinha terra continuou. Para o mais pobre foi pesado. Aí tinha uma família com
duzentas e tantas cabras e foi obrigada a vender tudinho, terminou esse povo,
como se diz, sem nada os coitados.
Tinha mais ovelhas. Era fácil de vender, o comprador
vinha para a porta da gente, comprava e levava o comboio tangendo para Santana.
Vendia para Santana, vendia para todo canto. Vendia para corte e para criar
também.
A carne de sol
Eu não posso dizer
como era Santana, por que gosto só de falar a verdade; sei que era
pequenininha. Eu sei por que ali onde é aquela praça, onde tinha seu Mário Oliveira ali e voltava
ali e tinha um velho chamado Pedro Chocho que era enjoado. Eu vendia as coisas
para a feira em Santana, ia no carro de boi para o mercado vender sacos de
farinha, sacos de feijão.
A carne de sol era “apregada” no pau lá e outro cá,
esticada. Matava quinta-feira, salgava na sexta e sábado ia vender. A carne de
sol era muito fácil, tinha uma mesa assim de quatro pés, bota a banda da
criação ali... Com a faca vai tirando a capa das costelas, tira as carnes
todinha e deixa só a ossadinha, aquela carne espalha e salga, no outro dia tira
do sal, e bota numa cordinha, com dois dias tá sequinha.
Eu não vendia carne de sol, vendia tudo vivo, os
marchantes preparavam. Eles preparavam a carne na casa deles em Santana. Aqui o
pessoal salgava para comer em casa. A carne dormiu na salmoura, bem cedo passou
uma aguinha para tirar metade do sal, botou na cordinha para enxugar no sol. De
noite já tinha um lugarzinho para guardar, se dormisse no sereno não ia
prestar; de noite os bichos comiam.
Mexendo com carro de boi
Isso eu comecei cedo, primeiro só estudava, já sabia ler
e escrever, tirar as contas e já tava bom. Naquele tempo, quem possuía quatro
bois no carro arrumado... Eu só queria desse de mamilo, grande e bonito. E o
galo cantava e daqui para Pão de Açúcar... Eu digo uma coisa... Toda
sexta-feira nós íamos para Santana carregar os carros de lã que já tinha,
chegava lã em Santana que não tinha quem vencesse.
Nós colocávamos aqueles fardos e íamos para Pão de
Açúcar; viajávamos sábado, domingo descansávamos, madrugada da segunda-feira
derrubava lá; já tinha as canoas cheias de sal, açúcar, querosene, bacalhau,
tudo para vir para Santana, mas não existia carro de boi suficiente para...
Tinha cinquenta, oitenta carros de bois por feira em Pão de Açúcar. Nós saímos
às vezes quinze, vinte carros só da região daqui, na estrada tudo carregadinho,
tudo era daqui de Santana. De Águas Belas para Ibateguara, tudo de carro de boi
vindo de onde? De Pão de Açúcar.
O caminho do São Francisco
Só chegava em Pão de Açúcar e tinha de voltar. Só ia para
Pão de Açúcar, para Piranhas nunca. Esse
centro de caatinga nossa, de 15 léguas para cá, de Águas Belas para cá tudo ia
para Pão de Açúcar. Era tanto carro que na hora de carregar era preciso ter
paciência; fila, o lugar de dormir já tinha. Onde o boi ia comer faziam
rancho; era onde a gente ficava, o boi ia comer de quem plantava pertinho;
quem ia com o carro carregado não podia levar carga de palma, levava um saco de
caroço. Era como se fosse posto de gasolina, a mesma coisa para abastecer.
Agora existia um negócio que ninguém acredita: o caroço de algodão era dado,
porque era tão barato que ninguém vendia. Meu pai dizia que antigamente tirava
a lã e queimava, acredita nisso?
Aonde tinha as palmas, cada qual armava a rede embaixo do
carro. No carro só ia uma pessoa; a fila podia ser como daqui para Santana, mas
era um atrás do outro. A gente tinha uns amigos bons; o rancho da gente era um,
aqueles que gostavam de tomar uma pituzinha, gostavam de carregar uma
mulherzinha no carro, esse povo que dá briga,
era em outro canto.
A
música do carro
O carro canta para o boi se alegrar e trabalhar; é o
entretimento, e os donos dos bois têm aquela alegria de ter aquela música.
Essas coisas foram feitas por Deus, não foi pelo homem. O carro de boi do jeito
que é pesado e dormente para andar por lama, por tudo, não tivesse o
entretimento de cantar não dava nem prazer. Ai quando juntava dois, um cantava
na corda fina e outro na corda grossa; era bonito demais. Terça-feira de noite,
quarta de manhãzinha naquela região começava acolá, a gente ouvia daqui trinta,
quarenta carros cantando de madrugada até chegar em Santana. E chegando no
armazém só descarregava quando descarregasse o de fulano, você tinha que
aguardar sua vez.
Sempre ia ter uma malinha de couro, levava a roupa, uma
moringa de sola cheinha d’água que não esquenta, a rede de dormir, uns dormiam
no chão da esteira. Tinha gente que gostava de uma cachacinha e só ficavam os
tortos, os certos passavam... Levava rapadura, queijo, café para tomar e fazer
onde quisesse, levava tudo. Eram cargas daqui para Mata Grande, era algodão da
Mata Grande, da Maravilha... Carregava para Pão de Açúcar.
A
vida e o amor
Comecei com quatorze anos, quando saí da escola, com
dezoito já tinha quatro meus e aí fiquei até vinte e dois anos, fui para o
Exército, passei três anos. Deixei um primo com quatro bois quando cheguei ele
já tinha um caminhão. O carro de boi foi tudo, ainda é. Quando vim do Exército
cheguei com umas condições e comecei a
trabalhar mais. Deus me deu uma mulher com quem vivi sessenta e um anos e três
meses; no mundo não teve uma mulher mais educada, mais trabalhadora, mais...
Comprei um carro como um desse aí que
comprei quando ela adoeceu, peguei dois carros e dei nesse e ainda dei mais
vinte contos a mais só para ela não sofrer.
Ela sofria porque era o jeito, foi um erro. Ela gastou
oito meses para sarar. Quando sarou que ficou boa, cadê andar? A outra perna não
aguentava mais o corpo; eu botava ela nesse carro e eu ia para onde ela queria,
na casa de um vizinho, na casa de um amigo em Santana. Eu fazia os gostos dela,
até que foi, foi, foi... Morreu. Não quis mais casar, já tava com oitenta e
poucos anos, peguei o que tinha aqui e dei aos filhos, cada um tá com o seu e
eu já sou morador deles. Fui soldado, fui fiscal da prefeitura, fui vereador,
fui essas coisas, mas não quis ser político. Também não perdi um amigo na
política não; ao adversário eu dizia: vai fazer seu palanque, só tem uma coisa,
não fale do outro, se falar apago a luz. Quem botou essa luz aqui fui eu.
Trazia o que tivesse pronto por lá em Pão de Açúcar;
carga de arroz é uma carga boa porque é enxutinha, se pegasse de açúcar no
inverno era uma melação dos diabos. Eu já sabia, minha carradinha já estava
certa lá, dizia: de hoje a oito guarde tanto para mim. A gente chegava lá de
manhãzinha, descarregava, depois carregava e ia dormir no riacho Farias. Os
comerciantes de Santana iam comprar em Pão de Açúcar a cavalo e a gente em
carro de boi. Acredita que os homens carregavam um saco embaixo do braço, outro
na cabeça e outro assim? Tiravam da canoa três sacos e iam levar onde o carro
de boi estava. Hoje carregam sessenta quilos se acabando. Tudo era descarregado no berço da água do
rio, descarregava a lã no armazém e do armazém ia para a canoa.
Para mim foi bom porque ganhava alguma coisa. Em todo
canto fui bem na minha vida, até no Exército me dei bem. Cheguei como recruta
no meio de cinqüenta, com três dias já era um dos melhores, por sinal fiz o
curso de telemetrista que marca um tiro de um quilômetro daqui a três mil
quilômetros dentro do mar, fiz por causa de que? Tinha um caminhão que chegou
carregado de lenha para rachar; o capitão escolheu três homens e botou lá, era
umas oito e pouca, quando foi dez e meia chegou lá. Eu estava de calção, tinha
feito um monte de lenha danado e os outros um tiquinho; perguntou: “o que foi
isso Damaceno?”.Eu experiente do campo pegava a madeira que tem o linho certo,
sabe o que é linho certo? É a madeira que racha, olhava na cabeça do pau,
escolhendo. Os outros que não tinham experiência do campo iam se bater com
qualquer alinheiro, mas era acochado. Fiz o curso de telemetrista, passei e
fiquei ganhando bem, nunca mais peguei num revólver.
O tabelião recebeu a ordem do chefão que mandava convocar
o povo. Quem nasceu em 1921? Ele catava assim e só era botar a carta no Correio
que entregava a gente. A gente lia e dentro de oito dias tinha que se
apresentar lá, se não fosse ia preso. Fui de caminhão que veio pegar, em Mata
Grande saíram uns dez, de Santana saíram uns vinte. Quando chegamos em Maceió
já estava o quartel esperando a gente. Nós passamos vinte e tantos dias
dormindo no cimento. Vinte e três homens dormindo num cimento desse... Dormimos
quase um mês com a roupa que levamos, a forra era o cimento e quem cobria o
rosto era o chapéu. Tanto tinha que o quartel não cabia, tinha a lotação do
Exército toda, os recrutas que tinha recebido farda e tinha os paisanos que
chegavam e ficava esperando que chegasse farda. Com esses dias todinho foi que
chegou um pedido para ir para Recife e formos. Como eu já tinha um estudo
melhorzinho me tiravam para uma coisa e outra, depois fiz o curso de
telemetrista e quando passei fiquei só sendo especialista naquele trabalho.
Fiquei onze meses em Fernando de Noronha.
Santana
do Ipanema e Lampião
Depois que a guerra acabou e que fizeram pista, aí todo
mundo foi para Santana. Santana estava crescendo com o homem do campo que com
medo de Lampião ia morar em Santana, cada qual procurava seu ramo de negócio.
Seu Marinho Oliveira, pai de doutor Rodolfo, plantava mandioca daqui a oito
quilômetros, vivia de roça mais o Seu Zé Oliveira, mas com medo de Lampião
correram para Santana. Vendeu as coisas e começou um mercadozinho, naquele
tempo era um bodeguinha que se chamava, depois foi chegando esse povo mais
novo, o pai desses meninos. Começaram a repartir aquela feira, Santana foi
crescendo, depois chegou o caminhão e as estradas para todo canto. O meu queijo
ia para Garanhuns, o rapaz vinha me comprar. Santana tinha mercado, mas todo
mundo fazia, era muito fácil. Eu ia para Santana e pegava o caminhão do queijo
e ia bater em Garanhuns.
Os
velhos carreiros
Era gente de todo canto; a Aldeia é daqui a cinco
quilômetros, Cabaceira a três, Batatau é perto do Campo da Aviação, Olho D’água
da Cruz é aqui entre Olho D’água das Flores e Riacho Grande; Sucupira já é
igual ao meio da estrada das Flores para Santana, Salobro é daqui a cinco
quilômetros. Plínio Rita, Afonso Novo, Zé Novo, Pedro Novo Filho. Plínio Rita
era noivo da filha dele e eu também. Nós saiamos juntinhos e chegávamos
juntinhos. Era uma turma, a gente já tinha o lugar certo de dormir, nunca deu
briga. Os cachaceiros brigavam, os bois deles sofriam, passavam da hora de
comer, ficavam encangados, não soltavam os bichinhos para botar para
caminharem. Os patrões quando sabiam tiravam aquele carreiro e botavam outro.
Enquanto os bois comiam, o fogo já estava aceso e a carne de sol já estava
assando de manhã, com um queijo de manteiga bom nós enchíamos a barriguinha e tocávamos para frente.
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