quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

[HISTÓRIA E MEMÓRIA] Luiz Sávio de. Rua da Penha: vedetes, política e costumes Rua da Penha:








Esta matéria foi publicada na coluna Espaço de O Jornal, Maceió, na edição de 23 de janeiro de 2010.







Seguimos com Penedo, recordando. Pelo menos, diverte e fica um pequeno depoimento sobre a Rua da Penha e seus mundos na transição dos 40 para os 50. Penedo era muito grande para viver na minha cabeça, mas a Rua da Penha era um universo legal. Não digo que estou fazendo uma história cultural ou dos costumes. Estou apenas recordando e nisso aparece muita coisa que dormiria oculta, nomes que se acabariam sumindo como se o tempo fosse volátil.




Cada um tem no seu espírito as suas recordações, classificadas, arranjadas, superpostas,  as mais recentes por cima, as mais antigas por baixo, numa ordem admirável, que apenas ligeiramente é perturbada pelo decurso de um grande 
tempo, suprimindo-se algumas lembranças ou deslocando-se outras. Basta, porém, 
que uma causa desperte a adormecida reminiscência, para que venha por assim 
dizer, à tona do espírito a mais antiga imagem do passado. Esta causa pode ser qualquer,  
uma harmonia que se ouviu outrora e que novamente se ouve, um lugar por  

onde algum dia, passou-se e que se torna a ver, um painel, uma voz, uma fisionomia,  

um aspecto... que lembram-nos pela semelhança ou pelo contraste um aspecto,  
uma fisionomia, um painel que noutro tempo nos impressionaram.







Raul Pompeia em um conto: A andorinha da Torre


A rua: a comida e o tempo
                                                                                               



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O fundador da Padaria Pilar: Luiz da Fonseca Oliveira
Pilar era a marca (massa) que ficou na minha cabeça, empresa que data de 1875, de história familiar e que a partir da década de 30 fabricava macarrão. A ela associo o biscoito que eu comia com leite e costumo fazer isso ainda hoje. O biscoito   Maria tem nome de quem? Quem foi essa Maria que todo mundo come? Será que foi mesmo criado em 1874 em homenagem a uma Duquesa chamada Maria Alexandrovc, conforme andei lendo não sei onde? Se for, a Duquesa virou bolacha que em todo canto se acha. O que marca o Biscoito Maria, para mim, é o tom do gosto da baunilha. O Maisena já é mais ácido, sei lá, algo cítrico, aquele retângulo quem sabe   rombudo. Além do mais, aquele redondinho ilustrado da Maria, bom de pegar para dar a dentada o faz favorito entre os biscoiteiros ou será o Maisena? Apessoa que tinha cara redonda, a gente chamava de Bolacha Maria. 


 Sexta-feira eu me espalhava, pois era dia de peixe, e ele aparecia de várias maneiras e vezes na figura de um surubim. Piranha, lembro lindas... Hoje surubim está sumido do rio.                       
                                                      



As piranhas  também andam  umidas; eu era proibido de tomar banho no rio por causa delas; hoje, caio dentro e fico deitado sem o menor  sobrosso e nem  nado apenas de costas, como era altamente aconselhável. O rio teve suas  desilusões e nisso levou seus peixes. Piranha ainda se pega e vez em quando numa lagoa, ela entra no cuvu e faz algum estrago. Não acabaram, mas deixaram de ser a fera do rio, que ainda guarda nas suas águas este ser quase mitológico e de insidiosa vida.


A piranha e o cuvu


O Nei Lopes considera que o cuvu é um nome bantu, quicongo Kivu. O termo se encontra em palavras compostas mas não ligadas à pesca no "Diccionario da Língua Bunda ou Angolense explicada na Portuguesa e Latina composto por Frei Bernardo Maria de Cannecattim", publicado em Lisboa pela Impressão Régia (M.DCCCIV) e também aparece no "A comparative Grammar of south african languages" de 1869 e ali é ligado à água pois se relaciona a qualquer coisa como hipopótamo. 


 Mas o que importa mesmo é a beleza da pesca do cuvu e o perigo; ele é um cone; uma espécie de haste é presa nos aros e ultrapassa o último, que é justamente a parte que vai ser enfiada no lamoso. Na parte de cima, tem uma abertura e a pessoa enfia a mão para pegar o peixe, no que pode ter a grande surpresa da piranha e ela pode também estar na água ao derredor. Arranca facilmente o naco da batata da perna. O caldo de piranha dizem que é bom para retornar as ardências pessoais.


A culinária e o senso de pedir


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A traíra
Nunca fui muito amigo de pirão  de peixe; sempre fui mais partidário do frito; eu me deslumbrava mesmo 

era com o bacalhau, que naquele 

tempo ainda era bom; ele ia para 

mesa de formas diferentes: a melhor 
era assado na brasa, feitas iscas, temperado 
com um vinagrete onde o 
cheiro verde predominava.  Minha 
mãe que era chegada à pimenta, fazia 
um molho à parte e vamos lá. Minha  
mãe me fez ficar com mania de 
pimenta. O usual era tirar o caldo do 
feijão, amassar uma, e lá vai fumaça. 


A alta culinária portuguesa conheceria 
de tal mistura, pelo nome de  

molho de pobre e de tal pobreza dão 

conta duas receitas de Lucas Rigaud,  
em seu livro de algumas edições, a 
mais antiga que conheço sendo de  
1785. 
A de 1826 já era a quinta edição,  sinal do sucesso de um dos mestres 
da  cozinha de sua majestade. Ele dá a 

receita do que chama de molho de 
pobre: "Deitem em uma tijela, ou em 
uma salseira, cebolinha picada, sal,  
pimenta e água, e sirva-se frio.". Era  
mais ou menos exatamente isso.  
Parece contudo, que o exercício de 
minha mãe era mais inteligente, pela  s
ubstituição da água e eu devo considerar 
que brigatoriamente todo
peixe pede pimenta. O rei de todos  

os peixes é a traíra, mas é preciso 

saber, ter ciência. 
      Tinha razão a minha mãe; como tinha  razão Guiomar  
quando dizia  

que fava pede somente água e sal.   



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Criei inúmeras piabas.

Maria José da Capela encontrava-se com a Guiomar no meio do caminho 
entre Boca da Mata e Anadia e se 
encontrava também com a Zezinha 

da Bananeira de Baixo, louca por um 

peixe fosse qual fosse, podendo até 
ser cospe-cospe e adepta da pimenta. Viesse piaba, cará o que fosse, Zezinha (mãe da Guió) traçava com gosto e, da excelência dos seus conhecimentos saía uma máxima culinária: "Teve um olho, dá um molho!". Eu não gosto de cospe-cospe a não ser bem seco, como a piaba. 


          Já criei cinco traíras e adorava ficar vendo o comportamento delas: passava horas sumido do mundo, em companhia da Chica, mais ou menos de palmo. Fiz uma toca para ela, um cantinho escuro e bonitinho. Chica enfiava o corpo e a cabecinha ficava de fora como se fosse uma enguia e acho que as duas se simpatizam. Aí, lá vinha uma piaba toda fagueira: frescava daqui, rodopiava dali e passou dentro da área de operação da Chica, que traíra não gosta de sair para estar pescando especialmente na água clara, por isso é que em alguns cantos se faz a minjuada. O bote era rápido, espantoso, sem ao menos a piaba anônima perceber. Chica era traíra.



A Rua da Penha e o Hermes Trismegistrus


Hermes

  Era o pedir, aquilo que presidia a  cozinha de Maria José de Almeida, 
intuitiva e capaz de proezas. O pedir 
exige atenção e uma escrita. Existe 
um discurso limitado no termo gastronomia 
e amplo em cozinha e 
culinária. Considere-se que o discurso 
culinário ultrapassa o alimento 
e cria a comida e, nessa construção, a 

regra do pedir é essencial para que - 

vou ousar a construção de uma 
imagem - a condição alquímica se 
concretize e deixe de ser apenas uma 
aspiração de Hermes Trismegistrus.



 Continuando a ordem da imagem,  na cozinha lá de casa havia uma 
espécie de Corpus Hermeticum 

legível pela intuição ou pela arte do 

saber o que se pede: vencíamos as 

coisas sutis e penetrávamos no sólido, 

como está escrito na Tábua de 
Esmeralda, texto atribuído a um ser  
que detinha as três partes da filosofia 
universal.

          É este saber pedir, que levou  Darcy Ribeiro a uma comparação 

aparentemente esdrúxula ao falar em  

culinária francesa e imediatamente  
compor sobre a  apacidade do caboclo  
produzir sucos. Há relação entre  
o saber pedir e o ambiente, sinal  
inequívoco de que a cultura se 
escreve em tempo e lugar definido,  
coisa antiga e por demais dita, mas 
necessária de ser recordada vez e 
quando, para reafirmar a importância 
do local. Por exemplo, a impotência 
pediu caldo, o caldo pediu piranha, 
a piranha pediu o cozinheiro, o 
cozinheiro fez uma nova piranha que 

jamais seria a mesma piranha do rio e 

agora, alquimicamente, era a habilitadora  
de sexo humano. Há sempre 
uma necessidade que pede, como a 
fava somente pede sal e farinha.


A fundante da tradição culinária

                                                                                                                                      trekearth.com

Rio São Francisco
 É claro que se pode partir para uma série de regras implícitas no pedir da culinária, da mesa da casa naquela rua de Penedo. Em primeiro lugar, quanto mais existir, quando mais será pedido; jamais a cozinha de Penedo poderia deixar de ser cozinha de rio, justamente por Penedo ser um rio;  então, no fundo, quanto mais particular mais expressa o rio; em segundo lugar, quanto mais experimentada mais seria usada ou não, sendo uma comida que fica, aquela que permanece, um resultado do tempo.

memo.fr
Levy Strauss








Bastam esses elementos para que se tenha a culinária como história, um processo que se desenvolve e, portanto, a mesa da Penha era extraordinariamente complexa. Numa mesa cabe o mundo e, então, seriam necessários diversos mundos para habilitar a da Rua da Penha: um universo em cada particular. Estamos diante do que poderíamos chamar de micro-cozinha, existindo a macrocozinha penedense, com seu saber de excelência sobre o rio, mas esta não nos interessa aqui. Estava a intuição da Maria José, a maitre, a que sabia fazer e que sabia dizer se estava bom, se a cozinheira prestava ou não, se estava desleixada ou não. Houve uma história que se desenvolveu em decisões sobre o concreto, como apreendo (concreto da decisão) de Levy Strauss na dualidade do Cru e do Cozido. 

                                                                                                                    capela-alagoas.com.br
A encantada Capela das Alagoas







A história sentada em nossa mesa, jamais poderia minimizar o papel fundante de Dona Maria, como não poderia acabar com o de Guiomar na Vitória do Periperi, da Comadre  Myrian no Bebedouro, e mesmo da maravilhosa coalhada do Pacaviral do primo Agnelo, que chegou a entusiasmar a
veia poética do saudoso primo Natalício de Almeida - com quem eu andava léguas capelenses -, aquele que compôs um hino àquela coalhada maravilhosa, declamado para mim no portão do Cemitério da Capela, de onde se via a estação do trem, onde o Cabo Leobino foi dar de corpo e caiu sob uma bala disparada não se sabe de onde, depois de ter desarmado gente grande no tempo do Costa Rego, no afoito de cumprir ordem de governo.



                                                                                          capela-alagoas.com.br
A estação da Capela na década de 10 do século XX


Hoje a estação morta, está vizinha do Bar que não tem nome, do primo Ayrton que fundou o melhor caldo de feijão das Alagoas, no lado do Cartório do Cícero Cocó, o primo Cícero de Almeida, pegado no Forum da Capela, que se introduziu - o Forum - no lugar que foi uma bodega do meu avô, depois que fechou a da Praça 13 de Maio em Maceió, um pouquinho melhor de vida, já saído da Rua do Cisco da capital, onde morou a Tia Terezinha ou outra, pois não garanto essa parte.

Dona Maria fundava uma culinária sobre a tradição e assim a renovava, colocava seus gostos, seus sabores em evidência. Isso mostra que o herdado sempre encontra o momento do novo e isto nos leva para além da estrutura e a ver, também, o essencial pendor pessoal nos momentos da história. Gosto da discussão de Shallins que passa por aí, pela função pessoal no coletivo do tempo. As donas de casa fundavam o sabor da unidade. Guiomar fundou sua tradição por cima da tradição da Bananeira de Baixo e dá-se um fervor meio alquimista, pois ela nem rompia e nem  interrompia a Bananeira, no imediatamente novo de cada prato de feijão que dava a todo novo dia para o seu povo comer. Dona Guiomar transitava. 


A fundante, a memória e o sabor

 Não fosse Dona Guiomar, jamais haveria uma determinada lembrança, retorno de sabor/Guiomar. Isso não é genético ou linear; simplesmente, Guiomar era fundante ou seja, a balizadora do novo. Era o que se dava com Dona Maria que vinda da Dindinha Mariquinha, sentiu o novo da Caetana Maria de Albuquerque - a Dondon - e levou o novo-novo para seu filho. Imagine-se a ausência de Maria José e Guiomar? Tenho vontade de me definir como um gosto no renovar da tradição. É muito complexo, difícil discutir como se fundava o gosto de cada casa da Rua da Penha, elas com suas histórias próprias. E Maria José não era estanque; lia, recortava receita, colava ou transcrevia para seu caderno que ainda conservo comigo, espécie de relíquia da memória familiar.  Maria José tinha seu gosto, mas devia pensar no de todo mundo. Lembro de ouvir uma conversa: "Eu gosto, mas nem Manoel e nem os meninos gostam; aí, não mando fazer". Era uma fundante basicamente para os outros.







Isso abre o meu senso piegas e digo 
ser difícil algo mais evangélico do 

que uma mãe na cozinha, quando 

deseja, é bem verdade. 
Há uma musiquinha de letra 
brocoió de David Nasser - composta 
com Herivelto Martins - e gravada 
pela Ângela Maria e João Dias.


                                                                                                                                                                       



É a mesma Ângela 

Babaluuuuuuuuuuu meia tentando 

ser uma espécie de Yma Sumac 
carioca, falando para um orixá do 
Caribe, equivalente a Obaluaiê justamente, 
el negrito Babalu, agraciado 




com fumo e cachaça, no maior 

papo de encruzilhada, o Babalu da 
Santeria, o 

que parece mais coisa de 

exu. Babalu foi gravado em 1958 e 
não presenciei a macumba cubana 
dentro das casas da Rua da Penha; 
já havia saído de lá.































 Pois bem, a 

música do David Nasser lembra da 
mãe cozinha: O avental todo sujo 
de ovo. Era a mãe doméstica, a mãe 
do domus efetivamente viva. Mas, 
evidentemente, a minha mãe não se 
resumia a isso, mas passava pelo 
caminho, como toda e qualquer 
mãe que pegava no pesado daquilo 
que era o lar, doce lar, um local de 
insana trabalheira












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