domingo, 3 de junho de 2012

[Religião: Protestantismo] Luiz Sávio de Almeida.O protestantismo: minhas lembranças e o discurso sobre as almas.




_________________________________________________________________________________ALMEIDA, Luiz Sávio de.  O protestantismo: minhas lembranças e o discurso sobre as almas. Tribuna Independente. Maceió,  20 Mai. 2012. Contexto. 
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Um bilhete sobre católicos e protestantes na construção das  Alagoas

Continuamos as notas sobre o protestantismo. Há um jogo inevitável entre a memória e a leitura,  no caso destes artigos; somamos anotações de um diário, com anotações de leituras. Desejo oferecer o pequeno texto, ao saudoso Aurélio Viana cujo papel na vida política alagoana não foi ainda trabalhado; ofereço também à Igreja Batista do Pinheiro que pode ou não concordar com as coisas que digo, mas na certa respeitará como respeita a todos; aos meus colegas dos tempos do Colégio XV de Novembro em Garanhuns, época em que estive um tanto quanto semi-presbiterianizado.

Sávio de Almeida




O protestantismo: minhas lembranças e o discurso sobre as almas

LUIZ SÁVIO DE ALMEIDA



Quando criança tive dois encontros com o protestantismo. O primeiro falava de minha avó na Capela, gente do Apostolado da Oração e que abrigava,  em sua casa,  crentes que estavam sendo apupados e perseguidos mesmo. Dondon não admitiu em frente da sua residência, que se violentassem pregadores batistas e  foram abrigados e espalhados os “linchadores”, conforme história que  circula em nossa copiosa  crônica familiar.

Tomando a Capela como motivo, é possível dizer da universalidade da perseguição articulada por autoridades paroquialescas e pelo pacto de dominação. Imagine-se o que seria todo este processo do ponto de vista da psicologia popular! Afinal de contas, quem iria aceitar a ineficiência de seus anos de preparo para a salvação? Todo um caminho para chegar ao Reino de Deus estava jogado fora. E, na verdade, surgiam, neste contexto,  sujeitos tidos como impertinentes, caboclos levantando para contestar potentados, mais uma demonstração do caráter inovador do ingresso protestante. Isto poderia ser considerado como rebelião,  pois o povo estaria sendo tentado a  prescindir da parafernália suntuosa católica, presente, por exemplo, na performance dos irmãos de opa, da morte visitada com cruz alçada, nas libras de velas derramadas e por ai seguiriam os ritos e rituais populares ou oficiais do catolicismo, dando conta da vida depois da morte.

Quem é esse caboclo para ficar afirmando de que tudo era engodo e que jamais –  por aquele meu modo usual de brigar com o diabo no meu caminho para Deus – , seria impossível  colocar os pés no paraíso?  Era possível sentir um “Você sabe com quem está falando?” Um caboclo afrontando o sagrado ao dizer que santos somos nós?  Havia uma subversão no ator religioso e na sua fala; no seu conjunto, a religião protestante acaboclava nas Alagoas as veredas da salvação,  apesar das origens branca.  É de parecer um paradoxo: a origem branca acaboclando. É a subversão que o protestantismo sai perdendo ao longo do tempo na sua vivência junto ao nosso agrarismo ou quem sabe, uma subversão com fortes limites e teve de render-se ao sistema? Belo ponto a ser discutido.

 O acaboclar estava representando a dessacralização imediata do mando político que resguardava a fundamentação católica; o sagrado escapava da mão sacerdotal da hierarquia na  relação religiosa com o agrarismo e se fazia até mesmo por gente de ponta de rua,  gente longe do quadrilátero do território urbano do poder onde sempre estaria a Matriz tendente a ser monumental. E mais, era uma pregação cabocla que estava aqui e ali, multiplicando pontos territoriais de contato na luta pela conquista, nesta espécie de guerrilha das salvações.

Isto incomodava severamente ao agrarismo, calcado na sua base de poder local. Dondon – a minha avó –  apesar da sua proveniência da ”nobreza” capelense, por tropeços de vida era pobre e demonstrava, por outro lado,  que o agrarismo tinha brechas a serem forçadas. É neste sentido que sua história foi chamada pelo texto desta anotação em nosso  diário. Quantas famílias viram e sentiram situações semelhantes? Inúmeras? Ainda se pode ter copiosa referência de perseguições aos bodes, amainadas  na década de sessenta.  Uma aluna minha, levantou casos dentro de sua igreja e eram inúmeros. Li e admirei seu trabalhop. Não sei que destino o material tomou. Eu havia aconselhado a traçar uma relação entre o que estava acontecendo de perseguição, enquanto as histórias pessoais de salvação aconteciam. A aluna era de primeira linha, sempre apostei no seu futuro;  lembro dela, mas o plano não foi adiante. Caso eu não esteja enganado, ela pertencia à Assembleia de Deus. Faz tempo.

A CRENTE NA PORTA DA MINHA CASA

Uma segunda anotação em diário, refere-se à  Penedo. Procuro por minha mãe e ela estava conversando na calçada. Era com uma senhora, baixa, morena clara, cabelo comprido; a imagem eu guardei.  Nada entendi da conversa. Perguntei quem era: “É uma crente, meu filho. Ela não acredita em santo e nem em Nossa Senhora”. E minha mãe arrematou: “Ela diz que santos somos todos nós!”. Para quem havia terminado de fazer  a primeira comunhão, estava ali a essência de um pecado mortal pois agredia à fé católica até o último fio de cabelo.  Era uma sensação que passaria por qualquer um, a quebra de toda uma patronagem celebrada com oragos e protetores, dentre eles o anjo da guarda, “meu zeloso protetor que a ti me confiou a piedade divina” e que deveria me guardar e iluminar.

O próprio cotidiano do protestantismo atingia e colocava o sistema em salvaguarda, era no público que ele pisava ao estar nas ruas de Capela e do Penedo, resignificando a passagem dos tempos de vida naqueles urbanos. Um acinte: desestruturava uma hagiologia e uma Senhora que tinha um mês de devoção evidente,  o Mês de Maria onde se passava confirmando a Cova da Iria. No fundo, a conversa era simples e ela dizia à minha mãe: “Moça, o que você aprendeu está tudo errado1.  O que vale, Dona Maria, seu exército de frades, padres, monges,  freiras, irmandades?”. Absolutamente nada: negava-se, portanto, a base do sagrado de toda uma formação histórica e isto era subversão, deixava todo o poder de orelha em pé.

É bode quem tem bigode

Minha terceira experiência foi mais profunda; fui durante três anos  aluno interno de um colégio presbiteriano. Entre ser interno no Diocesano ou no Quinze de Novembro, ambos em Garanhus, meus pais não hesitaram e embarquei de mala e cuia para o Quinze. Ali tive convivência constante com missionários americanos e candidatos ao Ministério. A idéia de uma pedagogia avançada e trabalhada pelos presbiterianos cai por terra, mas esta é outra história; muitos do que escrevem sobre a educação deveriam consultar o por baixo do processo pedagógico, quase no viés  thompsiano das falas vindas por uma “history from bellow”, este lugar social tão dificilmente palmilhado. As gentes do Bellow são normalmente trocadas por gentes de cima.  Deixando a sociologia ou história da educação de lado, nesta anotação o que importa é a ligação do que vivi e a rede de relações naquele internato, uma composição a bem dizer impossível de escola laica e confessional ao mesmo tempo, funcionando como espécie de seminário menor, com os Candidatos convivendo conosco.

Tocava a campa, com pouco mais vinha o banho e o café quando então orávamos, sempre com um Candidato ao Ministério falando, treinando a interlocução com Deus. Para que se entenda esta pedagogia avançada, cada mesa de refeitório tinha seu próprio Censor, cada quarto tinha seu Censor e todos os censores dos quais me lembro eram  Candidatos ao Ministério, em primeiro treinamento para ser pastor. Interessante ter um sacerdote se iniciando na posição de Censor, mas deixemos a tal pedagogia moderna em suspenso, matéria de um trabalho especial que comecei a escrever como se fosse apontamento para uma tese de doutorado,  quando estava na Michigan State University para uma disciplina chamada “A terceira cultura”.

Dez horas da manhã, um pequeno culto com todo o XV de Novembro reunido, oração, fala de missionário, esposa de missionário a tocar piano e vamos ao hinário, aos coros, corinhos e hinos: O nome do Senhor deve ser exaltado.  Em tal rotina de cânticos e orações, terminei por praticamente decorar o hinário e aprendia, sem saber, muitas melodias brancas dos Estados Unidos, daquelas dolentes e solitárias nas pradarias dos filmes de cowboy. Eram hinos e músicas que jamais passariam pelos tons e harmonias de nossa cultura. O protestantismo litúrgico era exótico. Era preciso trazer para aqui, os fatos da América; lá sim, estava criado um mundo encantado de enlevamento litúrgico e deveria ser posto na terra brasileira, cujo baticum estaria empestado do som afro-pecaminoso,  indígena-tupan e branco-chapa-católico.

Vez em quando pintava uma reunião social, quando se juntavam  o internato masculino e o feminino, além de alguns convidados.  E se dançava a  carrocinha pegou três cachorros de uma vez... Por uma espécie de deboche das probabilidades, esta música foi gravada pelo Carequinha e espantei-me quando a ouvi, pois ficou fincada no substrato religioso de minha cabeça; outra,  era a história do chapéu com três bicos. Depois que passei a ver musicais americanos e a prestar mais atenção ao que ocorria,  eu estava country e no mais bizarro estilo da branquitude americana, numa superposição do wasp ao meu acaboclamento: white, anglo saxon,  protestant, umas das  principais indicações de direcionamento para a  direita política americana.  O fato era que se tinha um chapéu puritano e o desconhecimento do chapéu de palha. My hat has three corners, trazia a modo do século XVIII, aquele chapéu a procurar a forma de um triângulo, contra o senso de circunferência a cobrir a cabeça que estaria em todo o território dos sertões dos garanhuns.

A única exceção que vi, no sentido do acaboclado nordestino sendo mantido –  e decorei a música –, foi um dia em que, em cima de um caminhão passamos por dentro da cidade de Garanhuns em festiva marcha para um piquenique, boys and girls  cantando alto a pequena vingança protestante numa sacudida musiquinha que Luiz Gonzaga bem poderia ter gravado:

 É bode, é bode, é bode
Quem tem bigode,
Quem tem cavanhaque é bode!
O seu fulano, que é dono do pagode,
Ele brinca sem dinheiro
Mas não brinca sem bigode!
Oi!

Ora, jamais a palavra pagode corresponderia ao vocabulário presbiteriano e jamais estaria sendo utilizada somente para deixar a rima redonda. Ele dizia que havia a fuzarca e um dono, mas o que aparece é o deboche do nordestino em face do oiiiiiiiiiiii final. Não se gostou do bode; ele  ficou atravessado numa região de tradicional missão presbiteriana e local de funcionamento do Colégio XV de Novembro, comemoração protestante da República, onde se teve uma alforria legal. Em torno de um século da visita apressada de Kidder, o panorama do protestantismo havia mudado, mas ainda não estava calçado na normalidade da vida. Era suficiente para causar a fundação de um complô, era suficiente para uma resposta na década de 50, mas vai precisar de urbanização e mudança na arena política, e ele que foi uma força a bem dizer inovadora, tendeu para uma posição de direita ou conservadora. Em torno de 120 anos se esclarece qual o grande caminho político, salvo algumas raras  exceções, a ideologia política foi comprometida com o status quo, aquilo que nos começos dos combates esteve sendo afetado por Kidder.

Um orientador ligado ao batista e  à missão

Outra experiência foi na Michigan State University. Meu orientador chamava-se Ted Ward, um homem capaz, amigo. Ele foi emeritus do Departamento de Educação da Estadual de Michigan e, posteriormente, membro da Trinity Evangelical Divinity Scholl. Eu estava interessado no que se chamava de non-formal education e ele era dos melhores no que se tratava  de non-formal theological education. Convivemos largo tempo, aprendi e sou grato. Aliás, um de seus livros foi traduzido para o português e publicado pela JUERP, editora de grupo batista.

Era aberto e um de seus princípios era básico nas suas proposições quanto às missões: respeito à cultura. Uma das leituras recomendadas era sobre o que chamava de true believer. Tive uma imensa dificuldade para entender e traduzir a expressão mas notei que   talvez a base do fundamentalismo estivesse por ali,  pois se tratava  não da possibilidade de um verdadeiro crente,  mas do acreditador: aquele que tem a profissão de acreditar e de repetir o mesmo mote de sua crença de modo exaustivamente continuado. É esta diferença entre o verdadeiro crente e o acreditador que me aproxima, sobremaneira, da Igreja Batista do Pinheiro em sua composição atual, um passo absolutamente distanciado dos tempos de Kidder, do complô maximalista, do crente na porta da casa da minha avó e da crente na porta da minha casa, do bode de Garanhuns e um ganho em direção à integração cultura e salvação, onde o universo do poder é claramente desbastado, de uma forma muito mais rica do que se poderia fazer com o corpo de encíclicas que calçam a chamada Doutrina Social da Igreja.

A busca pela salvaguarda social fez com que o protestantismo em Alagoas tendesse ao conservador e mesmo à direita como já anotei. É proverbial o caso do vereador Guilherme Falcão que militou no PMDB em 1982 e passou para o Partido Socialista Brasileiro (ao qual pertenci e com o qual ainda mantenho ligações) por volta de 1985. A pressão foi forte para que ele deixasse o partido por conta de posições à esquerda.  Ele saía ou ficaria mal na comunidade da Igreja, conforme me disse e faz muito tempo, andando ali pelos lados do Parque Gonçalves Ledo. Há, também, o conhecido caso do Ricardo Coelho.


UM RINGUE NA BASE CULTURAL

No fundo, estamos lidando com a forma da representação realizada pelos protestantes e a resposta da descaracterização dada pela reação católica: uma tensão de natureza dialética; ela se transmite, automaticamente, para as bases da chamada cultura popular e para o que chamarei de Alagoas profunda, as Alagoas de suas próprias razões, da intimidade do seu cotidiano, resistente à mudança, presa à tradição e tridentina por excelência embora com universo próprio que refaz o princípio da romanização sem controles e maniqueísta com fórmulas estabelecidas para padronizar a ideia de verdade e de mentira, de bem e de mal. Uma Alagoas do agrarismo, à qual o novo do protestantismo termina por se justapor e dialogar e estar em relação constante.

É nesta Alagoas profunda que vamos situar a tensão e escolher um caminho: a chamada literatura de cordel, composta por folhetos de feira. Como estaria posta a figura do protestante e a figura do crente?  Este tipo de literatura é solidificado pelos finais do século XIX no nordeste (Curran; 1991)  e passou a veicular  valores, razões, argumentos de uma forma que atingia, sobremaneira, às faixas pobres e rurais especialmente do Nordeste brasileiro. Claro que há todo um rastro europeu, ibérico, português, mas a que nos importa,  de modo enfático, é a que se estabelece no Nordeste e um dos precursores dessa safra é o paraibano Leandro Gomes de Barros com produção pelos finais da segunda metade do século XIX.
Basicamente, a poética estava ao lado da Igreja Católica nesta porfia pelo sagrado e bem que se poderia ter o dedo da hierarquia interessada em sedimentar a hostilização com relação aos princípios religiosos dos protestantes. O folheto respondia de modo direto ao que o mercado pedia e, nesse caso, era a severa condenação e o conjunto da literatura, o seu corpus na realidade, cobria o que vou chamar de enunciado da nova-seita, estruturada o mais das vezes quase sempre numa figura comum, em local usual do povo.  A tática da Igreja foi atingir o protestante por cima nas hierarquias sociais e atacá-lo, profundamente, na via do cotidiano
Era uma oralidade em pregação, tomando o poeta como o seu veiculador; na realidade, o poeta recuperava os valores que circulavam e os transmitia às vezes na montagem de uma porfia, ou desafio, como era usual, inclusive, nos encontros de tocadores de viola. Evidentemente, estava adredemente montado o aceno do vencedor em um modo padrão de ritmo a viabilizar uma participação de quem o escuta e o lê, em termos até mesmo de memorização, conforme Abreu (1999) ressaltou. A tendência do folheto era a de falar de dentro e é interessante entender o traço de nivelamento entre forma, autor e público, o que, em parte, está destacado em  Curran (idem) e enfocado por  D’Olivo (2010).
É em sua forma de articular desafio, cena comum e o estigma que o cordel deve ter sido uma matéria chave de transmissão da visão católica em radicalização contra a protestante. Não fosse desta forma, perderia a simetria e até mesmo, a veia conservadora que sempre tendeu a  demarcá-lo. O crente seria no contexto do cordel,  o crente oficial retrabalhado pelo imaginário nas ligações existentes dentro da Alagoas profunda, a deep Alagoas.
 Era ela quem estaria sendo fustigada, sinal da renovação que seria o protestantismo mas que, necessariamente, não tinha raiz e, sobretudo, negava a que seria estruturante do processo da vida religiosa. Como se integrar dentro deste universo da raiz – que jamais seria a sua –, das estruturas profundas, seria o desafio que o protestantismo iria ter, encontrar ganhos de apoio, viabilidades de integração com a sociedade, poder, portanto, viver, sobreviver e crescer nas Alagoas rasa, a do dia a dia acontecendo mas fundada na profunda, a das grandes marcas estruturais e isto iria desde a situações mais frívolas como a moda, o se vestir, até situações de maior vulto como pactos de natureza política, até mesmo partidária, tudo isto dentro de um contexto de urbanização constante e de celebrações junto ao poder.

A IGUALDADE NO SISTEMA

O folheto de feira que tornava o Padre Cícero e Frei Damião santos, jamais poderia abrigar o anti-canonização, nem mesmo pela via da força romana isto foi conseguido, no que se tem a Beata Maria de Araújo como exemplo. O que pode parecer frase de efeito na realidade não é: o profundo era profundo mesmo, difícil de ser extirpado e a consagração do Padre Cícero, o nosso Padrinho era um contrato de patronagem irrompível. O que era capaz de negar Roma, estaria mais do que habilitado a negar Lutero, ao qual figurativamente nos referimos, por ser alvo principal da contra-reforma.
Estamos diante do que vamos chamar de a porfia por escrito e que iria traduzir a porfia verbal, a disputa na fala. As Santas Missões estariam nos folhetos, como estariam, também, a própria hierarquia estabelecida na figura de padres que estavam a paroquiar, incluindo, na ação,  todo o complexo ideológico agrupado no universo do que era chamado de pasto espiritual, uma preocupação de duplo significado pois estava no estado e na própria religião. Havia uma unidade nas Alagoas profundas, nas estruturas de base, formadoras, corporificadoras de expectativas e comportamentos e de uma Igreja Católica rígida em seus dogmas e cheia de modos sociais e político de ser.
A Santa Missão era bem mais do que uma mera pregação, era toda uma ordem de solenidade para a salvação e ia das obras ditas pias, até ao espetáculo das fogueiras a queimarem o pecado, como se pronuncia Maia (1991). São extraordinários os relatos de Fr.  Apoloni de Todi,  que  missionava desde os finais do século XVIII, o verdadeiro festejo, os mistérios dos acontecimentos e a geração das obras junto com o casamento dos amancebados. São relatos postos em Lisboa (1835) e mostram o tom espetaculoso da fé.

OS FOLHETO DE FEIRA

Um bom exemplo dessa porfia é dada em um folheto ainda da década de cinquenta e que em 1956 estava em sua segunda edição – houve uma terceira edição em 1970 e uma sexta em 1979 –, sendo da lavra do famoso Rodolfo Coelho Cavalcante,  alagoano de Rio Largo –, tendo nascido em 1919. O folheto era intitulado A discussão do Padre com a protestante.  Rodolfo Coelho Cavalcante não tinha compromisso, devendo ter sido ligado ao espiritismo, com um folheto extremamente simpático ao Chico Xavier. Bom, ali estava a mulher protestante em lugar público, a pregar a Palavra de Deus, esperando um trem e nisso começa a briga com o Padre. O primeiro argumento da crente dizia respeito à Bíblia Sagrada, propondo, portanto, que a Igreja Católica não poderia tornar-se salvadora, rebatendo o Padre que havia afirmado as excelências católicas:

Minha filha, qual a crença
Na terra mais soberana,
Do que a Igreja Católica
Apostólica Romana?
Só a Santa Igreja salva
Neste mundo a alma humana!

Para a crente, nem a Igreja salvava e nem se fundamentava na Bíblia e menciona especialmente a questão do Papado que, segundo ela, nunca havia acontecido a sagração de Pedro como Papa. A crente então ataca justamente a plataforma de baixo da cultura religiosa e deve ter sentido o peso da última fala do Padre: A senhora sendo cega,/Peça a Jesus e veja!
 Ela rebate:

O senhor assim graceja
Com seu erro doutrinário.
Esse negócio de missa
Confissão e rosário
Não passa de inovações
Da Igreja, seu Vigário.

A discussão então evolui para um ponto central da discussão: a existência de uma Bíblia falsa. A investida protestante de querer o pais lendo a Bíblia,  levava à fala de que se fundamentava em Bíblia falsa. Perrone (1856) falava em Bíblia truncada  ou corrompida, e esta argumentação seria usual. Não era, portanto, dito que estavam errados – onde a discussão se estabeleceria – mas que estavam em falsidade e, portanto, nem havia o que discutir e sim determinar a mentira, o crime. Não se estava diante de um adversário, mas de algo criminoso a ser combatido, inclusive com o rigor, por  existir uma religião de estado que a tudo controlava. O início da institucionalização dos protestantes  (nova seita, crente e  bode não são mais palavras correntes) levará a uma tática composta por três elementos básicos: a)  montagem de foco, onde seriam estruturados núcleos; b)  contato político em busca das brechas no sistema e c) evitar o confronto aberto, iniciando à base da distribuição de material impresso e Bíblias, modo  essencial de conflito: o domínio das fontes do sagrado.
Este conflito irrompe no texto do poeta alagoano com a seguinte fala da crente:

Toda Bíblia é uma só
De fácil penetração
Para aquele que Jesus
Lhe promete Salvação
Bíblia falsa isso é conversa
Da sua religião!

Era a afronta completa; uma mulher do povo tinha a veleidade de discutir com um sacerdote, completa subversão do sistema e tudo em um lugar público, na plataforma de uma estação.  No fundo se tratava de uma subversão local e como tudo indica, ainda pelos anos cinquenta, o protestantismo se constituía em fator desta subversão:

Onde a senhora aprendeu
Por certo teologia
Para andar pregando ao povo
Sem a menor teoria?

A crente tinha pesados argumentos, era topetuda  e entra em um dos redutos fundamentais da religião profunda das Alagoas:

Falando agora em Maria
Que é que seu Padre me diz!
Quem foi ela aqui na terra?
Quero que seja feliz!
Se é filósofo responda
Já que sou uma aprendiz!

Praticamente, todo o folheto vai delineando a impossibilidade de um diálogo entre ambos pois os campos se encontravam irremediavelmente divididos:

Eu não quero discutir
Com mulher, que não convém
Quanto mais uma protestante
Que não respeita ninguém
Se eu gostasse de briga
Seria crente também.

Pode o senhor se zangar
Mas a verdade não nego
Sou crente, tenho direito
Para todo mundo prego
O Evangelho de Cristo
Que no coração carrego.

Credo em cruz, eu te arrenego
Disse o Padre nesta hora
O trem nisto ia chegando
Vi o Padre cair fora
E aí a crente cantou
O seu hino e foi embora.

Extremamente virulento foi Antônio Araújo Lucena – já falecido e nascido em Cajazeiras na Paraíba – com seu folheto intitulado O Pastor que virou Bode:

Um bode preto retinto
Já foi visto no sertão
Durante a segunda guerra
E naquela ocasião
Foi quando o dito pastor
Andou causando terror
Em quase toda a nação.

Seria um copioso inventário do que se teve produzido sobre o tema nos folhetos de feira, demonstrando o quanto perdurou o combate ao nova seita que seria obrigado a transitar politicamente e assim legitimar-se. A legitimação é um processo de fazer-se aceito e nisso a qualidade política aproximou-se das Alagoas profundas, salvo raras diferenças como a do saudoso amigo Aurélio Viana que se somou à esquerda democrática no arrebentar do Estado Novo, e a quem deixo um abraço afetuoso com estes pedaços do meu arquivo pessoal.



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