quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

[HISTÓRIA: MEMÓRIA: MACEIÓ] BARROS, Luiz Nogueira. Prazer em conhecê-la, Maceió!






 Esta matéria foi publicada no tablóide Contexto, jornal Tribuna Independente, Maceió em 4/12/2011


[HISTÓRIA E MEMÓRIA] 

Um pequeno bilhete sobre memória


Nogueira é um bom memorialista e tem  uma grande capacidade de construir cenários. É conhecido por seus livros, atuação cultural e política; portanto, não necessita de apresentação. A mesma condição é lançada para o Professor José Medeiros que devotou sua vida à medicina, à política,  à educação e à cultura. Pertencem a uma geração de intelectuais que tem muito a dizer sobre Alagoas. Um deles (o Nogueira)  é do agreste e o outro (O Medeiros) da beira do São Francisco.
 Contexto pediu para que Luiz Nogueira escrevesse  um pequeno  texto, trazendo suas notícias sobre a transição de um adolescente, saindo de uma cidade do sertão (Santana do Ipanema) para tomar os ares da Capital e começar a construir ourea etapa de vida.  A trajetória de Medeiros foi diferente, saindo do Baixo São Francisco para fazer-se em Maceíó. Em que pontos os dois se encontram para deixarem marcas claras na vida de Alagoas?  Sabemos apenas que se encontram, justamente, por terem deixado as marcas e isso é fundamental.
Eles revivem a própria Alagoas quando falam de suas vidas e é interessante ver como a recordação renova os tempos. E ela é tão importante, que Contexto vai deixá-la livre para que ela nos traga um pedaço das lembranças de dois amigos e homens públicos de nossa terra.
Sávio de Almeida



Prazer em conhecê-la, Maceió!
Luiz Nogueira Barros


           A viagem

            O canto, aquele silvo retilíneo com que as cigarras cortam as tardes sejam de inverno, ou de verão, com um som estridente, algumas variações de intensidade, chegavam a doer nos meus ouvidos. Aquilo parecia queixumes e inspirava saudades, devaneios e perdições em minhas lembranças.
            As cigarras estão em minha vida desde os mais tenros anos. Cantavam nos coqueiros na Fazendo dos Coqueiros, do seu Joel Marques, ou nas terras do seu Nôzinho Falcão, onde os pés de cajarana, as Cajaraneiras, deixavam escorrer, das suas cascas, um líquido pegajoso, que ia se depositando em seus troncos, de cor amarelo-queimado, formando cascatas, e que o meu pai costumava pegar, dissolver em álcool e fazer colar para colar papel.
            Saí de Santana do Ipanema nos idos de 50, mês de julho, em direção de Palmeira dos Índios, com meu amigo Nivaldo Cantuária e do seu pai. Dalí seguimos para Maceió no velho trem da Great Westerm.. Em minhas lembranças a neta de escravos, Téo, a velha empregada que eu jamais esqueceria, acesa nas minhas lembranças, nas minhas insônias e histórias que me contava nas minhas fugas noturnas para o seu quarto, cachimbo na boca, envelhecida, com ares de sacerdotisa, e um olhar sereno e seguro, parecia rir.
            As lembranças da tragédia política de Mata Grande, com os Maltas, no Governo Silvestre Péricles, 1950, também me acompanharam em função da minha amizade com alguns colegas de parte da família que residia em Santana do Ipanema.

            A mata

            A Mata, foi me permitindo sentir o choque das suas vicissitudes ante a aspereza da vegetação sertaneja. Nas curvas e nas proximidades das estações o longo silvo, seguido de uma fumaça, da velha máquina movida por uma caldeira de lenha, que queimava e cujo fogo era abrasador, me fazia pensar numa cigarra gigante, uma cigarra de ferro, acordando tudo por onde passava. Nas estações, as pessoas vendendo de tudo: tapioca, milho cozido, cocadas, pirulitos, frutas, galinhas e tantas outras coisas que já esqueci.. Uma festa.
            Final de tarde e meu pai nos esperava na velha Rede Ferroviária. Na plataforma, alguns cumprimentos e seguimos para a minha casa, Rua Comendador Leão, numa espécie de sítio, ampla, descuidada, pintada de cor lilás, telhados aparentes e rodeada por varandas. E os abraços de minha mãe, sempre séria e gentil. E a falsa impressão de que meus irmãos haviam crescido.. Na manhã seguinte o Colégio Guido, com todos os documentos trazidos do velho Ginásio Santana. Eu e Nivaldo fomos matriculados. Ele ficaria morando conosco, uma retribuição ao que o velho Cantuária havia feito comigo quando da vinda dos meus pais para Maceió.    
                 
            A matrícula no Colégio 

            Vi o Farol, defronte ao Colégio Guido, inclinado, não mais fitando o mar para avisar aos lobos do mar, os comandantes de navios, a proximidade de terras. Tudo havia acontecido um pouco antes da minha chegada, numa noite de chuvas intensas. O velho Farol, inclinado, olhava para os estragos nas falésias, formações que indicariam, um dia, as águas do mar por ali estiveram, numa clara diferença de que as ribanceiras são condizentes com as presenças das águas dos rios e lagoas.
            O Barão de Atalaia havia construído, na garganta que liva a Rua do comércio ao edifício da Assembléia Legislativa, um sobrado com vistas para o mar e ali hospedara D. Pedro II, em sua viagem a Alagoas, e no futuro seria sede da Confederação Geral dos Trabalhadores, por volta dos anos 60, com episódios que antecederam o Movimento Militar de 1964. O Barão casaria com uma irmã do Visconde de Sinimbu, D. Maria Vieria. O Barão de Jaraguá, seu desafeto político, construiria outro sobrado, mais adiante, tapando-lhe parte da visão para o mar, e onde funcionariam as futuras instalações do Arquivo e  Biblioteca, estaduais.
            Depois me chegaram notícias de mortes e destruição de casas. Dia seguinte, ao deixar o colégio, passei na rua e vi as cenas de destruição E o mais notável: Drª Maria Vitória, “Vitorinha”, Assim tratada pelos colegas do seu tempo, havia acabado de sair para atender a uma parturiente, escapando da tragédia que também invadira sua casa. Dra Vitória, tal Drª Nise da Silveira, foram duas lendas da medicina, em Alagoas, tempo no qual as mulheres se iniciavam na arte praticamente reservada aos homens.      
  
            Um besouro de ferro

            Aquele besouro imenso, o Bonde Elétrico, correndo sobre trilhos de aço, ou de ferro, barulhento, com uma bengala atrelada ao fio, e de onde , por vezes, saíam centelhas de fogo. Aberto, a brisa correndo em nossas faces, tornava a viagem uma aventura. Enfim, eu conheceria a Rua do Comércio, decantada em prosa e versos pelo meu pai, fazendo-me apresentações, loquaz e feliz. Estranha preocupação do meu pai ao me mostrar um prédio na subida de uma ladeira, com o nome de Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Belo prédio, e não entendi seu entusiasmo, até que ele me falou:
            -Aqui reúnem-se os homens mais importantes da cultura alagoana. Estou lhe dizendo isso porque você adora os livros.
            E seguimos, num percurso que tomou a nossa manhã. Anos depois, aos 60 anos, tornei-me sócio da entidade que meu pai tanto admirava. Ele havia completado o curso primário que, no seu tempo,  equivalia ao ginasial e colegial, permitindo acesso ao nível superior. Alguns dos seus livros, guardados a sete chaves, cheguei a aproveitar. Relutou muito em me permitir que também ficasse com o livro de Alan Kardec, espírita que ele adotava, em seus silêncios e que um dia gerou diálogo grosseiro, entre nós dois:
            -Pois bem: um dia você estará lendo esse livro, eu estarei morto, mas escreverei meu nome numa dessas páginas. Felizmente, jamais fez isso, até o momento em que transcrevo tal lembrança.

        A cidade sendo olhada

            O passeio continuou. Um imenso relógio, O Relógio Oficial, que permitia avistássemos as horas de alguma distância, no encontro das Rua do Comércio e da Rua do Livramento, tinha a magia do tempo presa em seus enormes ponteiros. Fascinava pelo tamanho.
            A Catedral Metropolitana, imponente e sobranceira, com quatro janelas, em suas torres, de onde se via toda a cidade, guardava as recordações da visita do Imperador Pedro II que, por razões diversas jamais foi oficializada, transformada, em Templo Imperial, numa Alagoas cuja maior importância, para a época, era a Cachoeira de Paulo Afonso, verdadeiro motivo da viagem do Imperador, de grandes lembranças, Pedro II.
            O edifício onde funcionava a Assembléia Legislativa Estadual, na qual se debatiam forças políticas egressas das mais variadas correntes políticas formadas com mais rigor entre os anos 30 e 50, lembrava as construções ee Versalhes. Defronte a esse parlamento uma pracinha com o busto de D. Pedro II e uma espécie de piscina, redonda, em torno da qual muitos de nós, Herman Baeta, Hamilton Carneiro, Orlando Lessa e tantos outros nos reuníamos impregnados de preocupações políticas e culturais, nas noites, enquanto o mundo aguardava nossas reflexões e decisões para salvar o mundo.
           
            Os livros

            Sempre apreciei os livros. Tudo havia começado com Castro Alves, o poeta dos escravos, e nunca mais parei de ler. Natural, que a velha Livraria José de Alencar me despertasse imensa curiosidade. Ali, com o passar dos anos, vi e admirei as figuras de intelectuais que transitavam e discutiam temas que eu ouvia atentamente. Mais adiante, já no curso colegial, no Liceu Alagoano, colégio público e compatível com a minha nova realidade, em face das razões de dinheiro e saúde do meu pai, conheci intelectuais que cujas palavras eram ouvidas atentamente. Algumas vezes, ousei me inserir em alguns contextos dos temas discutidos. No mínimo, e era muito, obtive risos descontraídos e aquiescências, nos meus raciocínios, daqueles senhores que mais me pareciam divindades. Mas de algum, sempre ouvindo a observação: tem muito mais coisa, mas você chegará lá. Muitos deles foram meus professores, num tempo no qual, diziam, ser melhor que o ensino particular.
            Durante anos o bonde elétrico foi meu transporte regular. E também um trapézio, daqueles que eu via nos circos do interior, e no qual aprendi a tomá-lo e descer em movimento, tais, os malabaristas, fugindo do cobrador, molecagem para economizar alguns centavos.

            O mar

            O esperado mar, das informações sobre ondas capazes de virar um navio, qualquer que fosse tamanho. E o sabor da água salgada, que os mais velhos informavam também ser medicinal. Na vinda para o Colégio Guido eu o havia visto, imponente, colossal, e na curva do infinito separava-se do céu, num misterioso encantamento geométrico. Mas, logo mais, era estar diante dele, dentro dele, mesmo, correr sobre suas areias alvas e comprovar se, de fato, cantantes ante o peso dos nossos passos de contentamento, de alegria. Ensaiei pisar de leve, correndo, ouvidos atentos, esperando o tal ranger cantante daquelas areias brancas. Preferi ouvir o ranger cantante daquelas areias. Fiquei satisfeito e seria mais um a alardear que as areias cantavam ante o peso dos nossos passos. Naquele mar, com a renúncia de Pedro I, nacionalistas alagoanos, brasileiros, solicitaram que os portugueses, colonizadores, saíssem de Alagoas. E na fuga para os navios, as areias ficaram cheias de sapatos, dentaduras, perucas e tantos outros objetos. O português José Martins, possível fundador de Maceió, “que nasceu espúria e sem assentamento autorizado...”, segundo Craveiro Costa, foi encontrado morto, no Altar da Virgem, na Igreja Nossa Senhora Mãe do Povo, em Jaraguá, talvez não podendo fugir para a capital federal..
            Os revoltosos haviam lançado um manifesto ao Visconde da Praia Grande, Presidente da Província, sobre tal exigência.
            Mais adiante passaria a morar na Avenida, ao lado velho Hotel Atlântico, imponente construção capaz de encantar o mais humilde dos olhares atentos. E logo soube se tratar do Solar dos Miranda, Hotel Atlântico, uma família cujos membros mais influentes professavam uma ideologia socialista, algo sobre que minhas leituras ainda nada haviam anotado. Somente viria a conhecer Jaime Miranda já cursando o quinto ano da Faculdade de Medicina.
            Tudo era diferente. As famílias que ali moravam eram consideradas ricas. Boa parte de grandes comerciantes. Ou de profissionais liberais bem sucedidos. Meu pai ainda não havia sofrido as perdas econômicas que marcaram sua vida, Nem as doenças que o invalidaram, levando-o a uma aposentadoria precoce. Terminei por ir morar na Rua Quintino Bocaiúva, um nome feio, no bairro Ponta da Terra, enlameada, estreita, Depois, para minha surpresa, Quintino Bocaiúva, viria saber, tratar-se de figura notável do Império e logo da República.
            Na Avenida, conheci um grupo dos meninos ricos de Maceió. Herdeiros dos grandes comerciantes e profissionais liberais. Ou então de famílias mais tradicionais, remanescentes da Monarquia, ainda  deslumbrados com títulos já superados pelos tempos.
            Uma enorme casa, espécie de Solar dos Mascarenhas, não chamava a nossa atenção apenas por suas dimensões de frente. Era que, no passado, havia sido ponto de encontro de intelectuais de todos os níveis. Raquel de Queroz, José Lins do Rego, Téo Brandão, Armando Wucherer, Valdemar de Oliveira e tantos outros, ali haviam criado um universo de intelectuais.
            Para nós, os meninos, o solar era a sede de um time de futebol, o Avenida Esporte Clube, no sótão que ficava no fundo construção. Joubert Mascarenhas, filho mais velho dos Mascarenhas era o seu presidente. Guardei, durante anos, fotos que, ao emprestá-las jamais as tive volta. Mas lembro, e muito bem, de algumas nas quais aparecem pelo menos dois destaques: Paulo Mascarenhas, que terminou se tornando coronel do Exército, e Nilton Rodrigues, tornado general, com o tempo. Joubert Mascarenhas, após o Centro Metalúrgico, no comércio de Maceió, tornou-se proprietário e fundador-representante da FYAT, com o nome MAVEL. Farol
            Mas, na Avenida, um time, de adultos, pontificou durante anos, dirigido pelos irmãos Perreli, comerciantes de calçados, no comércio de Maceió. O time reunia o que mais de mais destacado social e economicamente havia naquela província dos anos 50/60. Seu oponente, em jogos duríssimos era o Demolidor Esporte Clube, originário do Prado, Ouricuri e Trapiche da Barra, bairros considerados de pobres e de classe média. As partidas de futebol eram consideradas touradas, literalmente.
            E ali estava o mar colonizado: dos Lusíadas, de Camões. O mar doloroso: dos escravos, dos navios negreiros, o mar cantado em versos por Castro Alves. E sobranceiro, altivo, o Solar do Barão de Penedo, com ares de Monarquia. Do outro lado a Sociedade Fênix Alagoana, de boa parte das elites alagoanas. Saliente-se, de grande importância sobre os destinos de Maceió.

            Jaraguá

            Do cheiro de mel que os caminhões tanques derramavam sobre ao paralelepipedos antigos, em direção do velho Caís do porto construído por contingências da Segunda Grande Guerra Mundial. Dali o mel seguia para portos distantes de Maceió, impregnando todo o bairro com seu cheiro delicioso. O edifício da Associação Comercial, lembrando os palácios de Versalhes.
            E as “zonas”, o dito “baixo-meretrício”, o que sempre me fez imaginar existir, também, um “alto-meretrício”, mas onde, sempre me indagava. O nome Alhambra, bonito e aconchegante, num sobrado, reunia as prostitutas mais caras e mais bem desembaraçadas, bem perfumadas e vestidas com certo apuro. Tomava-se Wisky. O salão de dança era um tanto respeitoso. Outros sobradões tinham o mesmo expediente da Alhambra.
            Histórias de moças lindas, enganadas, traídas, mais das vezes forçadas a fugirem de casa por conta de uma moral antiga que apenas reservava as virgens para o casamento na Igreja Católica, povoavam as mentes dos sedutores que adoravam os mistérios que cercavam muitas daquelas jovens e muitas vezes belas prostitutas, bastava lhe conhecêssemos um pouquinho, nas horas de recordações e tristezas.          Lá na frente, o Duque de Caxias, com ruelas, becos, favelado, bares abertos e cadeiras expostas, com prostitutas menos requintadas, freqüentadores brigões e que mais facilmente se embriagavam, vez que o custo da cachaça era bem menor
            Meu próximo destino foi a mudança para o Prado, Rua Siqueira Campos, um tenente revolucionário de 1922, cuja vida terminaria de modo trágico, num acidente aéreo.
             
            O olhar de hoje

            Ultrapassados os setenta e cinco anos, as cigarras ainda povoam minhas manhãs e minhas tardes, aqui no tabuleiro. São as mesmas da infância: o mesmo canto triste, uma seta contra o infinito, numa viagem que jamais terminará.
            Quantas vezes, terminado o curso de Medicina, acordei aflito pensando haver perdido alguma aula. E corria para a velha sede do antigo Exército, aquele mesmo que havia participado da Segunda Grande Guerra Mundial, cedendo efetivos que voltaram contando histórias fantásticas dos seus feitos. E sempre me lembra de Zé filho, expedicionário que andou pela Itália e, que, ao voltar a Santana do Ipanema fundou um cinema. E quantos filmes americanos, nos trouxeram, com seu heróis longínquos, mas nem tanto para que não criassem uma onda de meninos que terminavam por imitar, nas suas brincadeiras, aqueles heróis, bem diferentes das nossas intimidades, fosse o policial, o delegado, o juiz, o jogador de futebol, uma prostituta que se tornasse referência para o nosso desabrochar sexual, fosse o carreiro, aquele homem que passava, num carro-de-boi gritando pelo nomes deles, sempre bonitos. Agora, os cinemas eram muitos, Cinearte, Plaza, Ideal, Royal, Lux e, provavelmente, mais alguns cujos nomes já me fogem da lembrança.
            Mas as cigarras são as mesmas da infância e juventude. E até me induzem ao sono, fazendo que eu não sinta diferença entre o por e o nascer do sol, tendo a noite apenas como um intervalo, no qual a mansidão das brisas e da lua apascentam uma velhice que parece uma surpresa não sonhada. E uma velha frase me desfaz em devaneios, pronunciada silenciosamente, um dia, na juventude: prazer em conhecê-la, Maceió! E tantos anos de felicidade...





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